Vol. 29, 2025
https://doi.org/10.19053/uptc.0120-7105.eyc.2025.29.e17542
Representações cartográficas da infância: demandas por justiça
existencial no Rio de Janeiro
Vinícius De Luna Chagas Costa1
Resumen
Esse artigo reflete sobre as narrativas de crianças que circulam pela cidade do Rio de Janeiro. Isso significa considerar os deslocamentos de seus estudantes, moradores de diversos locais da região metropolitana, e as relações que estabelecem com os espaços. Na tentativa de compreender as formas infantis de vivenciar o modelo espacial urbano e suas singularidades, houve a necessidade de se estudar os caminhos cotidianos e territórios. Essa perspectiva de análise se ancora em três categorias importantes: o espaço urbano e a questão racial; o pensamento decolonial e as experiências infantis; e as concepções de infância e crianças. A ideia da pesquisa com crianças implicou uma opção política horizontal, a partir da espacialização da vida dos estudantes. Vigotski, teórico da perspectiva histórico-cultural, foi um interlocutor importante na compreensão das crianças como seres de linguagem, estabelecendo um elo com a geografia da infância no que diz respeito a pensar a condição humana situada no espaço e no tempo. A metodologia empregada foi a pesquisa qualitativa, a partir da observação e do registro das vivências espaciais infantis por meio de rodas de conversa realizadas com estudantes de uma turma do Ensino Fundamental. A investigação permitiu identificar quais são os lugares infantis que se constituem na cidade e suas demandas por justiça existencial.
Palabras clave: infâncias; vivências espaciais; teoria histórico-cultural; cidades; pesquisa com crianças.
1Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua Barão de Itapagipe, 96 - Rio Comprido (Rio de Janeiro) Brasil.
Correo electrónico:
viniciusgeografo@gmail.com
Como citar: De Luna Chagas Costa, V. (2025). Representações cartográficas da infância: demandas por justiça existencial no Rio de Janeiro. Educación y Ciencia, 29. https://doi.org/10.19053/uptc.0120-7105.eyc.2025.29.e17542
Historia del Artìculo
Recibido: 26/Julio/2024
Revisado: 27/Septiembre/2024
Aprobado: 04/Noviembre/2024
Publicado: 20/Marzo/2025
Representaciones cartográficas de la infancia: demandas de justicia existencial en Río de Janeiro
Resumen
Este artículo reflexiona sobre las narrativas infantiles que circulan en la ciudad de Río de Janeiro. Esto implica considerar los movimientos de sus estudiantes, residentes en diferentes lugares de la región metropolitana, y las relaciones que establecen con los espacios. En un intento por comprender las formas en que los niños experimentan el modelo espacial urbano y sus singularidades, fue necesario estudiar caminos y territorios cotidianos. Esta perspectiva analítica está anclada en tres categorías importantes: el espacio urbano y las cuestiones raciales, el pensamiento decolonial y las experiencias y concepciones de la niñez y los niños.
La idea de investigar con niños implicó una opción política horizontal, basada en la espacialización de la vida de los estudiantes. Vygotsky, teórico desde la perspectiva histórico-cultural, fue un interlocutor importante en la comprensión de los niños como seres de lenguaje, estableciendo un vínculo con la geografía de la infancia en lo que respecta al pensamiento sobre la condición humana situada en el espacio y el tiempo. La metodología utilizada fue una investigación cualitativa basada en la observación y registro de las experiencias espaciales de los niños a través de círculos de conversación producidos con estudiantes de una clase de educación primaria. La investigación permitió identificar qué lugares infantiles se constituyen en la ciudad y sus demandas de justicia existencial.
Palabras clave: infancias; experiencias espaciales; teoría histórico-cultural; ciudades; investigación con niños.
Introdução
Para uma releitura do cotidiano nas cidades, ao considerar as infâncias, é conveniente compreender as práticas dos sujeitos e os diferentes usos do espaço, elemento fundamental da vivência humana. Ou seja, parte do postulado do Grupo de Pesquisa Geografia da Infância (Mello e Lopes, 2023). Sem dúvida, vale reiterar que o espaço não só participa ativamente da vida cotidiana, como constitui sua própria condição de existência. Também está na gênese do campo do saber geográfico.
Para o professor Jader Janer Moreira Lopes (2009), autor responsável pela defesa argumentativa da vivência do espaço em sua plenitude geográfica, a grande questão é assumir nossa condição humana na relação com o mundo, para além da vivência física. Nessa abordagem, frisa-se a unidade entre o mundo físico, a experiência sensório motora e o simbólico. Não estão dicotomizadas, como apartados no mundo, mas sempre em coesão e constantes forças constitutivas.
A vivência é, portanto, uma união indivisível entre a personalidade humana e a particularidade do lugar (meio). Essa corporificação reúne espacialidades, superpostas, integradas, que se tornam evidentes pelas formas espaciais, que em conjunto configuram as paisagens geográficas. A discussão sobre as vivências infantis na cidade do Rio de Janeiro surge durante a transcrição das entrevistas realizadas com crianças do quinto ano do Ensino Fundamental do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira — CAp-UERJ. Trata-se, portanto, de um recorte de pesquisa de doutorado realizada em 2023, relacionada à questão da justiça existencial das crianças citadinas. São as narrativas das crianças, em sua condição espacial, que marcam sua humanização e a criação do novo.
No CAp-UERJ, as rodas de conversa se apresentam como uma experiência curricular que permite um espaço importante de negociação e escuta sensível, estando presente no cotidiano escolar. Trata-se de um espaço de enunciação proposto pelos professores dos anos iniciais, privilegiando a alfabetização cartográfica. É assim que, nesse ato dialogal e carregado de sentidos, foi possível compreender as vozes das crianças. As rodas acontecem entre sensações e posturas discursivas. Acontecem como uma estratégia pedagógica ao colocarem a criança no centro do processo de ensino-aprendizagem, com base na oralidade.
Uma proposição política que está para além de uma mera concepção locacional, reduzida a um ponto fixo. Essa forma de pensar pretende introduzir a lógica de uma multiplicidade espacial, além do instituído, do fixo e até do negado. Nesse sentido, além de ser condição de existência, a vivência pode ser considerada uma expressão das dinâmicas biológicas, físicas e das ações sociais. É a corporificação das ações sociais no tempo, isto é, a corporificação da história da sociedade, em movimentos que se fazem em culturas. Lopes diz que é preciso perceber “a vivência do espaço como interação, como processo e não como palco, local de passagem ou superfície ocupada; o espaço não é concebido como métrico, como extensão, mas com intensidade” (Lopes, 2009, p.129).
Assim, como humanos, temos o espaço como um elemento constituinte, mediado pela cultura. Na sociedade da qual fazemos parte, temos a indissociabilidade entre ser, estar e mundo. O mapa a seguir traz à tona vivências e eventos históricos que são situados nesses lugares cotidianos. Para Lefebvre (2000), a condição geográfica do espaço remete a um conjunto de produções sociais, marcas humanas dentro de uma perspectiva pluriversal, que emergem de contextos culturais específicos. O sociólogo francês explica que as relações sociais se apropriam do espaço preexistente, reorganizando-o.
Desse modo, entendo que o espaço urbano se converte num lugar de encontro (Massey, 2000), onde a vida se realiza em conexão com redes de relações e entendimentos sociais. A autora afirma ainda que os lugares não têm fronteiras fixas no sentido demarcatório, pelo menos enquanto forem pensados sob uma perspectiva progressista onde “qualquer explicação adequada tem de colocá-lo em seu contexto geográfico mais amplo” (Massey, 2000, p. 184).
Metodologia
Para este trabalho, além de uma breve revisão bibliográfica em torno do espaço urbano, tomo como metodologia os mapas vivenciais, estabelecendo como referência as infâncias em sua singularidade, ao partir do sujeito para a sua representação:
(...) estabelece-se como uma metodologia de pesquisa que tem como foco central desvelar os espaços pessoais e sua significância para os sujeitos que os vivem. Trata-se de um procedimento que utiliza recursos visuais, mais especificamente representações cartográficas que são combinadas com narrativas biográficas, revelando os espaços vivenciados a partir do presente por crianças e espaços de infância existentes nas memórias e lembranças dos adultos. Buscando relacionar espaço geográfico com o tempo histórico (com todas as suas formas, atributos e categorias), essa metodologia reconhece os sujeitos na interface dessas dimensões, onde se encontram a história pessoal, subjetiva e ao mesmo tempo coletiva. Os mapas narrativos permitem compreender as temporalidades e espacialidades formadoras do humano e formadas pelo humano, enquanto, simultaneamente, desvelam características singulares de nossas experiências no mundo, permitindo que esse mundo se expresse a partir dos sujeitos. Essa forma de fazer pesquisa está referenciada na tradição fenomenológica (Shültz e Luckmann, ١٩٧٥) e suas contribuições para a compreensão do humano e seu “mundo da vida cotidiana”, onde estariam presentes os espaços “próximos” por nós ocupados e que nos ocupam, de nossos “entornos” sociais (Lopes, 2012, p. ١٦٣-١٦٤).
E assim reconhecer que:
(...) toda criança é criança de um local; de forma correspondente, para cada criança do local existe também um lugar de criança, um lugar social designado pelo mundo adulto e que configura os limites de sua vivência, ao mesmo tempo toda criança é criança em alguns locais dentro do local, pois esse mesmo mundo adulto destina diferentes parcelas do espaço físico para a materialização de suas infâncias (Lopes e Vasconcellos, 2005, p.٣٩)
Em linhas bem gerais, podemos considerar que uma abordagem geográfica com crianças, baseada na teoria histórico-cultural, deve, fundamentalmente, reconhecer uma relação de alteridade. O encontro com o outro, na perspectiva da diferença, permite à criança se apropriar da cultura humana, um saber que a capacita a compreender o mundo e comunicar-se com outros seres humanos. Ao narrar e comunicar sobre seus espaços de vivência, as crianças têm o poder de apontar determinados elementos que não estão presentes nos mapas oficiais, como um espaço onde costumam brincar na rua, um lugar por onde são proibidas de passar/permanecer ou onde sentem medo, além dos seus lugares de moradia. Em outras palavras, posso dizer que há outras maneiras de conhecer e representar a cidade, um espaço de vivência humana, onde as crianças vivem e brincam. Vejamos o que as crianças registraram coletivamente, através de um mapa, quando entrevistadas em uma pesquisa sobre suas formas de perceber os deslocamentos entre a escola e sua residência:
Figura 1
Mapa vivencial coletivo com sugestões de melhorias para a cidade
Fonte: Pesquisa de campo, 2023.
Podemos definir os mapas como uma forma de linguagem. Trata-se de desenhos em escala reduzida de parte da superfície terrestre (continente, país, cidade ou bairro). São instrumentos úteis para estudar uma realidade que emerge da representação, ao refletir sobre as óticas das crianças, a partir de suas relações espaciais. Lopes (2013, p.127) reafirma a importância de se pensar nesses registros ao nos referirmos a lugares que não se pode ver, mas sobre os quais podemos grafar de diferentes formas. Em outro momento da pesquisa, ao serem questionadas sobre o acesso a liberdade de se deslocar pela cidade, as crianças1 dizem:
CR٧: Tem poucos ônibus na rua quando vou pra escola e sempre cheio. Às vezes venho de UBER. Gosto das praças, mas falta brinquedos. Tem poucos campos de futebol com grama de verdade. Não tem aquários nem cinemas.
Tafarel: As ruas são têm buracos e as calçadas sujas. Os carros não param pra gente atravessar. Podia ter mais parques e menos moradores de rua. Vejo morcegos na rua da escola. Devia ter mais árvores quem servem como abrigo para os animais. Arborização.
Sonic: Podia ter menos lixo na rua. A violência da rua é ruim.
Arthur: Não gosto dos lugares pichados.
Tubarão: O sinal demora muito para abrir e quando abre os carros não andam. Não dão passagem para as pessoas (os carros). Podia ter mais praças, brinco na pracinha do meu condomínio.
Joquinhas: Tem muito barbeiro na rua. Um dia demorei muito tempo pra chegar em casa só por causa de gente que dirige mal. As ruas perto da escola são esburacadas, parece que caiu um meteoro.
Por fim, a proposta de mapear pela lógica infantil pode, inclusive, trazer à tona desigualdades espaciais. Deve-se enfatizar que, quando se percebe a vida no chão da cidade, as hierarquias tendem a aparecer, já que o espaço urbano exprime uma diferença significativa entre os lugares de moradia.
Resultados e Discussão
O artigo se propôs a estabelecer um olhar sobre a cidade a partir dos posicionamentos das crianças e de suas narrativas. No entanto, ao considerar o espaço urbano, é fulcral calibrarmos o foco de nossa observação para o direito de falar das tradições dos negros, ao refletir sobre a diáspora africana, a marginalização social das gerações seguintes e discutir a questão racial. Ao descolonizar o conhecimento, considero a margem como parte do todo, mas fora do corpo principal. Conforme vimos, esta crítica está ancorada na hierarquização racial da sociedade, uma condição que, aliada ao capitalismo moderno, se traduz na exploração dos grupos discriminados viventes nas cidades.
Em maio de 2000, Milton Santos, geógrafo brasileiro e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, concedeu uma entrevista à Folha de São Paulo intitulada “Ser negro no Brasil de hoje”, na qual fazia referência às diferentes realidades vividas pela população negra no mundo. Na ascensão dessa ideia, o plano social é considerado desigual, sobretudo no país. A entrevista concedida relatava como era ser negro na sociedade brasileira, descrita pelo engajado geógrafo como ser “objeto de um olhar enviesado” (2000, p.4). O autor postula que a discussão desse problema deveria partir de três dados basilares: a corporeidade, a individualidade e a cidadania. Do contrário, o risco de uma geografia que não considera as diferenças é muito alto, dando uma falsa impressão de uma sociedade una. Um dos desafios da sociedade brasileira se assenta justamente na restrição da mobilidade social.
Se tomarmos as cidades como um espaço para a compreensão da temática racial, vale reiterar que as políticas urbanas nos provocam a pensar na dualidade entre as áreas centrais, mais urbanizadas (valorizadas pelo mercado imobiliário e tratada como reserva de valor), e a periferia, autoconstruída por seus trabalhadores, de maioria preta e parda. Diante desse movimento de urbanização/modernização que ganha força no primeiro quartel do século XX, quero sugerir que esta desigualdade espacial urbana não está marcada apenas pela lógica do mercado/condição econômica de seus moradores, isto é, possuem aspectos raciais profundos.
As metrópoles brasileiras, incluindo a capital fluminense, se constituem a partir do padrão centro e periferia. Dessa forma, o urbano se conecta com o eurocentrismo, que traz em seu corolário a lógica de avanço. Desse modo, as fronteiras classificatórias determinam os espaços centrais e periféricos. Aos periféricos, em sua maioria negra e moradores de favelas, são atribuídos estigmas. Seus locais de moradia são alvo de políticas de remoção pelo poder público e outras de caráter “higienista”.
De qualquer modo, o maciço movimento de imigração europeia entre 1889 e 1930 para as grandes cidades constitui o que considero o encurralamento da população negra. Nesse sentido, eram reduzidas as possibilidades de integração social. Ainda que a imigração brasileira tenha sido marcada por uma inserção no campo, boa parte desse movimento demográfico, que buscava possibilidades de ascensão social, tomou o caminho da região Sudeste, prevalecendo em cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.
Para entender melhor o entrelaçamento entre espaços urbanos e racialização um processo de desumanização -, é necessário considerar os bairros periféricos, as áreas guetificadas onde se localiza a população negra trabalhadora. Uma rápida comparação contribui para perceber a dimensão do problema. Nas comunidades segregadas, a oferta de serviços (hospitalares e educacionais) é insuficiente. Como diz Lopes (2018, p. 2011): “reafirmam-se as diferenças das infâncias e suas correlações com o espaço, assumindo um caráter polissêmico, mas não se distanciando das suas contradições sociais”. Para dizer de outro modo, o que está em jogo aqui é uma busca por igualdade e pelo direito à cidade. Ora, para os afrodescendentes, seria a efetivação de direitos básicos para todos os segmentos populacionais.
O pensamento decolonial e as vivências infantis
Entre o fim do século XIX e início do século XX, emergem mudanças na tentativa de compreender o ser humano no campo das ciências, sobretudo as sociais. Uma das questões presentes nesse movimento contemplou a diversidade e a diferença humana. As sistematizações dos povos, a partir da elaboração teórica da ideia de ação e concepções sobre o “outro”, de sua paisagem e cultura, tornam-se objetos de análise por um viés não evolucionista, dissociado do pensamento colonial. O conceito de raça é simbólico e geográfico, pois se assenta sobre leituras do espaço. A visão de mundo que a geografia constrói produz significados e é possível de ser lido no espaço pelo discurso:
(...) raça é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja –o racismo. Todavia, como prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria. Tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na natureza. (Hall, 2003, p.٦٧)
É necessário apontar, ainda, que no Brasil o movimento negro brasileiro ressignifica e politiza o conceito de raça de modo afirmativo, compreendendo a raça como uma potência de emancipação e não somente como uma forma de regulação conservadora.
Por outro lado, Blackburn (2005, p. 709) alerta que o racismo é definido como uma “inabilidade ou recusa para reconhecer os direitos, necessidades, a dignidade e os valores de pessoas de um grupo racial particular ou de determinada região geográfica”. Essa definição se conecta com uma compreensão simbólica, na qual a modernidade europeia passa a desqualificar o conhecimento e a perspectiva corpórea dos não ocidentais, nominado como outros.
Nesse sentido, brancos tinham amplas possibilidades de se apropriarem do espaço. É preciso pontuar que os africanos e seus descendentes precisaram encontrar caminhos para atribuir sentido em um novo mundo, inclusive por terem sua condição de autonomia e deslocamento limitadas. Em linhas gerais, destacamos como acúmulo para a pesquisa o estudo sobre a modernidade/colonialidade, que deriva de uma perspectiva teórica discutida por intelectuais latino-americanos há pouco mais de dez anos e que vem sendo lida e cada vez mais discutida no Brasil.
Foi assim que dialoguei com o teórico cultural argentino-norteamericano Walter Mignolo, a linguista norte-americana Catherine Walsh, o sociólogo peruano Aníbal Quijano e o filósofo argentino Enrique Dussel para compreender que o racismo deve ser concebido e tratado como um fenômeno social e histórico, intrincado com as formas de dominação burguesa; perspectiva esta que se situa para além do eixo fenotípico ou cultural. Esses autores discutem o etnocentrismo colonial e a ideia de uma cultura única e válida.
O pensamento decolonial2 nos fundamenta a dizer que os lugares onde estamos também são lugares onde se produzem o conhecimento. Esse discurso indica que decolonizar implica em pensar e agir para transformar a partir dos sujeitos subalternizados pela colonialidade, contrapondo-se às lógicas de pensar e existir brancas, conjugada por meio de uma geopolítica racista. Cabe a ressalva de que cada lugar é igualmente palco da vida cotidiana de indivíduos e grupos, que interferem na paisagem e são por ela impulsionados. Percebendo o fazer geográfico como uma ação antirracista, escrevi minha dissertação ao tencionar refletir sobre os livros didáticos de Geografia e seus enunciados nos anos iniciais, pela proposta epistêmica da modernidade/colonialidade – uma perspectiva teórica que busca dialogar no campo da educação de forma crítica.
Porto-Gonçalves3 (2001) realizou estudos sobre o pensamento dualista moderno europeu. Tais formulações, ancoradas sob uma perspectiva geográfica decolonial, indicam um conjunto de categorias que retiram o sujeito da relação em busca de uma verdade universal, objetivo do método científico, e classificam outras formas de conhecimento como selvagens. Ao adotar outro caminho de análise, o autor destaca corpo e mente; razão e emoção; indivíduo e sociedade; natureza e cultura, evidenciando-as como um paradigma instituído.
A vida nas cidades, componente fundamental para uma compreensão mais apurada das questões que envolvem as infâncias, não pode deixar de ser entendida como uma espacialidade inserida numa dimensão política, cultural e simbólica, pois é produzida por relações sociais. Um componente geográfico relevante verificado nas cidades são as paisagens das infâncias, que se manifestam de maneira diferente, pulverizadas por todo o território citadino. É importante notar que a questão racial, mesmo nas infâncias, também incide sobre as formas de configuração espacial.
Foi relevante, também, nessa escolha, o fato de se poder trazer à tona um tema ainda pouco investigado pela Geografia em interface com a educação, pois existe uma tendência para se estudar, quase que exclusivamente, os fenômenos geográficos de modo adultocêntrico – a meu ver, uma marca dicotômica da colonialidade – desconsiderando os espaços vivenciados pelas crianças. É nossa preocupação, portanto, compreender as vivências das crianças no mundo em sua diversidade, materializada a partir das referências de identidade e pertencimento territorial. Longe de parecer algo simples e estável, diferentes territórios podem se amalgamar, sobrepor e cruzar-se, revelando, muitas vezes, os conflitos de diferentes grupos sociais em suas espacialidades e o destino esperado para seus diferentes sujeitos (Lopes, 2018, p.192).
É importante não perder de vista que existem várias formas de inserção na ocupação dos territórios pelas crianças. Os fatos espaciais são expressivos, pois revelam parte da história das cidades, cercadas por tensões e conflitos a partir de suas vivências. Haesbaert (2007, p.42) diz que o território possui uma visão integradora, que “envolve sempre, ao mesmo tempo (...) uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais”, funcionando como uma forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem (sendo também uma forma de apropriação), além de uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos. Tal formulação não é em nada trivial, e provoca questionamentos que colocam em xeque o território como um espaço permeado por uma dinâmica cotidiana fundante para a compreensão da sociedade contemporânea e de seus conflitos.
Concepções de infâncias e crianças
Encontramos em Vigotski (2006, p.3) uma severa crítica à ideia de que as crianças possuam um ponto de chegada em seus processos de interação. Trata-se de uma perspectiva de reconhecer o desenvolvimento humano, calcado na lógica de um de ponto de partir e de um vir a ser. No entanto, em nosso entendimento, discutir a infância como campo de estudos compreende não só uma dimensão plural, marcada por territorialidades – formas de ser e existir no espaço –, como também o rompimento com a perspectiva de desenvolvimento engendradas pela colonialidade, que transformou as muitas escalas temporais em busca de um tempo perdido, tanto para as pessoas quanto para os Estados-nação.
A hipótese que venho defendendo é a ideia de que a infância nos permite compreender o desenvolvimento humano. Afinal, segundo Borba, Lopes e Vasconcellos (2020, p.4) a infância diz respeito “a experiência humana, de produção de significados, de criação de cultura, de compreensão do já “velho”, instituído, e de criação do novo”. Com isso, o diálogo com a criança remete a um conjunto de estratégias de escuta atenta sobre o que pensam e sentem. Bakhtin (1997) ressalta que colocamos em diálogo duas consciências e que os textos produzidos só ganham vida com o contato entre pessoas, e não entre coisas. O autor declara que, para compreender melhor o todo, é necessário adotar uma condição de exotopia, afinal, estamos “diante de um acontecimento que forma um conjunto complexo, em que cada personagem ocupa uma posição única, a qual é a única a ocupar no todo do acontecimento”. (p.82). Numa perspectiva bakhtiniana, é possível afirmar que o trabalho empírico exige a condição do ser humano.
Em seu tempo, os desejos teóricos e práticos de transformação social do mundo desse grupo, que mais tarde atuaria na (ex) União Soviética, se calcavam em princípios contrários ao instituído. Vale a pena se debruçar sobre os argumentos de Lopes (2021, p.57), ao problematizar que as infâncias plurais se fazem a partir de crianças socialmente localizadas, pois os verbos da vida mudam de acordo com os espaços.
Desta maneira, ao pesquisar a infância, reconhecemos que existe um grande desafio: os sujeitos marcados pela colonialidade historicamente carregam concepções adultocêntricas sobre as crianças, desde sua formação até suas formas de ser e de estar no mundo, como um processo que tem início na infância e será naturalmente substituído por um novo: se tornar adulto, estabelecendo assim, a ideia de acabamento. Nosso imaginário (Quijano, 1992, p.13) é “marcado pela forma como fomos forjados”, e aquilo que conhecemos sobre a infância, inclusive em sua relação com a educação, são refrações dessas trajetórias vividas. É comum, nessa perspectiva moderna/ocidentalizante, que identidades sejam definidas, lugares e narrativas para pronunciar as crianças.
Com base no que temos pesquisado, consideramos a infância em sua pluralidade, como um estágio temporal complexo e singular na vida da criança, em seu desenvolvimento humano. Neste último aspecto, a ideia é que o desenvolvimento da criança se impõe como um processo de constituição e surgimento do homem, da personalidade humana, que se forma por meio do ininterrupto aparecimento de novas particularidades, novas qualidades, novos traços, novas formações que são preparados no curso precedente de desenvolvimento e não estão presentes, já prontas, em tamanhos reduzidos e tímidos, nos degraus anteriores. (Vigotski, 2018).
Conclusões
Dentro do quadro exposto, considero que a cidade dos adultos é um espaço onde circulam corpos apressados e adequados, e, em contrapartida, desumaniza o mundo das crianças. Nas cidades modernas, as crianças negras passam a ser tratadas como um problema, impedidas de acessar a escolarização formal e direitos fundamentais, como brincar e se divertir. É preciso pontuar, ainda, que crianças negras e pobres permaneceram vítimas da violência e da exploração protagonizadas pelo mundo do trabalho.
Dessa forma, a pesquisa se assenta em espacializar a vida. São sujeitos que possuem lógicas infantis, vozes e memórias sobre as vivências espaciais, conceito elaborado por Vigotski e central neste trabalho. Aqui, reivindico a necessidade de potencializar a razão das crianças, pois a colonialidade tende a apagar as demais, resultado de uma visão padronizadora e universalizante.
O processo de investigação teve como foco a presença das crianças na cidade, considerando o espaço urbano como uma dimensão fundante que atravessa as infâncias. Dessa forma, ao pesquisar com as crianças do CAp-UERJ4, no Rio de Janeiro, foi possível observar múltiplas configurações de infância, refletidas em suas linguagens espaciais. É importante salientar que houve um esforço ético para criar uma dimensão dialógica, em que esses produtores do espaço pudessem se enunciar livremente.
Empreendemos uma incursão geográfica, trabalhando o conceito de mapa como uma fonte comunicativa, um produto social que considera todos os sentidos. Negar a lógica temporal e linear atribuída ao universo infantil contribuiu para o reconhecimento de seus cronotopos. Assim, assumiram a sua condição de autoria, colocando em xeque a infância como sinônimo de falta ou invisibilidade. De suas vozes brotaram, inclusive, a ideia sobre seus espaços desejados.
Para compreender a criança em uma sociedade urbana, foi preciso, então, considerar como ocorre seu deslocamento a partir de diferentes contextos sociais. Dessa maneira, os mapas tecidos pelas crianças ao longo da pesquisa simbolizaram a diversidade de sua vida doméstica, as formas de identificar hábitos de consumo e, evidentemente, os reflexos do movimento cotidiano, pois considero que as crianças são produtoras de cultura e leem o mundo por suas cartografias. São trajetórias vivenciais que expressaram uma forte conexão com a natureza e preocupação a preservação com o meio ambiente, mesmo em meio urbano, onde a poluição e a sua repulsa também não foram desconsideradas. Os cheiros da cidade também reuniram, nos elementos da natureza, um fator simbólico que uniu diversas crianças.
Percebi, através dos indícios da pesquisa, que a cidade que fica para as crianças é um espaço vivenciado, onde atravessam uma fase da vida em que o brincar, o lazer e a imaginação fluem nas cartografias com liberdade. A pesquisa indica uma condição de movimento e foi possível identificar que os deslocamentos para os estudantes de regiões mais distantes causam incômodos cotidianos, em que pese os sentimentos expressos através dos mapas vivenciais, fundantes para o reconhecimento das existências infantis na cidade e para a certeza de que as crianças também são pessoas que “andam” por ela.
Contribuições dos autores: A edição, conceituação, metodologia, validação e análise formal e redação do rascunho original é uma contribuição de Vinícius de Luna Chagas Costa.
Financiamento: Esta pesquisa não recebeu financiamento externo.
Agradecimentos: Agradecemos ao professor Jader Janer Moreira Lopes e aos companheiros do Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância- GRUPEGI (CNPq/UFF-UFJF).
Conflitos de interesse: Os autores declaram não ter conflito de interesses.
Referências
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Vigotski, L. S. (2018) Sete aulas de L. S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia. Organização e tradução: Zoia Prestes e Elizabeth Tunes; tradução: Cláudia da Costa Guimarães Santana. Rio de Janeiro: E-Papers.
1 Vale registrar que os nomes das crianças foram substituídos por seus codinomes, escolhidos pelas próprias no momento inicial da pesquisa.
2 Segundo o professor Luiz Fernandes de Oliveira o prefixo “de” é diferente de “des”, pois significa uma estratégia que vai além da transformação da descolonização, ou seja, é uma perspectiva epistêmica ancorada na construção e criação. (Nota de aula, Rio de Janeiro, 09 de junho de 2017.)
3 Geógrafo, ambientalista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Walter Porto-Gonçalves foi autor de diversos livros, um intelectual que contribuiu fortemente para o pensamento geográfico brasileiro. Autor de diversos livros, foi agraciado com prêmios na categoria Ciência e Tecnologia. Entre seus grandes feitos, foi um dos responsáveis por dar visibilidade a Chico Mendes, ao convidá-lo no ano de 1988 para se apresentar na Universidade. Faleceu em agosto de 2023.
4 O Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – CAp-UERJ é uma instituição de ensino pública, tendo por finalidade a formação docente inicial e continuada, em parceria com outras unidades acadêmicas da Universidade e a promoção de educação básica de qualidade, de atividades de pesquisa em ensino e educação, da extensão universitária e da cultura na cidade e no estado do Rio de Janeiro. A discussão se refere a uma pesquisa realizada com estudantes de uma turma do quinto ano do Ensino Fundamental com idades entre 9 e 11 anos.