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Mendes, M. (2022). La Filosofía Intercultural y nuestra Améfrica Profunda.
Cuestiones de Filosofía, 8 (31), 133-148.
https://doi.org/10.19053/01235095.v8.n31.2022.14330
Cuestiones de Filosofía
ISSN: 0123-5095
E-ISSN: 2389-9441
Vol. 8- N° 31
Julio - diciembre, año 2022
pp. 133 - 148
Artículo de Investigación
La Filosofía Intercultural y nuestra
Améfrica Profunda
1
Intercultural Philosophy and our Deep Améfrica
Magali Mendes de Menezes
2
Federal University of Rio Grande do Sul, Brazil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil
Recepción: 16 de mayo del 2022
Evaluación: 19 de septiembre del 2022
Aceptación: 08 de noviembre del 2022
1 Proyecto Pedagogias da re-existência: feminismos negros e indígenas de nossa América
Profunda.
2 DoutoraemFilosoaporlaPonticiaUniversidadCatólicadoRioGranedoSul,Professorada
Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ UFRGS, Brasil.
ORCID:0000-0001-6325-9595
Correoelectrónico:magaliufrgs@gmail.com
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Cuestiones de Filosofía No. 31 - Vol. 8 Año 2022 ISSN 0123-5095 Tunja-Colombia
Resumen
El presente texto reexiona acerca de la interculturalidad y su necesidad
histórica, a través de dos autores centrales: Raúl Fornet-Betancourt y Lélia
González. El conocimiento propio de los nativos y los negros ha sido bo-
rradoynisiquieraesreconocidocomoconocimientolosóco.Cuandose
reconocelalosofíaamerindia,selohaceencomparaciónconlalosofía
occidental y con todo lo que ésta ha producido. En este sentido, la Filosofía
Interculturalplanteaelretoderepensarlalosofíadesdeotrasexperiencias
de pensamiento. El epistemicidio expone el racismo en el que vivimos. El
encuentro del lósofo cubano con la lósofa brasileña, una mujer negra,
dará fuerza a una categoría de pensamiento que pretendo desarrollar aquí
(Améfrica Profunda),paracomprendermejorestepaísllamadoBrasilyla
forma en que las resistencias de los pueblos indígenas y negros se constituye-
ron, también ellas a partir de profundas experiencias interculturales.
Palabras clave:losofíaintercultural,racismo,diálogo,indígenas,negros.
Abstract
The presenttextreectsabout interculturality and its historical necessity,
through two central authors: Raúl Fornet-Betancourt and Lélia González.
The own knowledge of the native and the black people has been invisibilized
and is not even recognized as philosophical knowledge. When an Amerindian
philosophy is recognized, it is by comparison with Western philosophy and
all that it has produced. In this sense, Intercultural Philosophy presents the
challenge of rethinking philosophy based on other thought experiences.
Epistemicideexposestheracismthatwelive.TheencounteroftheCuban
philosopher with the Brazilian philosopher, a black woman, will give stren-
gth to a category of thought that I intend to develop here (Deep Améfrica) in
order to better understand this country called Brazil and the way in which the
resistances of indigenous and black peoples were also constituted from deep
intercultural experiences.
Keywords: intercultural philosophy, racism, dialogue, indigenous people,
black people.
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Introdução
A discussão sobre a interculturalidade tem atravessado as diferentes áreas do
conhecimento, mostrando o quanto o tema se faz importante e urgente em
nossotempo.Contudo,noschamaaatençãocomotardiamenteatemática
dainterculturalidadechegaàFilosoa,poisserápelosanos90quecomeça-
remosaacompanharosdebatessobreedaFilosoaIntercultural,enquanto
outrasáreasdoconhecimentojásedebruçavamsobreotemademonstrando
suaimportânciaalgumtempo.OlósofoRaúlFornet-Betancourt,emsua
obra Trasformación intercultural de la Filosofía (2001), comenta que nos
anos1989-90começavamasurgirpublicaçõessobreaconstituiçãodapro-
blemáticadalosoaintercultural,destacandoaimportânciadosCongressos
Internacionais de Filosoa Intercultural, que produziram (e continuam a
produzir) bases teóricas fundamentais para o debate sobre a interculturali-
dadedesdeperspectivaslosócas.Estacorrentedepensamento(seassim
podemoschamar)trouxeaocampolosócoquestõesimportantes,propon-
doumarefundaçãodaprópriaFilosoa(ocidental),aoquestionarseuesta-
tuto.Aprópriaobrareferidaanteriormentesepropõeaumatransformação
interculturaldalosoa,queconsistiráem“creardesdelaspotencialidades
losócasquesevayanhistorizandoemumpuntodeconvergênciacomún,
es decir, no dominado ni colonizado culturalmente por ninguna tradición cul-
tural” (p.29).
Ao olharmos o mundo desde uma perspectiva geopolítica percebemos terri-
tórios sempre em disputa de onde emerge os pensamentos, saberes e práticas
dediferentescoletivoshumanos.RenatoNoguera,lósofobrasileiro,aesse
respeitocomentaque“Umaanálisedasrelaçõesentregeopolíticaelosoa
é uma abordagem que nos permite vincular o lugar epistêmico étnico-racial,
degênero,espiritual,sexual,geográco,históricoesocialcomoosujeito
doenunciado,desfazendoanoçãodequeodiscursolosócobrotadeuma
razão‘universal’imersaemumcamponeutrodeforças”(2014,p.22).
Começamosaperceberentãoqueunssaberessãomaisválidosqueoutros.
O debate, por exemplo, sobre termos como cosmologia, epistemologia ou
ciênciademonstrao“lugar”quedeveterosconhecimentosdiantedadisputa
de poder. Os saberes dos povos originários historicamente invisibilizados,
sequersãoreconhecidoscomolosócos.Quandoháoreconhecimentode
umalosoaameríndiaestesedápelacomparaçãoàlosoaocidentale
tudoqueestaproduziu.Nestesentido,aFilosoaInterculturalnosapresenta
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odesaoderepensarmosalosoaapartirdeoutrasexperiênciasmesmas
depensamento.Paratanto,trareiasreexõessobreaFilosoaintercultural
dolósofocubanoRaúlFornet-Betancourt,buscandonessehorizonteteóri-
co tecer diálogos com o pensamento ameríndio e negro no Brasil. Para con-
tribuirnodiálogo,abordeialgunselementosdopensamentodalósofanegra
brasileira Lélia Gonzalez (2020). O encontro de um cubano com uma mulher
negradáforçaaumacategoriadepensamentoquepretendoaquidesenvol-
ver, a Améfrica Profunda, para entender melhor este país chamado Brasil e
a forma como as resistências dos povos indígenas e negros se constituíram
também a partir de experiências interculturais profundas.
Filosoa Intercultural e os povos indígenas
Para guiar a reexão me inspiro em algumas discussões construídas pelo
lósofoRaúlFornet-Betancourt,principalmenteemtornodasquestõesindí-
genas. Fornet-Betancourt éumpensadorquealémdeinúmeraspublicações
participa e articula vários encontros, congressos e seminários no mundo.
DestacootrabalhodesuaFilosoaInterculturalnaconstruçãododiálogo
entre a losoa e várias outras dimensiones do pensamento, como, por
exemplo,asquestõespolíticas,educativas,éticas,epistemológicas,ecom
outros pensadores da interculturalidade, mas não somente, como os diálogos
quemantémcomimportantespensadoresdalosoalatino-americana.
ParaestedebatepercorrootextodolósofointituladoReexiones de Raúl
Fornet-Betancourt sobre el concepto de interculturalidad (2004) que apre-
sentaumaentrevistacomopensadoremquereeteapossibilidadedodiá-
logocomospovosindígenas.Aentrevistainiciacomumareexãosobrea
interculturalidadeeaeducação,compreendidacomoumeixofundamental
paraaconstituiçãodetododiálogo.Aeducaçãonãoé apenasoespaçoesco-
lar(monoculturalnamedidaemqueimpõeumcurrículo,valores,compor-
tamentos),masencontro,emqueossujeitosaprendemunscomosoutros.
ComodizPauloFreire,“(...)ninguémeducaninguém,comotampouconin-
guém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, media-
tizados pelo mundo” (1987, p. 79). É por estas ideias que nosso patrono
daeducaçãobrasileira,PauloFreire,temsidoduramenteatacadopeloatual
governo, que busca constituir uma necropolítica. As idéias de Freire sobre
umaeducaçãocríticareetemcomprofundidaocontextodossujeitosnela
inseridos.Ocarátersemprecoletivoeemancipatóriodaeducação,partedo
mundo, de buscar nele os temas geradores por onde a própria consciência se
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gera. A metodologia freireana consiste em através de temas escolhidos pelo
próprio coletivo, desde sua realidade, promover um processo de escrita. É
dessa forma, que Freire diz que não basta ler a palavra é preciso também ler
o mundo.
É através dos processos educativos que tomamos consciência de nós mes-
mos e do mundo, pois não estamos prontos enquanto humanidade. Somos
incompletos e a educação deveria, portanto, tornar-se esta experiência de
aprendizagemcoletiva.Contudo,aescola,comotambéma“grande”escola
queéaUniversidade,representahistoricamenteumespaçodeassimilação
eadequaçãodossujeitosaumaordemestabelecida.Osconhecimentosque
aprendemos são colocados como o que demais importante à humanidade
produziuequesãofundamentaisparaaformaçãohumana.Aeducaçãopassa
a ter seu lugar demarcado, legitimando saberes que serão importantes para
nos construirmos enquanto humanos. Este contexto afetou de modo muito
violento os povos indígenas no Brasil.
Aeducaçãoescolarindígena,nestadireção,representou,durantemuitotem-
po,umespaçodeviolênciaatravésdoapagamentodaslínguasemodosde
vidadospovosoriginários.Comoumimportantemecanismocivilizatório,
a escola torna-se uma instituição colonizadora, capaz de docilizar corpos
ementes.Imbuídadodiscursoda“educaçãoparatodos”(lemadaeduca-
çãomoderna), o espaço escolar transforma-se em ummecanismo potente
deopressãoecolonizaçãodoscorposindígenas.Apenasnonaldoséculo
XXcomanovaConstituiçãocidadãbrasileira(1988),marcoparaaslutas
dos povos é que podemos perceber um novo horizonte, garantindo o direito
aosmodosprópriosdevidadospovosindígenas:“Art.231.Sãoreconhe-
cidosaosíndiossuaorganizaçãosocial,costumes,línguas,crençasetradi-
ções,eosdireitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens”(ConstituiçãoFederal,2016,p.133).
Desdeentão,acompanhamosalutaporumaressignicaçãodoespaçoeduca-
cionalparaquepossapromoverefetivamenteumaeducaçãodiferenciada,es-
pecícaeintercultural.Asliderançaseprofessoresindígenascompreendem
que, no atual momento vivido, a escola pode se tornar uma ferramenta de
luta. Jerônimo Wherá Tupã Franco, professor Mbya Guarani e pesquisador
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doidiomaedaculturaGuarani,dizque“(...)hojenossaarmanãoémaiso
arcoeecha,masacaneta”(SaberesIndígenasNaEscola,2016)
3
.
RaúlFornet-Betancourt(2004)comenta,emsuaentrevista,queaEducaçãoé
por isso, uma decisão! Desde a escolha de como estarão dispostas as classes,
comoseráaarquiteturadoespaçoescolaratéosconteúdoseosenfoques
queserãodadosaeles,enm,oquechamamoscurrículo.Porserumade-
cisão,éumaaçãopolítica,poisenvolveumaposturadiantedomundo,eao
mesmo tempo, nos exige pensar que mundo queremos (re)construir desde a
educação.Muitos mundos foramen-cobertos ou apagadosprofundamente
pelosepistemicídiosconstantesqueaeducaçãocolonizadorapromoveu.De
SouzaSantos(2010,p.183)dizqueoepistemicídioé“(...)adestruiçãode
algumasformasdesaberlocais,àinferiorizaçãodeoutros,desperdiçando-
se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas pre-
sentenadiversidadeculturalenasmultifacetadasvisõesdomundoporelas
protagonizadas”.
Domesmomodo,aFilosoa,escritacomletramaiúsculaparaenfatizarseu
poder, ao entrar na institucionalidade, deixa as ruas e se afasta da vida, dos
contextosdiversosdeondeopensamentoemerge.AFilosoatorna-seas-
sim disciplina e ao assumir este lugar também disciplinado que pode, ou
não,serlosóco.Durantemuitotempo,porexemplo,adiscussãosobrea
situaçãohistóricadeopressãodasmulheresnãofoitemaparaaFilosoa
4
.
O fato das mulheres estarem ausentes da história contada (por homens), ou
seremmenosprezadasquandosãoidenticadascomoincapazesdeproduzir
pensamento–nãoprovocouo“espanto”paraàquelesquefaziamFilosoa.
AFilosoaseconstitui,assim,apartirdeumdiscursoqueescondeosujeito
que pensa para, desse modo, se apresentar como universal, válida para todos:
Ese proceso de denir la losofía dentro de un sistema va alejando a la
losofía de los mundos de vida, de la experiencia cotidiana, del habla
cotidiana.Lalosofíasevaconvirtiendoenunsaberdentrodeunsistema
que tiene su propia lengua, que se crea sus propias categorías, que se pone
sus propias metas y se hace autorreferencial. Y el resultado de ello se adivina:
3 A Ação Saberes IndígenasnaEscola, do qual souCoordenadora, é um projetodesenvolvidona
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que visaaformaçãodeprofessoresKaingang
e Guarani no estado do Rio Grande do Sul para que possam fortalecer a escola indígena. Mas infor-
maçõesnosite:https://www.ufrgs.br/saberesindigenas
4 Destaco a importante contribuição que Raúl Fornet-Betancourt fez a este debate com sua obra
Mulher e Filosoa no pensamento ibero-americano, momento de uma relação difícil; publicada no
Brasil pela Editora Nova Harmonia em 2008.
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“lagente”noentiende“lalosofía”;peroallósofoprofesionalestonole
importamuchopues,másquepara“lagente”,piensaparasímismoypara
sus colegas. (Fornet-Betancourt, 2004, p.24).
AFilosoatorna-sehermética,fechadaemsimesma,apenasacessívelpara
sujeitos“iluminados”,capazesdeatingiraelevaçãonecessáriaparapensar.
Descarta-seaexperiência,ouseja,arelaçãodossujeitoscomomundo,que
éjustamenteoquepossibilitaopensar.Aprendemosasrespostas(comoum
pensaracabado)enãosuasperguntas,indagações,inquietaçõesquefazem
brotar os pensamentos. Mata-se a vida presente no corpo que pulsa, vive
seu tempo, estranhando a si e ao mundo, capaz potencializar um movimento
constantedecriaçãodoprópriopensamento.Serádessemodo,quemuitos
saberesserãoexcluídosdouni-versoFilosóco.
Odesaoda(s)Filosoa(s)Intercultural(ais)estáemcomoescutar a pluri-
versidade do pensamento, em como pensarmos interculturalmente. Isso é
possível?Exigiriasairdeummododepensareestruturarasreexões(mo-
nocultural), para vivermos a abertura profunda ao inesperado. Mais do que
ouvir, a interculturalidade é escutado outro! Debora Diniz e Ivone Gebara,
duas importantes feministas brasileiras, em sua obra Esperança Feministas
(2022),realizamumlindodiálogo,dizendoqueéprecisocomeçarapensar
pelosilêncio:“Ouvirexigesilenciar-se,abdicardopoderedaseduçãoda
palavra. Mas ouvir não é o mesmo que pausar a voz, é gesto ativo para o en-
contro feminista – somente sendo capaz de ouvir é que seremos tocadas por
outras vidas diferentes da nossa. Para isso, o ouvir precisa se transformar em
escutar” (p.17).
Movidaporestaindagaçãofeminista,compreendidacomoescutaàopressão
vivida por muitas mulheres, mas também como postura ética diante do mun-
do,pensoqueasFilosoasinterculturaisseconstituemdesdeaescutapro-
funda ao Outro. Vamos re-aprendendo (ou desaprendendo, descolonizando)
sentidosquenãopartemdeumadeniçãopré-estabelecidadecomodevemos
pensaroudialogar:“Eneldiálogointerculturalsobrelaposibilidadylos-
mitesdelacomunicaciónentredistintasformasdelosofíaenlasdiferentes
culturasnosepuedepartirdeunadeniciónnormativadelosofía(…).La
losofíaesunaformadesaberdadadentrodeunadeterminadaconstelación
del saber” (Fornet-Betancourt, 2004, p.21).
A Razão Ocidental – ou parte dela, porque não podemos cair na cilada de
narrarahistóriadoocidentedeumaformahegemônica–impõeumahistória
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única,comonoslembraChimamandaAdiche:“Existeumapalavraemigbo
na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no mundo:
nkali. Éumsubstantivoque,emtraduçãolivre,quedizer‘sermaiordoque
o outro’” (2019, pp.22-23). Narrar a história como se fosse única é sustentar
uma estrutura de poder que mata de alguma forma todos aqueles/as que não
se enquadram no modelo imposto. O colonialismo como exercício constante
dedominação(poisaindavivemosprocessosdecolonização)esuarelação
profunda com o capitalismo, se estrutura e se mantém a partir do racismo,
patriarcado, homofobia, capacitismo
5
e toda forma de controle e apagamento
dasdiferenças.É dessa forma que Razão e racionalidade confundem-se à
medida que uma racionalidade (a ocidental) é referência de Razão e conse-
quentemente,deHumanidade.Contudo,aslosoasinterculturaisnosmos-
tram que não temos uma única racionalidade, mas diferentes racionalidades.
Falamosdelosoasameríndiastambémnoplural,porqueospovosindíge-
nas representam uma imensa diversidade. No Brasil estima-se que existam
mais de 305 etnias e cerca de 270 línguas são faladas. Infelizmente, uma parte
considerável desses povos e desses idiomas está sob risco de desaparecer
permanentemente, como por exemplo, a língua kaingang. A pandemia de-
correntedaCovid-19agravouaindamaisestasituação,poismuitosanciões
e anciãs morreram pelo descaso do Governo Federal, o que fez com que a
línguaeossaberesdeseuspovosmorressemjuntos.Tivemosrecentemente
o triste caso do último ancião do povo Juma
6
(Gortázar, 2021), Araká que
veioafaleceremfevereirode2021devidoacomplicaçõesdecorrentesda
Covid-19.Comelemorremsaberes,históriascoletivasdeumpovoqueso-
breviveuacolonização,mashojedeixadeexistir.
Aslosoas ameríndias em suadiversidade nos mostramformas de pen-
sar,viver,sentiromundo.PorissoaorecuperarareexãodeRaúlFornet-
Betancourt,falamosdelosoas,emquenãopodemostrazerumúnicocon-
ceitoparadeni-la.Emais, ao conceituar,denirestamosdentrode uma
concepçãodepensamentoquesearticulaapartirdaconceituação.Hánas
cosmologias indígenas outra dinâmica, em que o sentirpensar se constitui
desdemitos, simbologias, oralidades.Como comenta Fals-Bordaem uma
5 Capacitismoé “(...) a ideia de que pessoas com deciência são inferiores àque-
las sem deciência, tratadas como anormais, incapazes, em comparação com o refe-
rencial denido como perfeito” (Neumam, 2021). https://www.cnnbrasil.com.br/saude/
capacitismo-entenda-o-que-e-e-como-evitar-preconceito-disfarcado-de-brincadeira/
6 El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2021-02-19/o-ultimo-anciao-juma-morre-de-covid-19-e-
-leva-para-o-tumulo-a-memoria-de-um-povo-aniquilado-no-brasil.html
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entrevista:“(...)nósacreditamos,narealidade,queatuamoscomocoração,
mas também empregamos a cabeça. E quando combinamos as duas coisas,
assim somos sentipensantes
7
. O sentirpensar é incompreensível para uma
tradiçãoquefazdopensaredosentirdimensõesdicotômicas.Domesmo
modoqueaescriturasesobrepõeaoralidade,opensarsesobrepõeaosentir.
Os povos que fazem da oralidade a fonte de seus saberes são considerados,
pela tradição ocidental, “analfabetos”, não civilizados. Fornet-Betancourt,
contudo nos diz que:
(…)unaculturaoralnoesanalfabeta,unaculturaoralsabeleer,interpretar,
manejarse.Alcontrario,muchasvecesencontramosgentequetienentítulos
de doctor y se trata de analfabetos contextuales porque son incapaces de
interpretar, de leer un contexto, de manejarse en él, a pesar del título. Es
lo que yo llamo analfabetismo contextual. Éste se da menos en las culturas
orales, ya que son culturas ligadas sustancialmente a los contextos de vida y
a sus relatos y prácticas (2004, p. 38).
Éjustamenteoquevemos,porexemplo,dentrodasUniversidadesem rela-
çãoasPolíticasArmativas.NoBrasil,desde2012,oGovernoinstituiuas
políticas de reservas de vagas ànegros,indígenasepessoascomdeciência
nas Universidades públicas. É inegável a importância da política no ingresso
dos estudantes que, historicamente, tiveram seu acesso negado ao ensino su-
perior.Noentanto,nãoésucienteumapolíticadeingressosempensarmos
umapolíticadepermanência,deacolhimento.Quandoosestudantesindíge-
nas entram na universidade se veem obrigados a deixarem seus saberes no
“ladodefora”daUniversidade;tudoquecarregamdehistória,conhecimen-
tos, espiritualidade não tem importância. Passam a serem visto por muitos
“doutores/as”comoanalfabetos. A Universidade escancara, desse modo, sua
face racista e colonizadora.
As losoas interculturais, no sentido de pensarmos muitas formas de se
viverainterculturalidade,noscolocamatarefadecomoproduzimosespaços
interculturais que não consistam apenas no encontro de diferentes (que mui-
tasvezessãorelaçõesdeassimetria),masfundamentalmente,aprendermos
outros modos de pensar e existir. Nesta perspectiva, o pensamento ameríndio
enegrotrazemcontribuiçõesimportantes,poispensaralosoaapartirde
outros territórios desconstrói o exercício de uma geopolítica que tem domi-
nado a história do pensamento.
7 Traduçãonossa.Ver:https://www.youtube.com/watch?v=mGAy6Pw4qAw
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Améfrica Profunda como experiência de libertação: Lélia Gonzalez
Colocarpensadoresemdiálogonãoétarefasimples.Issoexigeteceruma
conversa com quem não teve a oportunidade de se encontrar frente a fren-
te,diantedorostonasuadensidadedepresença,comocomentaEmmanuel
Lévinas (1971). Lélia Gonzalez infelizmente partiu (1935-1994), mas sua
losoa continua reverberando em nós. Filósofa que nos ajudou a enten-
der as raízes profundas do racismo brasileiro teve recentemente (2020) seus
textoscompilados.Comomuitosintelectuaisnegrosenegrasdestepaís,o
pensamento de Lélia ainda é desconhecido e, muitas vezes, negado. Em uma
visitadeAngelaDavisaoBrasil,em2019,alósofacomentaoquantoo
pensamento de Lélia Gonzalez foi fundamental para ela e que nós no Brasil
ainda a desconhecemos. Mas, quem foi Lélia Gonzalez? Quero recuperar
umpoucodesuabiograaparaquepossamoscompreenderahistóriadeluta
destaintelectual/ativista,porqueLélianuncaseparouestasatuações.
Traduzo Lélia como uma mulher africanamente brasileira. Uma das mais im-
portantesintelectuais brasileiras, mulhernegra, feminista; assimse denia
“(...)a barraépesada.Eusou umamulhernascidade famíliapobre.Meu
pai era operário, negro. Minha mãe, uma índia analfabeta. Tiveram dezoito
lhos,eeusouadecimasétima”(Gonzalezapud Ratts e Rios, 2010, p.21).
Lélia representa em si mesma, em seucorpooquesignicouahistóriade
nosso país: corpo negro e indígena. Ela conta que sua mãe era ama de leite
8
emMinasGeraisdeumafamíliaitalianaabastadaeque,aocrescerjuntocom
a menina que sua mãe amamentava, teve seus estudos pagos pela família em
umaescolaparticular,estudandoassimjuntocomalha.Foiestefatoque
possibilitou Lélia ter acesso ao universo das letras, da escolaridade que todos
seusirmãosnãotiveram.Outrofatosignicativoemsuavidafoiquandoseu
irmãomaisvelho,JaimedeAlmeida,jogadordefutebol,foicontratadopelo
ClubedeRegatasFlamengoetodafamíliasemudouparaacidadedoRio
deJaneiro.Adécadade30marcaapresençadosnegrosnofutebolbrasileiro
eJaimesedestacacomumjogadorimportante,reconhecidonacionalmen-
te. Isto possibilitou que Lélia continuasse seus estudos, realidade rara para
amaioriadosnegrosnopaís.Contudo,estaspossibilidadesqueforamse
abrindonavidadeLéliaaospoucostambémtrazemaelareexõesprofundas
sobresuavidaedoseupovonegro:“Meurelacionamentoerasempreuma
coisaestranha.Quantomaisvocêsedistanciadesuacomunidadeemtermos
8 Comoforammuitasmulheresnegrasqueamamentaramlhasdeoutrasmulheresbrancas.
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ideológicos, mais inseguro você ca e mais você internaliza a questão da
ideologia do branqueamento” (Gonzalez, 2020, p. 298)
Léliaformou-seemHistóriaeFilosoa,comMestradoemComunicaçãoe
Doutorado em Antropologia Social, lecionou em escolas e diferentes univer-
sidades.MasseráatravésdeseucasamentocomLuizCarlosGonzalez,um
homem branco, que ela se vê instigada a pensar sua negritude. A família de
LuizCarlosnãoaceitaocasamentodeseulhocomumamulhernegra,assim
Léliasentedeformaúnicaopesodoracismo.Asituaçãotorna-setãoinsu-
portávelqueLuizCarloscometesuicídio,fatoquemarcarátodasuatrajetória
depensadora,militante,mulhernegra:“LuizCarlosfoimuitoimportantena
minhavida(...)elerompeucomafamília,coudomeuladoecomeçoua
questionar a minha falta de identidade comigo mesma(...) foi a primeira pes-
soaamequestionarcomrelação ao meu próprio branqueamento” (Gonzalez
apud Ratts e Rios, 2010, p.53).
O encontro com a Psicanálise para Lélia foi importante, pois lhe possibilitou
um encontro consigo mesma e a descoberta de um aporte teórico para pensar
atrajetóriadopovonegronoBrasil.AoestudarPsicanálise,maisespeci-
camente Freud e Lacan, ela se apropria de uma série de conceitos como, por
exemplo,acompreensãodedenegaçãoemqueaordemdoinconscientesurge
como um elemento importante para pensarmos a história cultural brasileira.
Nossasformaçõesinconscientessãoexclusivamenteeuropeias,brancas,em
queapresençanegraénegada.Alinguageméreveladoradesteprocessode
denegaçãoondemesmoquesetenteapagarostraçosdaancestralidadene-
gra em Nuestra América Profunda, em nossa Améfrica, como ela se refere,
a linguagem traz a marca da África. A linguagem não é apenas a mistura de
línguas,deumfalar“errado”,masumaformadesefazerresistênciadiante
da história de profunda violência que o povo negro viveu (e vive), quando faz
umadiásporaforçadadaÁfricaaoBrasil.Porisso,LéliafalaemPretuguês, de
umaafricanizaçãodobrasileiro,criandoassim,mecanismodere-existência.
Tudo isso levou Lélia a pensar uma categoria que não se restringisse apenas ao
caso brasileiro, trazendo uma abordagem interdisciplinar, a Amefricanidade:
“Paraalémdoseucaráterpuramentegeográco,acategoriadeAmefricanidade
incorporatodoumprocessohistóricodeintensadinâmicacultural(adaptação,
resistência,reinterpretaçãoecriaçãodenovasformas)queéafrocentrada”
(Gonzalez, 2020, p. 135).
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EstacategoriacriadaporLéliacarregaopensamentodeMoleKeteAsante
(2016) que nos fala sobre afrocentricidade. Para Asante, uma ideologia da
libertaçãodeveencontrarsuaexperiênciaemnósmesmos;elanãopodeser
externa a nós, deve ser derivada de nossa experiência histórica e cultural
particular. Por isso, o racismo surge como instrumento fundamental para a
interiorizaçãodasuperioridade.SilviaCusicanqui,quandoserefereaospo-
vosoriginárioidenticaomesmofenômeno,chamando-odecolonialismo
interno:
¿Por qué no podemos admitir que tenemos una permanente lucha en nuestra
subjetividadentreloindioyloeuropeo?esassoncuestionesdecolonialismo
interno y no de colonialidad, porque, porque hablar de colonialidad, es hablar
de una estructura vaga, ubicua, que describe a un ente externo a nosotros (el
estado, el poder). (2015, p. 311).
Estalutainternasereforçaatravésdomitodabranquitude,emquetodaima-
gem de superioridade, beleza, se vê encarnada no homem e mulher branca.
É importante destacar que a branquitude não é apenas uma questão de pele,
mas é toda a ideologia presente neste corpo e que muitos brancos e brancas
nemsequerquestionam,poisquestionarsignicadealgumaforma,sairde
seu lugar de privilégios.
Lélia se pergunta então, como podemos atingir a consciência efetiva de nós
mesmos, enquanto descendentes de africanos se permanecemos prisioneiros
“cativosdalinguagemracista”?Éprecisocriaroutralinguagem,poiscomo
nosdizAudre Lorde: “(...) as ferramentas do mestre nãovão desmantelar
aCasa-Grande”(1984,p.110).AAmefricanidadesignicaesteesforçode
encontrar a experiência negra, mas também indígena, de encontrar a América
Profunda, a Améfrica que nos habita! Lélia tinha consciência que não era vol-
tar à África, mas voltar nosso olhar para a realidade que vivem todos america-
nos em Nuestra Améfrica. Para isso, é preciso desconstruir o racismo presente
emnossasociedade,entranhadonasestruturas,nassubjetividades,nalingua-
gem. A ideologia do branqueamento produziu o mito da superioridade branca
e foi tão devastadora a ponto de provocar um processo de branqueamento e
(de)negaçãodaprópriaraçaeculturadenegroseindígenas.
Em seu texto Por um feminismo Afro-latino-americano (2020), Lélia volta a
se apropriar de categorias da psicanálise para compreender de que forma o
racismofoiseestruturandonasociedadebrasileira.Anal,comoexplicamos
umpaíscomoBrasil,queéosegundopaísdomundoemrelaçãoàquantidade
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de negros, viver de forma velada e, muitas vezes, escancarada o racismo? Os
negrossãovistoscomoinfantes,ouseja,comoaquelesquenãofalam,sendo
negadoodireitodefala.Outrosfalampelosnegros,apagandosuacondição
desujeitosdoprópriodiscurso.Léliapensacomoestaimagemconstruída
donegrotorna-seummecanismoimportantedemanutençãodoracismo.E
podemostambémvericarestacondiçãoemrelaçãoaosindígenasqueforam
durante muito tempo tutelados de diferentes formas pela política brasileira.
Ao falar de Améfrica, Lélia recupera a história de resistência dos povos ne-
groseindígenas,poisAméfricaé“reinterpretaçãoecriaçãodenovasfor-
mas”.OsQuilomboscomoespaçosderesistêncianaépocadaescravidão,
hojecontinuamexistindocomoumaatitudecoletivaderetomarespaçosque
foramnegados,comoporexemplo,aprópriaUniversidade.“Aquilombar-se
éoatopolíticodeassumirumaposiçãoderesistênciacontra-hegemônicaa
partir de um corpo político” (Souto, 2020, p.141).
Ao pensar a potência de uma categoria como Améfrica Profunda, quero res-
gataraforçaeimportânciadenarrarahistóriadepovosnegroseindígenas
desdeoutraspalavras,vivenciasebiograas.AméfricaProfundafaladisso,
do que existe de mais profundo, que não está na superfície da terra, mas em
suasentranhas.Paraquehajanarraçãosefaznecessárioaescuta,acolhimen-
to do dizer que rompe o tempo da linearidade e circula trazendo as vozes
de muitos e muitas. Por isso, pensar a interculturalidade desde perspectivas
afrobrasileiras e indígenas, nos arranca do solipsismo moderno-colonizador,
que trouxe a violência do apagamento do Outro, para construir diálogos, úni-
ca possibilidade de garantia do amanhã.
Ao nos colocarmos de frente com nuestra Améfrica Profunda, mergulhamos
na imensidão humana e não humana, de saberes, experiências, vidas múlti-
plas,palpitandonocoraçãodaterra.
Conclusões
Não tive a pretensão de esgotar (e nem poderia) as ideias de pensadores
comoFornet-BetancourteLéliaGonzalez.Aintençãofoitrazeroque,ameu
ver, permeia a possibilidade do diálogo entre ambos: o profundo compro-
missocomajustiça.AlutadeLéliaporummundosemracismo,emque
nossas diferenças pudessem ser riquezas e não fragilidades, também está
presente no pensamento de Fornet-Betancourt e em todo seu debate sobre
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ainterculturalidade.Ambosproduzemlosoasprofundamenteabertasao
Outro e por isso capazes de pensar sempre em diálogo.
A interculturalidade tem aparecido em muitos debates e parece ser o tema
domomento.Contudo,éprecisotercuidadocomadisputadesignicação
emtornodainterculturalidade.Nãoépossívelreconhecerquerelaçõesde
violênciasejaminterculturais.Ondeháviolência,barbárieouchoquedecul-
turas,comosecostumachamaro“encontro”docolonizadorcomospovos
ameríndios –não existe interculturalidade. Desse modo, se ainda vivemos
relaçõesdeexploração,racistas,patriarcaistemosjustamente,oimpedimen-
to de diálogos interculturais. Descolonizar e interculturalizar nosso tempo
torna-se um exercício único e urgente!
Fizaopçãopolítica-losóca(sempreinseparáveis)detrazerterritóriose
suasgentes,reetindoainter-relaçãoprofundaquealiexiste.Porisso,quan-
do falo de Améfrica Profunda, quero fazer emergir o húmus que brota da
terra e que se faz gente. Negros e indígenas viveram processos de expro-
priaçãodeterritóriosedeseuscorpos.Diantedaviolênciaaquilombaram-se,
aldeiaram-seconstituindoumespaçocomumderesistência;inventaramlin-
guagens para poderem se comunicar, cambiaram experiências espirituais, sa-
beres, afetos. Viveram assim a experiência de uma interculturalidade revolu-
cionáriaquepossibilitouacriaçãodeestratégiasparaalibertação.
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