Megamachine and human condition: ethical urgent issues in the technics’ world
Megamáquina e condição humana: urgências éticas no mundo da técnica
Alexandre Filordi de Carvalho
Universidade Federal de Lavras / Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico, Brasil
Universidad Federal de Lavras / Consejo Nacional de Desarrollo Cientíco y Tecnológico, Brasil
ISSN: 0123-5095 E-ISSN: 2389-9441
Cuestiones de Filosofía Vol. 10 - N° 35, julio - diciembre, año 2024, pp. 101-121
Artículo de Investigación
Resumen
El artículo examina el concepto de
megamáquina propuesto por Lewis
Mumford, planteando que la condición
humana está intrínsecamente ligada a
la constitución de esta estructura. La
hipótesis central sostiene que la condición
humana se dene en función de lo que
la megamáquina sincroniza: objetos
técnicos, técnicas y máquinas, lo que
plantea importantes dilemas éticos. El
texto se divide en dos secciones. La
primera, titulada “Máquinas, objetos
técnicos y tecnología: el esfuerzo humano
condensado en la armación productiva
de la expansión de la vida”, rechaza
una visión catastrosta de la técnica,
argumentando que la dimensión ética
de la vida está también entrelazada con
la historia de las técnicas. La segunda
sección, “El universo de la megamáquina
y la condición humana: preguraciones
éticas”, se centra en cómo la condición
humana es maquínica y requiere una
ética abierta, similar al concepto de
objeto técnico abierto de Simondon.
Finalmente, el artículo presenta varias
problemáticas éticas contemporáneas que
se ven profundamente afectadas por la
megamáquina, subrayando la constante
tensión entre lo técnico y lo humano.
Palabras clave: megamáquina, condición humana, ética, objeto técnico, tecnología.
Recepción / Received: 24 de febrero del 2024
Evaluado / Evaluated: 16 de abril del 2024
Aprobado / Accepted: 4 de junio del 2024
Historia del artículo / Article Info:
Correspondencia / Correspondence: Alexandre Filordi de
Carvalho. Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco
e Tecnológico, SHIS Q1, Conjunto B, Bloco D, 2º andar, sala
203, Brasilia, Brasil (Código Postal: 71.605-001). Correo-e:
alordi@gmail.com
Citación / Citation: Carvalho, A. (2024). Megamáquina e con-
dição humana: urgências éticas no mundo da técnica. Cuestiones
de Filosofía, 10 (35), 101-121.
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Abstract
The article examines the concept of the mega-machine proposed by Lewis
Mumford, arguing that the human condition is intrinsically linked to the
constitution of this structure. The central hypothesis is that the human
condition is dened in terms of what the mega-machine synchronizes:
technical objects, techniques and machines, which raises important ethical
dilemmas. The text is divided into two sections. The rst, entitled ‘Machines,
technical Objects and Technology: Human Endeavor condensed into the
Productive Armation of Life's Expansion’, rejects a catastrophist view
of technology, arguing that the ethical dimension of life is also intertwined
with the history of technology. The second section, ‘The Universe of the
Mega-Machine and the Human Condition: Ethical Pregurations’, focuses
on how the human condition is machinic and requires an open ethics, similar
to Simondon's concept of the open technical object. Finally, the article
presents several contemporary ethical problematics that are profoundly
aected by the mega-machine, underlining the constant tension between
the technical and the human.
Keywords: megamachine, human condition, ethics, technical objects,
technology.
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Carvalho, A. (2024). Megamáquina e condição humana: urgências éticas no mundo da
técnica. Cuestiones de Filosofía, 10 (35), 100-121.
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Delineamento geral
O que se pretende neste artigo é teorizar que a condição humana não se dissocia
da constituição da megamáquina tal como Mumford (1967; 2019) analisou
nos dois volumes de sua história das técnicas. Sem ignorar a amplitude e a
complexidade da questão “condição humana”, algo que Arendt (2017), ao
seu modo, exemplicou como denso objeto de investigação, neste artigo, a
condição humana é recepcionada na direção do entendimento acerca do que
também a “condicionou”. Tal perspectiva, alcançar-se-á na compreensão da
megamáquina e, por extensão, da relação dos objetos técnicos, das técnicas e
das tecnologias que estão em sua órbita.
Com isso, acena-se para o fato irrevogável de que, se a condição humana
supõe “existência condicionada”, a megamáquina teve papel decisivo em tal
“condição”. Aqui, pontualmente, a própria Arendt é de grande valia:
O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura relação com
ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana (...)
por ser uma existência condicionada, a existência humana seria impossível
sem coisas, e estas seriam um amontoado de artigos desconectados, um
não-mundo, se não fossem os condicionantes da existência humana (p. 17).
A deagração dessa condição foi a situação do Homem
1
no contexto do que
Mumford concebeu como megamáquina. Seu pensamento é amplamente
recepcionado, mas quase sempre indiretamente na losoa da técnica.
Winner (2017) e Marcuse (1999) atestam-no, porém, sem aprofundá-lo. O
artigo contribui para se recobrir uma lacuna importante, evidenciando, o
tempo todo, que a transformação humana é simultaneamente a mutação da
história das técnicas.
Se a condição humana não se dissocia da megamáquina, concebê-la como tal,
1 Não se despreza a relevância da dimensão woke das singularidades de gênero. Ao se mencionar
Homem no artigo, remete-se à condição humana prevalente no processo civilizatório desde a
megamáquina. O termo é conveniência nominalista, assim como se diz “a técnica”, “a tecnologia”,
“a máquina”. Ao mais, não se dispensa o mesmo registro teórico de Mumford: “Embora, por
conveniência, se possa falar de ‘Homem’, isto é apenas um truque de linguagem: porque, exceto
num sentido estatístico, não existe tal criatura uniforme e universal. Até à data, nenhuma estrutura
política, nenhuma ideologia, nenhuma tecnologia, nenhum tipo de personalidade prevaleceu em
todo o planeta. O Homem nunca foi homogeneizado” (2019, pp. 281-282).
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dispõem-se aspectos éticos decisivos traduzidos na conjuntura das decisões
do que o Homem pode fazer de si mesmo. Mas há de se considerar a tensão
resoluta entre o que está dado e as condições da megamáquina.
Para tanto, o artigo se subdivide em duas etapas. Na primeira, investe-se na
desmontagem de certo cenário catastróco acerca das técnicas. Alega-se a
indissociável ligação política com os artefatos, tal como dispôs Winner (2017),
uma vez que a história da tecnologia e a história política estão profundamente
entrelaçadas. A segunda etapa do artigo explora por que a condição humana é
maquínica, no sentido de Mumford. Ao cabo, o artigo enseja a hipótese geral
de que as urgências éticas contemporâneas são coextensivas ao complexo
cenário da megamáquina, tal como historicamente foram se produzindo.
Máquinas, objetos técnicos e tecnologia: esforço humano condensado na
armação produtiva de expansão da vida
Não são poucas as entradas analíticas com as quais alguém pode reforçar a
perspectiva tenebrosa e distópica de como a tecnologia estaria ameaçando
controlar a totalidade da vida humana. Em tal cenário, os objetos técnicos
assumiriam uma espécie de novo papel de servidão voluntária, porém, para
subjugar o grande soberano herdeiro do Humanismo: a capacidade arbitrária,
racional e discernida do indivíduo soberano para conduzir seu destino e
agir sobre o mundo. Autogoverno de si mesmo se situaria tão longe das
disposições das Luzes da Razão que até mesmo uma nova idade das trevas
prontamente emergiria.
A nova idade das trevas: a tecnologia e o m do futuro, de autoria do ensaísta
James Bridle (2019); Algoritmos de destruição em massa: como o big data
aumenta a desigualdade e ameaça a democracia, escrito pela pesquisadora
e matemática Cathy O’Neil (2020); A era do capitalismo de vigilância: a
luta pelo futuro humano na nova fronteira do poder, de autoria da professora
emérita da Harvard Business School Shoshana Zubo (2019); ou, ainda,
Fenomenologia do m: sensibilidade e mutação conectiva, do pensador
italiano Franco Berardi (2017), são exemplos relevantes.
Referida órbita acena para preocupações convergentes, não sem às vezes
dotadas de tom apocalíptico. O seguinte panorama grosso modo oferece
pistas precisas de certos aspectos: aceleração, em todos os níveis e sentidos;
violação de dados individuais; previsão de comportamento; modicação
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comportamental por inputs e outputs comunicacionais; ubiquidade de
vigilância; bolsão de perlização moral e política, de consumo, de gosto, de
nível de renda, intimidação algorítmica; bots; pontuação reputacional por
e-escores; robotização; automação; tele-estimulação; telemática; substituição
humana, no sentido de máquinas realizarem as mais distintas tarefas e
nalidades, enm, uma lista de alcance pouco esgotável.
Cowen chegou a vislumbrar na eciência presumida da articulação
privilegiada de certos objetos técnicos, notadamente os destinados a
aprimorar a capacidade de processamento, circulação e velocidade de dados,
de mercadorias e de pessoas, a “tirania da techne” (2014). E como em
qualquer relação tirânica, restaria aos súditos a teatralização do contentamento
subserviente ou a renúncia ousada, porém, perigosa e, quem sabe, mortífera.
Em ambos casos, restaria a cada um a incumbência de somente cuidar dos
escombros do fatalismo incontornável das fatais mudanças técnico-culturais.
Não obstante a tal cenário, o próprio Marcuse não se furtou a tensionar o fato
de que também “o progresso tecnológico possibilitaria diminuir o tempo e a
energia gastos na produção das necessidades da vida, além de uma redução
gradual da escassez” (1999, p. 103). Isso se deve ao fato de ele, inclusive
pautado por Mumford, não deixar escapar a importante ideia de que “a
tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos,
dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao
mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modicar) as relações
sociais” (p. 73).
O seu equívoco, contudo, ao menos na linha argumentativa que este artigo
assume, foi o de pensar que a era da máquina representa a descontinuidade
com outras eras, quiçá a era da Razão ou do Humanismo. No entanto, esse
fundo analítico se altera quando se assume a hominiscência conectada
e associada à máquina. O salto do homo sapiens para a sua armação na
condição humana deve-se também aos objetos técnicos dos quais a máquina
(Diamond, 2011), na acepção sintética das funcionalidades técnicas
empregadas com objetivos mediadores, modicadores e transmissíveis de
sua múltipla realidade, interveio nas potencialidades humana. Simondon,
então, está correto: “a maior causa de alienação no mundo contemporâneo
reside no desconhecimento da máquina” (2013, p. 31). Tal desconhecimento
sustenta a incompreensão do fato de que “a presença do homem nas máquinas
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é uma invenção perpetuada. E o que reside nas máquinas é realidade humana,
o gesto humano xado e cristalizado nas estruturas que funcionam” (p. 36).
O mesmo pode ser dito com relação aos objetos técnicos.
Se assim o for, os pesos na balança dos juízos acerca da relação Homem-
objetos técnicos e máquinas-tecnologia encontram-se avariados ou tendem
a ser parciais. Mumford (1967) ao aludir à “irracionalidade superior do
homem” permite outra entrada nesta questão. Mais do que contraponto
irônico às disposições racionais corretas aristotélicas ou à superioridade
da alma racional platônica, Mumford destaca a vasta capacidade desta
irracionalidade encaminhar-se para a “crônica disposição ao erro, à maldade,
à fantasia desordenada, à alucinação, ao pecado original, e até mesmo ao
mau comportamento socialmente organizado e santicado, como a prática do
sacrifício humano e a legalização da tortura” (p. 10).
O ponto crucial encontra-se no modo de Mumford sustentar que, assim
como a técnica é parte integral da alta cultura do Homem, a “irracionalidade
superior” também o é. Foi pela noção de megamáquina que ele foi capaz
de mostrar a correlação de grandes feitos da civilização, paradoxalmente,
atrelados à capacidade do engenho destrutivo ou aviltante. Exemplos são
abundantes: a perfeição geométrica das pirâmides do Egito, que exigiu
organização de trabalho eciente, está para a escravização gerenciada por uma
máquina militar
2
; a riqueza das obras sacro-cristã não apaga o antagonismo da
Inquisição e da Contra-Reforma; o aprimoramento do deslocamento humano
contemporâneo não prescinde do aperfeiçoamento técnico aplicado, antes
de tudo, ao uso militar: aviões, navios, comunicação, logística etc. Logo, na
mesma proporção que “não existe uma linha divisória clara entre o irracional
e o super-racional; o manuseio dessas dádivas (gifts) ambivalentes sempre
foi um grande problema humano” (p. 11). A tônica interessante reside no fato
de Mumford não dissociar razão ou irracionalidade da emergência do uso de
objetos técnicos e de toda tecnologia implicada na armação constituinte da
megamáquina.
O pano de fundo de ampla problematização situa-se na possibilidade de se
localizar neste “grande problema humano” da racionalidade-irracionalidade
2 Mumford localizará no Egito a constituição exemplar da primeira megamáquina. Ao longo do artigo
outras vezes a menção ao Egito surgirá. A repetição apenas respeita o objeto inicial da construção
analítica da megamáquina, el a Mumford.
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um nível de disposição da seguinte monta: o Homem, desde cedo, tomou
consciência da fatalidade inescapável de sua nitude e seus impasses éticos
não se distanciaram de como ele buscou superar tal nitude. Desde então,
desaá-la, afugentá-la e até tentar superá-la têm sido o móbil da gênese
criativa de objetos técnicos, de máquinas e de tecnologias que, associadas,
pudessem desenhar algum tipo de incursão para além dos limites interpostos
entre vida e nitude, buscando por certa espécie de mais-vida nos limites
da vida. Para Mumford (1967; 2019) as tecnologias associadas para tais
propósitos, na megamáquina, tornaram-se megatecnologias, fazendo, em
algum momento, convergir para si mesmas a responsabilidade de dar à luz
algum plano para o que se vislumbrava como impossível.
Ora, quando Simondon (2013; 2017) começou a fornecer condições analíticas
para situar a relação humana também com objetos técnicos no sentido valorativo,
ao modo de Mumford, estava assinalando que “modos de ser e de pensamento,
tipos de estrutura social que não podiam existir com indivíduos sem equipamento,
humanamente solitários, podem concretizar-se e estruturar-se graças a este
aporte, a este potencial enriquecimento” (Simondon, 2017, p. 350). Por extensão,
passou-se a ser imperativo considerar que o que “equipa” a tecnologia, reunindo
vasto conjunto de objetos técnicos, é a própria “antropotecnologia”, quer dizer:
(...) trabalho construtivo de antropotecnologia destinado a fazer dos
esquemas técnicos conteúdos da cultura, e fazer da tecnologia o equivalente
de uma lógica simbólica ou de uma estética. Esta perspectiva encontra
toda a sua signicação quando consideramos o objeto técnico não apenas
como um utensílio, um elemento de uso, de utilidade, um meio puro que
não vale senão através do m perseguido (...) mas como esforço humano
condensado, em espera, um ser virtual disponível, uma ação potencial.
Para tanto, é preciso modicar não somente o olhar, para puricá-lo,
mas também é necessário modicar também a operação técnica: deve-
se ter como objetivo constitui-lo como um objeto aberto, perfectível e
neotécnico, ou seja, depositário de um potencial evolutivo; este objeto no
deve ser uma coisa vendida, possuída, senão uma coisa que institui uma
participação (p. 350).
Máquinas, objetos técnicos, tecnologia condensam esforços humanos na
armação produtiva de expandir a vida, encontrar estratégias para enfrentar
as severidades da nitude da existência, projetando a vida também de modo
aberta. O não entendimento desse processo deagra o espírito fatalista com
relação às transformações aceleradas da antropotecnologia. Mas será que o
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que se pensa como questão atual não foi algo sempre mobilizadora? Cabe
ainda indagar: se “o objeto técnico aumenta a densidade do campo humano
de atividade [sendo] um suplemento da sociedade e de poder de ação, o
conjunto concreto é o par homem-máquina” (p. 350), o ponto de tensão
não repousaria na ignorância acerca justamente da condição irrevogável e
indissolúvel da realidade homem-máquina? E a partir daí, não é por ignorar-
se que “artefatos têm política” (Winner, 2017) que também se ignora a mútua
ligação da condição humana com o que aumenta a densidade do campo
humano, ou seja, os objetos técnicos?
O universo da megamáquina e condição humana: prenúncios éticos
A perspectiva eleita por Mumford (1969; 2019) para realizar sua história
das técnicas acaba por coincidir com o que Simondon (1997) consolidou
acerca do entendimento da antropotecnologia. Mumford (1967) entende que
civilização denota relação indissociável da xação da condição humana com
especícas instituições que, em princípio, sob a forma de reinados organizados,
imprimiram marcas insuperáveis nos modos pelos quais a antropotecnologia
foi também responsável por forjar o que veio a ser o Homem civilizado.
A face humana não é o despertar sem mediação maquínica e técnica. Por
conseguinte, a civilização é a história das técnicas no sentido que também
propugnava Simondon: “a realidade governada implica homens e máquinas”
(2013, p. 36).
Ora, quando Winner indaga se “as políticas internas da tecnologia e a política
como um todo podem ser tão facilmente separadas?” (2017, p. 206), cuja
resposta é negativa, ele oferece condições para se saber que não é possível se
distanciar da concepção de que toda invenção técnica implicou diretamente
no contorno da constituição humana. O melhor exemplo pode ser auferido
da invenção da roda. Diamond (2001) monstrou que as transformações
marcantes na história humana têm a sua dependência direta: deslocamentos,
transportes de volumes cultiváveis em proporções maiores, edicações
grandiosas –o caso das pirâmides do Egito, por exemplo–, a modicação
do nomadismo para o sedentarismo, a aceleração de migrações etc. Assim,
quando Simondon sustenta que “no objeto técnico está o humano” (1997, p.
434), considera-se a permanente implicação de que a mínima alteração em
um componente concerne na mesma direção ao outro
Não se trata, então, de se pensar civilização como saída da barbárie e da
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Carvalho, A. (2024). Megamáquina e condição humana: urgências éticas no mundo da
técnica. Cuestiones de Filosofía, 10 (35), 100-121.
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selvageria, recoberta pela lei, justiça, urbanidade, civilidade e racionalidade,
impulsionando a vida para um estado de aperfeiçoamento humano até a
chegada ao seu acabamento. Para Mumford (1967), a civilização conectada
diretamente à constituição, organização e funcionamento da megamáquina,
cujas proporções se xam na história longa da transmutação dos sistemas
sociotécnicos, foram e ainda são imprescindíveis para um propósito comum:
a luta contra os limites da natureza e da vida.
Pode-se dizer que a concepção de megamáquina em Mumford (1967), de modo
geral, compreende a sistematização convergente de como objetos técnicos
alcançando amplicação funcional pela aplicação de anidades tecnológicas
ecientes compuseram valores referenciais decisivos, precisos e irrevogáveis
para as composições produtivas humanas. Incluem-se aí as formas diretas e
indiretas que o avanço da tecnologia inuenciou na plasticidade humana e nos
modos organizacionais em torno do trabalho, da alimentação, do vestuário,
da organização coletiva, da autodefesa, da previsibilidade eciente etc.
Na megamáquina, as formas materializadas de processos tecnológicos, cuja
síntese primordial, inicialmente, é a máquina, lateja uma espécie de memória
incorporal. Suas conexões, valendo-me da ideia de Guattari (1999), delineiam-
se como phylums, ou seja, conexões em profundidade e extensas. Portanto, o
que se conecta à megamáquina contém dinâmica de conteúdo-expressão que
vai aperfeiçoando a originalidade técnica. A megamáquina, ao seu modo, é
sempre transdutiva, pois o que a individualiza concerne às mutações virtuais
de suas conexões. Poder-se-ia, ao modo de Simondon, armar que ela é
transdutiva porque a transdutividade “é o passo de um conjunto constituído
para um conjunto a constituir. Nesse sentido, é transdutivo o que se transmite
passo a passo, o que se propaga com eventual amplicação” (1997, p. 437).
A megamáquina alcançou dimensão de matriz referencial global no sentido da
relação constante da permanente luta humana a favor da criação de sistemas
sociotécnicos capazes de aprimorar o alcance de suas realizações, com maior
eciência e com o menor dispêndio de energia possível, ela também foi se
especicando na relação direta com a vida. A invenção de qualquer objeto
técnico cumpriu e segue cumprindo seu papel nessa direção. O papel da
megamáquina na ordem civilizatória, em Mumford, está também para “a
nossa atual eliminação de todos os limites, só possível graças aos progressos
da ciência e da técnica, que revela a verdadeira natureza desta cultura e o seu
110 Cuestiones de Filosofía No. 35 - Vol. 10 Año 2024 ISSN 0123-5095 Tunja-Colombia
destino escolhido” (1967, p. 262).
No universo da megamáquina situam-se tais condições, embora seja verdade
que, junto com elas, também irracionalidades foram introduzidas pela
megatécnica ao ponto de o homem se ver reduzido a um “servo-mecanismo
na megamáquina” (p. 278). Elas demonstram a disposição sempre tensa
da relação constituinte de uma causa nem sempre fácil de se compreender:
o humano não é condição constituída e dada, porém, constituinte e sem
dissociação dos aparatos técnicos. Na mesma interface das dimensões
estéticas, éticas e políticas, o caráter técnico passa também a ser irrevogável
no que o Homem vem a ser. O que está em jogo é sempre uma ordem
tensional. A característica fundamental da civilização aí se situa.
Duas observações de longo alcance são imperiosas nesse cenário civilizador.
Observação primeira, extraída de Mumford:
As suas principais características [a da civilização], constantes em proporções
variáveis ao longo da história, são a centralização do poder político, a
separação das classes, a divisão vitalícia do trabalho, a mecanização da
produção, a ampliação do poder militar, a exploração econômica dos fracos e a
introdução universal da escravidão e do trabalho forçado para ns industriais
e militares. Estas instituições teriam desacreditado completamente tanto o
mito primordial da realeza divina como o mito derivado da máquina, se
não tivessem sido acompanhadas por um outro conjunto de características
coletivas que merecem ser admiradas: a invenção e manutenção do registo
escrito, o crescimento das artes visuais e musicais, o esforço para alargar
o círculo de comunicação e as relações econômicas muito para além do
alcance de qualquer comunidade local (p. 186).
A segunda observação, agora derivada do pensamento de Simondon, assim
argumenta:
Mas o maquinismo não é a totalidade da tecnologia; a descoberta da ecácia
dos microrganismos no domínio técnico (Pasteur) ofereceu novas bases à
relação entre as espécies vivas e o homem; além disso, o desenvolvimento
de uma indústria mais poderosa, desenvolvida por uma espécie humana
mais numerosa, reduziu progressivamente a reserva da natureza selvagem.
Atualmente, a Terra no seu conjunto parece cada vez mais um jardim
fechado; não só a atmosfera das cidades, mas a atmosfera no seu conjunto e
todos os oceanos estão ou podem estar poluídos; a utilização de pesticidas
modica as espécies vivas no mundo inteiro no que diz respeito ao seu
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Carvalho, A. (2024). Megamáquina e condição humana: urgências éticas no mundo da
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equilíbrio mútuo; os antibióticos modicaram gerações de micróbios;
a utilização de pesticidas modicou o equilíbrio das espécies vivas no
mundo; a utilização de antibióticos modicou o equilíbrio das espécies
vivas no mundo inteiro; a utilização de antibióticos modicou o equilíbrio
das espécies vivas no mundo inteiro (1997, pp. 168-169).
A denúncia de Mumford acerca de um mito fundante acerca das benesses
da mecanização, ou melhor dito, dos avanços técnicos, é contrastada pela
inequívoca prova de que os baixios profundos da humanidade nunca deixaram
de ser uma tensão afeita também à força, inclusive no seu sentido de aplicação
subjugadora. A megamáquina organizou imediatamente as funcionalidades
dessa força. O que a história da técnica a saber são impasses constantes
no árduo equilíbrio da capacidade construtiva e destrutiva da megamáquina.
Hipoteticamente, um enunciado de grandes proporções poderia ser delineado
nos seguintes termos: a história da megamáquina está para a das técnicas,
revelando que um dos condicionantes fundamentais da vida humana é o
aperfeiçoamento da megamáquina e sua ligação com tal vida; da megamáquina
e a partir dela situam-se os impasses humanos acerca do que fazer com a
nitude da existência. Em grande medida porque a manutenção da vida pelo
trabalho e as superações de certas limitações a ela inerente, desde a emersão
da megamáquina, supõem a relação direta máquina-corpo. Ao ignorar essa
trajetória, a corrosão crítica acerca da dependência da tecnologia em dias atuais
e de como ela modica o que “é” humano deixa de vislumbrar os phylums da
própria forja do que é por demasiado humano: a emersão da megamáquina é
igualmente a assombrosa invenção da condição humana civilizada.
Em questão está o encontro da concretude da máquina com o incorpóreo de sua
correlação na composição humana. Aqui se dispôs a politização dos artefatos,
pois a manipulação de uma roldana, a localização de qualquer engrenagem
ou a ativação de uma técnica, que seja a de dominar e domesticar o fogo ou
o fungo, não são apenas a execução do aperfeiçoamento de uma função que
foi se especializando, mas um modo direto de se conviver existencialmente
com a ação daí virtualmente produzida.
Aproxima-se dessa vertente aquilo que Simondon acima expôs com relação
à técnica de domínio microbiológico, a partir da pasteurização concebida por
Pasteur. A variação de objetos em causa permitiu a transdução da técnica,
isto é, do que se processava antes e depois de como os microorganismos
patogênicos seriam controlados em determinados tipos de alimentos. Com o
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avanço na demanda vertiginosa por alimentos, atrelada à queda de culturas de
plantio familiar, na medida que a civilização se industrializava, o phylum da
pasteurização pode ser seguido até à chegada dos alimentos ultraprocessados,
notoriamente conhecidos por sua relação com o desenvolvimento de tumores,
dado o grande volume de conservantes ao quais recorrem.
Na disposição dessas ocorrências torna-se inegável o valor político recorrente
na vinculação Homem-máquina-técnica. Winner reforça este posicionamento:
As coisas que denominamos de “tecnologias” são modos de construir ordem
em nosso mundo. Muitos equipamentos e sistemas técnicos importantes na
vida cotidiana contêm possibilidades de ordenar a atividade humana de
muitas maneiras diferentes. Consciente ou inconscientemente, deliberada
ou inadvertidamente, sociedades escolhem estruturas para tecnologias
as quais inuenciam de forma duradoura como as pessoas trabalham,
comunicam, viajam, consomem e assim por diante. No processo pelo
qual decisões estruturantes são tomadas, diferentes pessoas estão situadas
diferentemente e possuem níveis desiguais de poder, bem como níveis
desiguais de consciência (2017, p. 217).
O feito benéco de tecnologias, nessa proporção, não anula a possibilidade
maléca em outra, inclusive, na alusão feita por Simondon, de se chegar
até à criação das armas biológicas. O que está em jogo, em termos
mumfordianos, é que se a entrada na civilização foi, ao mesmo tempo,
um passo adentro no portal da megamáquina, é desde que se dispõem
tensões inequívocas aos usos dos objetos técnicos, das máquinas e de tudo
que integra a o ser-com a megamáquina.
Consequentemente, a concepção de megamáquina é fundamental para se
entender as razões pelas quais os apocalípticos da técnica e da tecnologia
incorrem na pragmática ostensiva às vezes equivocada. Dá-se assim por
ignorarem que a condição humana na “era da megamáquina” (Mumford,
1967) simultaneamente foi a da megatécnica: a realização da máquina-
condicionadora, isto é, perlada à condição humana para proporcionar
maneiras capazes de se criar e de se aumentar a ordem, o poder humano, a
previsão e o controle. Assim se pode compreender os argumentos abaixo:
(...) a megamáquina multiplicou o resultado (output) da energia e executou
o trabalho numa escala nunca antes concebível. Com esta capacidade de
concentrar imensas forças mecânicas, entrou em ação um novo dinamismo,
que superou, pelo simples ímpeto das suas realizações, as rotinas lentas e as
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técnica. Cuestiones de Filosofía, 10 (35), 100-121.
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inibições mesquinhas da cultura das pequenas aldeias” (p. 190).
O ponto chave situa-se na necessidade de se enxergar no recuo do encontro
Homem-técnica-máquina a renúncia da ingênua anunciação de que apenas
contemporaneamente a vida humana vem padecendo com alterações
assombrosas, marcantes e vertiginosas. A megamáquina está próxima da
realização técnica de um objeto aberto. Apesar de sua passagem pelo tempo,
como desgaste ou alteração qualitativa, ele detém uma ontogênese voltada
para melhorias e renamentos de eciência, obtendo certa base de perenidade
no esquema fundamental de sua criação. Da roda de pedra à de madeira
bruta, passando-se pela roda de metal fundido até as de aros, alcançando-
se a primazia de composições múltiplas –madeira revestida por borracha–
chegando-se à forma pneumática, com intenso uso e difusão universal, seu
registro evolutivo é alcançado senão por intermédio de seu design inicial.
Não quer dizer, contudo, que os poderes consumados na megamáquina
vislumbrem apenas a eciência da técnica para a cura, o m da escassez, o
combate à desigualdade social etc.
Da megamáquina seria correto pronunciar a mesma sentença de Simondon
para os objetos técnicos: “o objeto técnico tem múltiplos valores. Primeiro,
é algo que provém de uma atividade muito antiga do homem e que é
provavelmente a que o tirou da barbárie. Mas nele também está o valor
de que é o resultado de uma concretização da origem humana” (1997, p.
438). Ainda nesse patamar, vale a concepção de que “um objeto técnico
nunca é completamente conhecido; inclusive, por essa razão, tampouco é
completamente concreto” (2013, p. 438). Tirar da barbárie não é o mesmo
que anular as potencialidades deletérias ou opressoras de certa aplicação e
uso do objeto técnico pela megamáquina.
Nesse ponto preciso intervém a inescapável dimensão política da técnica. Em
torno dela, o chamado civilizatório de sua criação transdutiva, somada ao
seu uso e à sua partilha, desde o primeiro engendramento na megamáquina,
forçosamente empenha a condição humana no caráter ético do que a
consciência da dimensão política da técnica por bem alcançar. Winner
outra vez mais é preciso:
(...) inovações tecnológicas são semelhantes a atos legislativos ou a
decisões politicas que estabelecem uma estrutura para a ordem pública a
qual irá subsistir por muitas gerações (...) As questões que dividem ou unem
114 Cuestiones de Filosofía No. 35 - Vol. 10 Año 2024 ISSN 0123-5095 Tunja-Colombia
as pessoas na sociedade estão assentadas não somente nas instituições e
nas práticas da política propriamente dita, mas também, e de modo menos
óbvio, nos arranjos tangíveis de aço e concreto, os e semicondutores,
porcas e parafusos (2017, p. 206).
Considerando esse amplo horizonte, há de pontuar-se que Mumford (1967)
fez a distinção entre a primeira megamáquina e a megamáquina moderna.
No caso da primeira megamáquina, seria correto armar que ela convém
à emersão do Estado, entendido como a maneira civilizacional prevalente
de organização da condição humana que, ao seu modo, estendeu-se até dias
correntes. A megamáquina moderna não prescinde do Estado. Mas o que tal
conjuntura anunciou especicamente para o plano técnico e tecnológico?
A alegação de Mumford (1967; 2019) é que o Estado não teria se constituído
sem a megamáquina. Por sua vez, a megamáquina ganhou consistência
devido às ordenanças necessárias do Estado para hierarquizar, controlar o
trabalho, demandar força produtiva, inclusive por escravização, defender-
se de ataques de outros poderes soberanos, produzir alimentos em grandes
proporções, organizar a burocracia dos registros com ns de previsibilidade
e sucessivamente. Ora, procedendo a ideia de que era contra a nitude da
existência que os objetos técnicos passaram a ser agenciados na megamáquina,
apesar de toda dimensão crítica de como o Estado monopolizou o poder em
torno do Homem-técnica-máquina (Mumford, 2019; Scott, 2017), o Estado
seria a utopia consagrada na realização da megamáquina visando a “vida
eterna”: “O desejo de uma vida sem limites fez parte da superação geral dos
limites que a primeira grande reunião de poderes por meio da megamáquina
provocou. As fraquezas humanas, sobretudo a fraqueza da mortalidade,
foram contestadas e desaadas” (Mumford, 1967, p. 202).
A megamáquina, com efeito, foi uma espécie de alinhamento primeiro
condicional para o prosseguimento dos estágios avançados da vida organizada
em Estado. Desde logo, o fato de Mumford considerar que “sem a submissa
e a obediência irrestrita à vontade real, transmitida pelos governadores,
generais, burocratas, mestres de obra, a máquina nunca teria sido viável” (p.
190), revela a forma pela qual a megamáquina fez convergir poder político
com controle, poderio militar com coerção, fé com realização superável.
É nesse propósito que a megamáquina fez alinhar três instâncias de poderes
fundamentais à vida do Estado: política, trabalho e religião. A política é
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Carvalho, A. (2024). Megamáquina e condição humana: urgências éticas no mundo da
técnica. Cuestiones de Filosofía, 10 (35), 100-121.
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uma espécie de poder não localizável, mas cujas mostras de realização são
pontuais. Técnicas e máquinas usadas na construção das pirâmides do Egito
também resguardariam o fascínio pela vida eterna. A técnica na mumicação
prenuncia a grandiosidade do túmulo, coextensiva à orientação do poder
político, fazendo eclodir a “Era dos Construtores” onde “novas cidades
surgiam deliberadamente como simulacro do Céu” (p. 208), designando atos
soberanos da capacidade de transformar a realidade. Ao mesmo tempo, nada
disso era possível sem roldanas, cortes de precisão em pedras a partir de
instrumentos especícos, matemática e geometria rigorosas, força de trabalho
controlada e organizada, vigilância, transporte, logística, desmatamento etc.
Na megamáquina, técnica e tecnologia ganharam contornos na proporção
da viabilização da política como estratégia de integração das partes ao
todo. A necessidade de se comunicar ordens e dissipá-las com eciência,
observando-se seus restritos cumprimentos, fez-se comungar planos
abrangentes de redes de locomoção, de registro, de controle e assim por
diante. Para tanto, foi necessária uma máquina militar capaz de assegurar
tal integração, também ativa na manutenção do que haveria de se executar
sob ordens régias e aperfeiçoado sob a inovação do “comando”. A máquina
militar, de certo modo, sempre foi um laboratório de invenções técnicas
voltada para a eciência: “(...) de fato, através do exército, o modelo padrão
de megamáquina foi transmitido de cultura para cultura” (p. 192). Mas nada
disso se alcançaria sem a na megamáquina, isto é, nas promessas críveis
de seus efeitos realizáveis na vida. de se recordar que a fé, sobretudo
por intermédio da religião ocial ou daquelas autorizadas pelo Estado,
com seus templos, foi fundamental na invenção de técnicas de registro,
de observâncias de etapas de procedimentos –algo tão fundamental para a
ciência– , de replicação e sistematização de verdades, em suma, de técnicas
artísticas detalhadas e renadas. Na megamáquina, vale lembrar, “não é por
acaso que os primeiros usos da escrita não eram para transmitir ideias, mas
para manter registos no templo de cereais, gado, cerâmica, bens fabricados,
armazenados e distribuídos” (p. 192).
Dispondo a megamáquina nesse cenário, chega-se à seguinte conclusão:
Esta megamáquina era composta por uma multiplicidade de peças
uniformes, especializadas, permutáveis mas funcionalmente diferenciadas,
rigorosamente reunidas e coordenada num processo centralmente organizado
e centralmente dirigido: cada peça comportava-se como um componente
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mecânico do todo mecanizado (p. 196).
A chegada à megamáquina moderna não é outra coisa senão a história movente
de como a primeira megamáquina, mantendo o phylum do que se dispôs com
o surgimento do Estado, logo, pela máquina política, burocrática, militar, de
produção técnica e de trabalho, tornou-se praticamente universal. Em outros
termos, tão abrangente que a vida mesma se tornou um passo decisivo na
direção da tecnologia, queira-se ou não. E, sendo assim, “a máquina é o meio
pelo qual o homem se opõe à morte do universo; ela retarda, como a vida,
a degradação da energia e torna-se um estabilizador do mundo” (Simondon,
2013, p. 38). Sob tal conjuntura, a megamáquina dispõe tensões dela derivadas
do ponto de vista ético com relação aos posicionamentos inegociáveis para o
plano civilizatório.
Considerações nais: megamáquina e permanência da vida
Como se viu na primeira parte do artigo, nem sempre o que se pretende
cientíco atenta aos cuidados urgentes das ciências antes mesmo de prenunciar,
não sem viés de conrmação, o gosto pelo monopólio de perspectivas.
Ao se argumentar em torno da tensão existente entre condição humana e
megamáquina, o que se pode aferir é uma contínua necessidade de tomada
de posição sem prejuízo da própria constituição humana. Por conseguinte, é
inegável a prevalência de componentes técnicos, intercessões tecnológicas e
expansão da máquina. A tensão, ainda que considerada a forma primordial
das narrativas mitológicas, simbolicamente, expõe o antagonismo racional-
irracional a perpassar a história das técnicas, desde a primeira megamáquina.
Com certa ironia, mas dosado de modo procedente, Mumford, de um jeito
farto, anunciou tal dimensão da seguinte maneira:
No período da “civilização” mais antiga, de 3.000 a 600 a.C., o impulso
formativo para exercer um controle absoluto sobre a natureza e o homem
oscilou entre deuses e reis. Josué ordenou que o sol se detivesse e destruiu
as muralhas de Jericó com música marcial; mas o próprio Jeová, num
momento anterior, antecipou a Era Nuclear destruindo Sodoma e Gomorra
com uma única visitação de fogo e enxofre; e um pouco mais tarde até
recorreu à guerra de germes para desmoralizar os egípcios e ajudar na fuga
dos judeus.
Em suma, nenhuma das fantasias destrutivas que se apoderaram dos líderes da
nossa época, de Kemal Ataturk a Hitler, dos Khans [referindo-se a Gengis Khan]
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do Kremlin aos Khans do Pentágono, eram estranhas às almas dos fundadores
divinamente designados da primeira civilização da máquina. Com cada
aumento de poder efetivo, impulsos extravagantemente sádicos e assassinos
irromperam do inconsciente. Este é o trauma que distorceu o desenvolvimento
subsequente de todas as sociedades “civilizadas” (1967, p. 204).
A dimensão ética interposta entre a condição humana e a megamáquina
contemporânea se localiza na constante relação com o aumento de poder
efetivo da megamáquina. Essa condição está dada e é incontornável.
Posturas beligerantes no sentido de desonrar a vinculação do Homem com
objetos técnicos e tecnologia não contribuem para a inventividade de outras
relações na civilização atual e os desaos a ela interpostos pela megamáquina
contemporânea. Nela, a junção de máquinas, objetos técnicos e tecnologia
se fundem cada vez mais de modo inconteste. Aqui, a condição humana é
antropotecnológica.
Modicações demandadas no plano social são justicadas na medida que
implicam na alteração da socialidade como meio de se continuar a enfrentar
o que, desde a emersão da megamáquina, interpôs-se decisivamente: a
superação das necessidades e das contingências na nitude da vida. A
convivialidade com a técnica faz parte da condição humana. O que daí se
deriva é o ponto ético atrelado às escolhas de mais-vida. Desse ponto de
vista, o alerta de Simondon é prevalente:
Acusamos o objeto técnico de fazer do homem um escravo: é perfeitamente
verdade, mas o homem é, na realidade, escravo de si próprio, porque o aceita
quando se entrega aos objetos técnicos; entrega-se a eles como se entrega a
alma ao diabo, por desejo de poder, de glória ou de riqueza; a tentação não
vem do objeto, mas daquilo que o sujeito julga ver no objeto que medeia
(1997, p. 249).
Nessa medida, o ver a si mesmo implica com ver-se no conjunto da
sociedade, porém, com outras mediações. Atribuir-se aos objetos técnicos
a corrosão do caráter humano é tão equivocado quanto conceber a condição
humana civilizada destituída das franjas da megamáquina. Se Berardi estiver
minimamente correto ao armar que “em baixa complexidade, a razão política
era capaz de mudar a organização social de maneira tal que pudera surgir um
novo padrão” (2017, p. 248), resta dizer que referida “baixa complexidade” só
pode ser localizada antes da era da primeira megamáquina. Por decorrência,
se se vive em um tempo de alta complexidade, inclusive devido os saltos
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evolutivos da tecnologia, é certo que as respostas intervenientes nessa
complexidade fracassar-se-ão na medida que replicam parâmetros éticos
desvinculando o Homem da máquina, dos objetos técnicos e da tecnologia.
Face à megamáquina, a mediação ética haverá de ser também semelhante
à transdução do objeto técnico, isto é, uma individuação em progresso,
logo, afeita aos contextos para os quais a condição humana se premida
a continuar a fazer da superação de seus limites a incursão na modicação
histórica de si mesma.
A compreensão da megamáquina, como foi exposto, é um passo importante
na recepção cautelosa de uma circunscrição problematizadora que, apesar
de atual e urgente, nunca deixou de acompanhar a constituição civilizada do
Homem. A primeira megamáquina já prenunciou o que hoje se enxerga como
exclusividade de época: mudança radical no tempo da ação, nas decisões, no
encurtamento das distâncias, na percepção do mundo, na afetação da vida ou
na instauração do controle, do comando à distância, da vigilância etc. Desde
a xação da megamáquina na história humana, prevaleceu-se para a condição
humana o propósito decisivo de que existir é coexistir com máquina, objetos
técnicos e tecnologia. Juntos, eles compuseram o que permanece: fornecer
uma quantidade aberta de possibilidades a m de se alargar e assegurar-se a
permanência do Homem na vida, por sinal, vida antropotecnológica.
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