Diferenças em um espaço de iguais: relações de gênero numa Escola Normal Rural (1950 - 1960)
Las diferencias en un área de igualdad: relaciones de género en una Escuela Normal Rural (1950-1960)
Differences in a space ofequals: gender relations in a Rural Teachers College (1950-1960)
Dóris
Bittencourt Almeida1
Programa
de Pós Graduação em Educação/ UFRGS (Brasil)
Luciane
Sgarbi Grazziotin2
Programa
de Pós Graduação em Educação/UNISINOS (Brasil)
Recepción:
01/02/2015
Evaluación: 03/06/2015
Aceptación: 24/11/2015
Artículo de
reflexión
DOI: http://dx.doi.org/10.19053/01227238.4371
RESUMO
Neste estudo, abordamos o tema do internato rural, a partir das narrativas de sujeitos que vivenciaram uma experiência educativa em uma instituição de ensino pública, no município de Osório/RS, que desenvolvia um projeto de formação de professores rurais. O tema e o objeto desta investigação se inscrevem no campo dos estudos da História da Educação, tematizando as relações de gênero em uma escola mista na metade do século XX, tendo a memória enquanto documento e a História Oral como metodologia. A escola representava para esses jovens a possibilidade de conhecer um outro mundo, distinto de sua cultura familiar, promovia a difusão de saberes e oportunizava sociabilidades. Pluralidade, co-educação e convivialidades parecem resumir as marcas das memórias desta instituição em Osório, como uma escola incomum, experiência singular na vida de alunos e de professores que por lá passaram. O que se discute é a facilidade de acesso à formação docente rural aos rapazes, pois eles tinham garantida a permanência na escola no regime de internato. É possível que esse benefício explique por que a profissão de professor rural fosse buscada por mais rapazes do que moças.
Palavras-chave: Revista de Historia da Educação Latinoamericana, relações de gênero, memórias docentes e discentes; educação rural.
RESUMEN
En este estudio, analizamos el tema del internado rural, de las narrativas de los sujetos que experimentaron una experiencia educativa en una institución educativa pública, en el municipio de Osório/RS, que desarrolla un proyecto de formación de maestros rurales. El sujeto y el objeto de esta investigación caen dentro del campo de estudio de la historia de la educación, las relaciones de género basadas en una escuela mixta en mediados del siglo XX, teniendo la memoria mientras el documento y como metodología de la historia Oral. La escuela representada para estos jóvenes la posibilidad de conocer otro mundo, distinto de su cultura familiar, promover la difusión del conocimiento y oportunísima de la alta sociedad. Pluralidad, coeducación y facilidad de uso parecen resumir los recuerdos de esta institución en Osório, como una escuela inusual, una experiencia única en la vida de los estudiantes y profesores han pasado. Qué pasa si se discute la facilidad de acceso a la formación de los chicos porque habían garantizado la permanencia en la escuela internado docente rural. Es posible que este beneficio explica por qué la profesión de maestro rural era buscada por más chicos que chicas.
Palabras-clave: Revista Historia de la Educación Latinoamericana, las relaciones de género, recuerdos de profesores y alumnos; Educación Rural.
ABSTRACT
In this study, we examine the topic of a rural boarding school based on the narratives of subjects who had an instructional experience in an educational public institution in the city of Osório/ RS, Brazil, during a rural teachers training project.The subject and the objective of this research fall in the field of History of Education, and the development of gender relations in a coeducational school in the first half of the XX century.This study assumes memory as a document and oral history as methodology. The school represented to these youth the possibility of getting to know a world different from their familiar culture. It also promoted the dissemination of knowledge and enabled socialization. Plurality, co-education, and harmonious living seem to encapsulate the memories of this institution in Osório as an extraordinary school, a unique experience in the life of those students and teachers. This article discusses the ease of access to rural teacher training by young men who had the guarantee of a permanent situation at school as boarders. This benefit may explain why the profession of rural teacher was sought to a greater extent by men rather than women.
Keywords: Journal History of Latin American Education, gender relations, memories of teachers and students; rural education.
INTRODUÇÃO
Uma escola mista, reflexões e estranhamentos
Estava
longe do corpo
para me sentir em casa
pátria é onde não estamos
eu
cresci mais do que podia
o excedente se fez exílio
eu me
resguardava
debaixo da cama
juntava os carretéis
a caixa de
sapatos
as cinco marias
os bonecos de madeira
minha mala já
estava pronta desde a infância.
(CARPINEJAR, Fabrício 2005, p. 77)
Neste estudo, abordamos o tema do internato rural, a partir das narrativas de sujeitos3 que vivenciaram uma experiência educativa em uma instituição pública no município de Osório/RS que, nos anos 1950 e 1960, desenvolvia um projeto peculiar de formação de professores, preparando rapazes e moças para serem os futuros professores rurais no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Era a Escola Normal Rural de Osório, conhecida na comunidade como a Rural.
Por meio da metodologia da História Oral, procurou-se analisar o processo de memória daqueles que foram alunos e professores, a partir dos discursos e dos conteúdos de verdade produzidos nos documentos orais. Os sujeitos da pesquisa foram sete alunos, cinco alunas, cinco professores e quatro professoras.
Entre os aspectos problematizados na pesquisa, está o convívio de rapazes e moças em um ambiente escolar, onde apenas eles usufruíam a prerrogativa do internato. Garantiam-se direitos exclusivos aos alunos homens, pois a eles era assegurada a manutenção, que permitia melhores condições de permanência na escola e dedicação aos estudos, uma vez que não precisavam arcar com despesas de moradia e alimentação. Aqui procura-se tensionar esse privilégio em uma instituição de ensino que, no contexto educacional da época, se afirmava pública e plural.
O direito ao internato, entre outras questões analisadas durante a investigação, tem sua tônica na possibilidade de discussão das relações de gênero construídas no espaço escolar. Neste sentido, Perrot afirma que
[...] interrogar-se sobre a evolução das relações entre os sexos, ao longo da história, em todos os níveis da teoria e da prática, das maneiras de pensar, de dizer, no nível da linguagem [...] é tentar refletir em termos de fronteiras de partilha, de equilíbrio; de sedução e de amor; mas também de conflitos e de concessões, de deslocamentos, de poderes e de contrapoderes4.
Estão presentes, nas memórias dos ex-alunos, os aspectos elencados por Perrot, que dizem respeito aos conflitos, concessões e relações de poder imbricadas ao universo do gênero.
Estabelecer as relações de gênero como categoria em uma investigação que tematiza uma instituição, tem como objetivo entender a intersecção de culturas que compõem as práticas da educação em uma escola mista na metade do século XX. O gênero é pensado, portanto, como um, entre a multiplicidade de discursos que significam o social, sendo assim, articulado aos demais, no contexto da Rural de Osório.
Os estudos de gênero têm sua origem no movimento feminista. As pesquisas nessa área englobam basicamente dois enfoques: o primeiro buscava a igualdade, interpretando a diferença entre os sexos como desigualdade, querendo fazê-la desaparecer. Ser mulher era assim, para alguns grupos, interpretado como desvantagem social, que só poderia ser superado com a incorporação do mundo masculino. O espaço relevante era o normativo masculino (GARCÍA, 2002). O segundo enfoque, numa perspectiva denominada "Política e pedagogia centrada na diferença sexual", não reconhece o mundo masculino como valor supremo. Alémdisso, adotauma postura de crítica de diferença desse mundo, assim "[...] busca garantizar la libertad femenina en un mundo común, en todos los ámbitos, y señala como objetivo el de una existencia social libre de cada mujer y de cada hombre en su diversidad e individualidad más allá de muchos de los códigos dados5"
Essa última perspectiva dá origem às pesquisas que circunscrevem as "relações de gênero" como categoria de análise e tem na pesquisadora norte americana, Joan Scott, o marco que fundamenta a análise epistemológica desse conceito. Segundo essa autora, "As preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise só emergiram no final do século XX. Elas estão ausentes da maior parte das teorias sociais desde o século XVIII até o começo do século XX"6
Aspectos que compõem uma cultura escolar, como é o caso do internato masculino, no período analisado nesta pesquisa, datam justamente da metade do século XX, época em que a análise do gênero, como categoria, assume uma outra possibilidade, passando a "[...] meio de falar de sistemas de relações sociais entre sexos [...] rejeita a validade interpretativa de esferas separadas"7. Anterior a esta perspectiva, Scott afirma que as diferentes teorias "[...] construíram sua lógica a partir das analogias com a oposição masculino/feminino, outras reconheceram uma 'questão feminina', outras ainda se preocuparam com a formulação da identidade sexual subjetiva"8.
As relações de gênero, pensadas como um sistema de relações entre os sexos, têm como finalidade compreender uma certa dimensão do contexto de ensino na Escola Normal de Osório, em um ambiente que se dizia rural. O objetivo, portanto, é tentar garimpar, nas sutilezas das memórias, o que diz ou não respeito ao papel feminino e masculino, as tensões, contradições e, sobretudo, possíveis especificidades do vínculo gênero/História da Educação.
Neste sentido, uma das singularidades da Rural de Osório, em relação às escolas da época, foi o seu caráter misto, que oportunizava o convívio direto e diário entre rapazes e moças. Essa relação, promovida pela escola, foi um aspecto importante na formação desses sujeitos, homens e mulheres que, durante quatro anos, aprenderam a se conhecer, a descobrir o outro e, assim, estreitaram os laços que os aproximavam pelas redes de afeto e de companheirismo. É comum o uso da palavra "irmandade" pelos entrevistados, ao definirem como era a vida naquela instituição de ensino.
À medida que as aproximações dos egressos da Rural aconteceram, muitas foram as indagações e estranhamentos. É importante dizer que estamos falando de uma Escola Normal, que, segundo os depoimentos, formava um número maior de professores do que professoras rurais.
Cabe destacar que houve uma maior disponibilidade em falar, de forma espontânea, por parte dos homens. No caso de dois casais de ex-alunos entrevistados, as narrativas deles preponderaram em relação às de suas esposas. Essa situação caracteriza o lugar secundário assumido por essas duas mulheres que, ao longo da entrevista, se limitaram a tão somente complementar as informações trazidas pelos companheiros.
Entre as tentativas de conversar com ex-alunas, três não quiseram falar. Motivos como doenças na família, viagens constantes, incompatibilidade de horários, constrangimentos, entre outros. Em uma situação específica, houve o aceite da entrevista, mas, no momento da confirmação da mesma, a ex-aluna mostrou-se pouco receptiva, disse que não havia se preparado para o evento, não acreditava que sua história fosse relevante para o trabalho e que, enfim, não gostaria de falar sobre o passado. E, entre as cinco que aceitaram participar da pesquisa, quatro efetivamente contribuíram para o seu desenvolvimento. Talvez pudéssemos ter insistido em conversar com outras mulheres, mas o fato é que as narrativas masculinas despertaram tamanho entusiasmo que acabaram se constituindo um diferencial do estudo. Aqui se destaca um estranhamento: por que houve uma maior adesão dos homens em compartilharem suas memórias? Uma possibilidade de resposta está nos estudos historiográficos. Da vida privada à vida pública, um oceano de silêncio marca a história das mulheres diz Perrot, e continua "[...] sua postura normal é a escuta, a espera, o guardar as palavras no fundo de si mesmas. Aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar-se"9. Assim, a análise histórica talvez explique o predomínio das vozes masculinas.
Portanto, quando as entrevistas iniciaram, não imaginávamos que as narrativas predominantes seriam as masculinas. O fato dos rapazes serem internos na escola teve uma repercussão significativa nas lembranças, pois, efetivamente, conviviam um tempo maior na escola do que as moças. Passavam os fins de semanas juntos, faziam todas as refeições, todos os dias na escola, tinham a hora de estudos após o jantar. Ressalta-se, ainda, que partilhavam momentos de lazer, como os encontros noturnos no centro de tradições gaúchas, criado por iniciativa deles mesmos e de alguns professores. Nesse contexto, as moças não estavam incluídas, pois, ao final da tarde, precisavam retornar à cidade. Além disso, o convívio dos rapazes com os professores e professoras também era mais intenso, uma vez que todos permaneciam na escola à noite. Cabe lembrar que, nos anos 1950, a grande maioria dos docentes da Rural não residia em Osório, sendo assim, vinham de Porto Alegre e passavam alguns dias da semana na cidade, pernoitando na escola.
1. Memória e História Oral: uma discussão teórica e metodológica
O tema e o objeto desta investigação estão intimamente ligados aos estudos da memória, relações de gênero e História da Educação. Os trabalhos com documentos orais oferecem uma dimensão singular para nos relacionarmos com o tempo vivido. Os encontros com os narradores, em muitos casos, se constituíram em momentos de fecundidade das relações humanas. Conversar com uma pessoa mais velha, conhecer sua casa, escutá-la, observá-la, ler uma carta do passado, olhar uma foto antiga... são momentos preciosos, em que podemos nos acercar das marcas de um outro tempo.
Memória e História Oral são partes de um mesmo processo. A memória constitui-se em documento histórico, e a História Oral é a metodologia aplicada no intuito de operacionalizar o diálogo entre teoria e os dados empíricos. Fentress e Wickham (1992) a considera como a "matéria-prima da memória"10, que permite outras perspectivas de conhecimento do passado.
A História Oral é um dos meios que promove as aproximações entre a História e a memória. Ou, como diz Errante (2000), existe uma dependência da História Oral em relação à memória. A autora endossa a importância dessa metodologia a ser adotada em pesquisas identificadas com a História da Educação. Afirma que "as histórias orais acrescentam uma dimensão não-oficial inestimável" Ás investigações educacionais, justamente por viabilizarem as narrativas dos sujeitos envolvidos. Deste modo, possibilita certo afastamento da documentação de caráter oficial das instituições educativas, que muitas vezes não traduzem as experiências vividas no contexto escolar.
Logo, considerando a relevância da memória neste estudo, a perspectiva metodológica adotada considera a subjetividade do documento oral, pois se trabalha com a interação da narrativa, da imaginação e das representações produzidas. A memória é suscetível às vicissitudes de cada momento, e, portanto, podem acontecer distorções na interpretação das experiências vividas. Todavia, não significa que seja intangível, pelo contrário, permite a aproximação de verdades que se quer produzir sobre o vivido. E guarda o mérito de trazer à tona nuances do passado, que podem estar esquecidas e que, por vezes, se encontram inatingíveis em outras formas de documentação.
A memória, que é labiríntica, móvel e movediça11, fundamentalmente complexa, ainda guarda certa marginalidade enquanto documento histórico, justamente por não admitir certezas irrefutáveis. Não se pode esquecer, segundo Prins (1992), o quanto estamos imersos em uma cultura escrita que, com sua ampla difusão, acabou por estabelecer como verdadeiro e confiável apenas aquilo que se inscreve no mundo das letras. Basta lembrar como são segregadas as sociedades que ainda hoje permanecem com sua cultura fundada na oralidade. Prins defende a História Oral como uma possibilidade de reconstruir a vida de pessoas comuns e de buscar uma compreensão mais fecunda da própria história oficial. Também enfatiza que a documentação oral não tem um caráter suplementar aos documentos escritos e que, da mesma forma, seus historiadores não desenvolvem uma "arte menor"12. Sabe-se que, ao investigar memórias de pessoas, entra-se em "terrenos movediços", em que nada parece estável, tudo se transforma continuamente. As memórias, vale a pena insistir, não são lineares, pois o tempo passado se confunde e se mistura com os acontecimentos presentes.
O trabalho com essa metodologia exige conhecimento e sensibilidade de quem se propõe a fazê-lo. Somando-se a isso, cumplicidade, humildade, respeito, atenção à fala do outro13, além de solidariedade, todas essas, características imprescindíveis. A vivência de tantas entrevistas permite dizer que o estabelecimento da "ponte interpessoal"14, tem seu início antes do primeiro encontro, ainda no contato telefônico. Esta ponte constitui-se em elemento determinante da qualidade da entrevista. É no primeiro diálogo que se operam as primeiras aproximações. A partir daí, a forma como a pessoa recebe o pesquisador, a sua preparação para aquele momento, o grau de disponibilidade para falar, tudo isso contribui e consolida as possibilidades de interação. A metáfora da ponte indica a importância da relação de confiança que deve se construir a cada novo encontro com os sujeitos dapesquisa. Segundo Zago, écondição sinequa non da produção de dados significativos, enfim, garantia da fecundidade do estudo.
O estabelecimento da "ponte interpessoal" permite que quem pesquisacompreenda e se aproxime da "dimensão simbólica da memória" 15, que deve fazer parte das relações entre quem indaga e quem narra suas histórias. Segundo Janaína Amado, essa dimensão simbólica permite "[...] compreender os diversos significados que indivíduos e grupos sociais conferem às experiências que têm"16.
No que diz respeito a relacionar memória e gênero como elemento de análise, a categoria "relações de gênero" que articula o convívio desigual de meninos e meninas em espaços de educação, num primeiro momento, aparece difusa, por vezes parece ilusória, porque há, em algumas memórias, ditos que são, quase simultaneamente, desditos em outras. Há elementos fugidios, que dificultam essa relação, mas existem, por outro lado, nas lembranças, um universo de elementos que, permitem estabelecer pontos de contato que instigam a tentativa de entender as relações de gênero e sua potencial influência sobre a vida na Rural, dentro do espaço temporal estabelecido.
2. Escola Normal Rural: quem tem direito ao internato?
O poema de Carpinejar, escolhido como epígrafe deste trabalho, faz pensar nos significados de sair da casa materna/paterna para ir estudar em outra cidade, com outras referências. É como lembra este antigo aluno da escola:
Minha mãe juntou minhas pobres roupas e me mandei, de mala e cuia, estrada afora, levando no coração a saudade dos familiares e as coxilhas verdejantes da velha terra vermelha. Na alma, um carregamento de expectativas e esperanças, pois estava indo buscar maior aconchego nas letras e me tornar professor rural. (...) Perambulei, de ônibus, quase dois dias até chegar em Osório às oito horas da noite. Não sei se por medo, ou emoção, temi chegar na escola àquela hora. Dormi no primeiro hotel que encontrei, Hotel Amaral. (...) No outro dia, depois de receber-me, o professor... disse-me que estava surpreso com o horário de minha chegada, pois já que viera de tão longe não poderia me apresentar na escola tão cedo. Ao dizer-lhe que havia dormido em um hotel, censurou-me energicamente dizendo: - Por que fizeste isso, menino? Aqui ê a tua nova casa17.
Sendo uma instituição rural de formação docente, importa notar que os alunos, especialmente os rapazes, vinham de diferentes lugares. Em um primeiro momento, somos levados a imaginar que todos vinham do meio rural, afinal, poderiam estar escolhendo um caminho profissional identificado com suas origens. Tal fato não é uma regra na história dessas pessoas. Conforme os relatos,nas primeiras turmas, parece que predominavam alunos que residiam em Osório, especialmente referindo-se às meninas. Mas, à medida que a escola tornou-se conhecida na região e em todo o Estado, mais interessados passaram a se deslocar de áreas distantes, até de Santa Catarina, para estudarem na Escola Normal Rural. Isso tem relação também com o ingresso na escola, que, para quase todos, com exceção de dois alunos entrevistados, foi a única alternativa para poderem estudar e para garantirem um emprego público imediato em uma profissão portadora de um valor social significativo naquele tempo.
Aos rapazes era oferecido o internato, aspecto fundamental que assegurava sua subsistência na instituição durante os quatro anos de estudo. As moças, em sua grande maioria, de Osório ou de localidades próximas, eram semi-internas. Chegavam pela manhã na escola, almoçavam com os colegas e, ao final da tarde, retornavam para suas casas. Aquelas que vinham de outros municípios, precisavam buscar alternativas de moradia, muitas vezes eram pensionistas em residências de famílias de Osório. Esse é o aspecto que desejamos enfocar aqui, consideramos que para muitas alunas era difícil a formação na Rural, pois não tinham direito ao internato, condição importante, considerando as origens humildes da grande maioria dos entrevistados. Esse fato foi percebido nos relatos durante o processo da pesquisa.
O tema do internato foi constante nas lembranças dos alunos do sexo masculino. Eles mostraram suas diferentes percepções ao narrarem como se sentiam em uma escola com esse regime. Muitos entendiam a oportunidade de estudar naquele lugar como algo único em suas vidas, algo que não poderia ter nada de negativo. Afinal, o acesso ao conhecimento, propiciado pela escola, parecia ser sedutor para estes jovens que apostavam na Escola Normal Rural como o espaço educativo que lhes garantiria ascensão social e profissional. Portanto, muitos sujeitos, por conceberem a Rural como um marco em suas vidas, reconstroem um passado em que não têm lugar sentimentos de tristeza, de frustração ou dificuldades, sentimentos prováveis a quem experimenta viver em uma escola interna, longe da família. Nesse sentido, alguns falaram de suas lembranças alegremente, relataram os lazeres dos fins de semana, os momentos livres ocupados com bailes no clube da cidade, cinemas, missas, passeios pela praça, namoros, as amizades com os professores, rodas de chimarrão, convites dominicais para visitar as casas das moças... Outros, mais tímidos, contaram que quase não saiam da escola aos sábados e aos domingos, mas que acabavam se divertindo lá mesmo, com os esportes, o pingue-pongue, as conversas com os colegas.
Houve narrativas que evidenciaram o sentimento de desamparo comumente enfrentado por muitos dos internos. Assim, falaram dos professores e professoras que se interessavam pelos seus problemas. Esses docentes talvez representassem a imagem do pai ou da mãe, ausentes naquele lugar em que se preparavam para o ingresso no mundo dos adultos. Esse quase abandono, evidenciado na falta de orientação sobre questões básicas de higiene, por exemplo, indica que tais situações deveriam ser resolvidas por eles mesmos. É possível que a escola pecasse ao confundir abandono com autonomia. Pela análise do que foi recorrentemente dito nas entrevistas, concluímos que os alunos pareciam ter muita liberdade, mas, diversas vezes, sentiam-se perdidos, e a solução de seus problemas deveria ser encontrada entre eles mesmos. Tristeza, ansiedade e confusão são expressos nesta fala:
Eu, me vendo hoje, olhando para aquelas crianças, eu digo pra ti, ninguém dizia pra eles que estava na hora de cortar o cabelo, ninguém dizia pra eles, olha, esqueceu de tomar banho, precisa de uma escova de dentes nova, sabe, aquelas coisinhas de mãe ou de mulher, não se faziam presentes. Mas aquilo era levado na brincadeira, então a gente pegava, enfiava um no chuveiro e ensinava: tu vais tomar um banho! Muitos não conheciam sequer escova âe dentes18.
O internato capacitava as pessoas para as adversidades cotidianas. Era importante buscar alternativas para integrar-se ao grupo e, desse modo, não sentir-se tão isolado. Uns eram parceiros dos outros, cada um mostrando o que tinha de melhor para assim poder enfrentar possíveis adversidades:
Nós tínhamos pessoas sábias, por exemplo, quando íamos a uma reunião dançante, tinha a pessoa que sabia como entrar, o ingresso, tinha outro que nos emprestava a roupa, tínhamos as pessoas certas para as coisas certas, todos eram livres e sábios, então as pessoas eram prezadas pela sua singularidade, por exemplo, em que ê que eu tinha significado? Eu tinha significado no basquete e no vôlei, eu tinha significado na pintura, as pessoas perceberam isso e eu não precisava falar tanto porque o meu problema era falar, começaram a se aproximar de mim devido a essas características, habilidades que eu trouxe lá de fora, do campo. Criava-se uma integração, uma honestidade, uma participação, uma luta19.
A narrativa de um dos alunos, ao analisar este aspecto da solidão, é importante na busca de uma maior compreensão do assunto, pois não era interno, residia em Osório e conseguia perceber de um modo diferente, distanciado, o que acontecia com seus colegas. Contou, também, que quem sofria mais eram os mais introspectivos. Assim, explicou:
Aqueles que tinham mais liberdade de chegar nas gurias era mais fácil, mas aqueles que tinham uma inibição, ficavam quietinhos, paradinhos e voltavam pra escola rural, jogava a bolinha dele, comia e dormia. Essa é a solidão, ficavam os inspetores na escola, tinha horário sim, tudo controlado porque a responsabilidade da escola era muito grande, por exemplo, sair dali para tomar banho no porto. E se morresse?20
As memórias apontam para recordações de colegas que usavam tamancos e choravam de saudades de casa. Percebe-se que o fato de muitos virem de longe, em uma época em que a precariedade de comunicação e de transporte era efetiva, afetava esses sujeitos, especialmente os mais reservados que ficavam muito tempo sem poder retornar para suas casas.
Um dos professores entrevistados, ao ser questionado sobre a possível solidão que os internos sentiam, explicou que esse sentimento era mais percebido nos fins de semana, particularmente aos domingos. Disse que se acostumou a sempre dedicar uma parte de seu tempo livre para ficar na escola, mesmo depois de casado com uma das professoras da escola. Contou que aos domingos levava chimarrão, organizava torneios de futebol, enfim, ficava junto aos meninos, porque assim desejava. Sua presença naqueles momentos é sugestiva e auxilia a compreender os laços que aproximavam alunos e professores homens em um internato público nos anos de 1950 e que, de certa forma, até hoje se mantém vivos nas memórias dos entrevistados.
Quando se entrevistou, ao mesmo tempo, uma professora e um aluno, interrogamos a ambos se os rapazes, por serem internos, não experimentavam mais plenamente as atividades promovidas pela escola. Questionamos se os rapazes não estabeleciam laços mais fecundos com seus professores? Ambos concordaram que a convivência mais intensa era entre os internos e os professores, pois, em várias situações cotidianas as moças não participavam. Quando falaram das tertúlias que aconteciam na escola à noite, e os olhos da professora brilharam ao recordar:
Tu te lembras [Antônio]? A gente fazia aquela confraternização no fundo da escola, era uma beleza! Era uma verdadeira tertúlia, se dizia poemas, se tocava violão, era uma coisa muito interessante, e, realmente, as meninas não participavam21.
Depois de recordar as tertúlias, a professora destacou outros momentos de convivência entre rapazes e professores e instigou o antigo aluno a falar também:
Outra coisa, a noite tinha a hora do estudo, te lembra? E então eles se organizavam em grupos para estudarem juntos, às vezes a gente até passava pela sala de estudos para ver como estavam, como tudo estava, alguns se isolavam em pequenos grupos para outros assuntos, outras trocas, era uma momento de fraternidade, de confraternização, e as meninas também não estavam, muitas oportunidades que os meninos tinham, as meninas não tinham. Eu acho que naquele tempo elas não se davam muito conta disso22.
Uma questão que se coloca aqui é no sentido de indagar a situação vivida pelas moças. Com o objetivo de conhecer melhor a realidade das estudantes, procurou-se investigar a história de, ao menos, uma representante do grupo feminino que estivesse longe de sua família e, portanto, não tinha direito aos mesmos benefícios dos rapazes, alunos da Rural. Conclui-se que eram poucas aquelas que conseguiam sair de sua cidade e custear sozinhas as despesas de moradia e alimentação em Osório, tendo em vista que se conseguiu entrevistar apenas uma ex-aluna nessa situação, Claudia. Era natural da zona rural de Taquara, e, para estudar em Osório, precisava morar em casa de outras pessoas, pagar uma determinada quantia e ainda auxiliar a dona da casa nas tarefas domésticas. Junto com uma colega saíram de sua região, acompanhadas por uma tia e dirigiram-se a Osório com o objetivo de formarem-se professoras. Quando lá chegaram, já faziam vinte dias que as aulas haviam iniciado e Cláudia falou sobre o quanto se sentiu constrangida e ansiosa diante da nova realidade. Narrou com detalhes como foi o dia do ingresso na Rural:
Quando chegamos na escola, quem nos recebeu foi o professor ... Ele disse que ia falar com a minha tia e que nós fôssemos direto para a aula prática. E eu pensei, o que ê prática? Eu e a Lourdes nos olhamos... Aí nós fomos, era atrás da escola, tinham uns canteiros de rosas, estavam todos trabalhando, uns podando as roseiras, capinando, a turma toda espalhada e nos chegamos, eles olharam pra nós. Disseram: - São colegas? A Lourdes disse: É, nós somos da primeira série. Nos falaram que a nossa turma estava mais adiante. Fomos para a horta, chegamos lá, eu lembro que quem veio nos receber foi a Francelina, ela conversou conosco... O professor chegou, falou conosco, perguntou: -Quais são as plantas daninhas que tu conheces? - Ai, acho que não conheço nenhuma. - Mas de onde tu vieste? E lá tu não conhece nenhuma planta daninha?... Mostrou uma planta e eu sabia que se chamava 'picão', aí ele riu, era uma planta daninha... Aí depois lavamos as enxadas e fomos almoçar naquele enorme refeitório, aquela enorme fila, que vergonha... Eu pensei:23 -Será que eu vou conseguir? Mas eu vou!24.
Observou-se em sua entrevista que o que lhe impulsionava, como a tantas outras, era o desejo de independência. Ela e a outra colega foram para Osório porque lá havia uma escola de formação docente pública. Entretanto, o fato de se afastarem da cidade de origem e de morarem como pensionistas não devia ser fácil para aquelas duas moças. Talvez até se sentissem mais sozinhas e desamparadas do que os colegas internos, pois eles tinham uns aos outros e contavam com a presença dos professores que, por virem de outras cidades, também permaneciam na escola. Ela recordou que, no final do primeiro dia, quando as aulas acabaram e a tia que as acompanhava havia ido embora, de volta para Taquara, deixando-as na casa em que iriam morar, um desespero abateu-se sobre as duas amigas. A outra moça, a que aparentemente era a mais animada, em um determinado momento disse que não suportava mais e que iria desistir de estudar. Claudia afirmou que teve que demonstrar firmeza naquele instante, convenceu a amiga a enfrentar a realidade, uma vez que haviam investido o dinheiro que tinham e enfrentado muitos obstáculos para ali chegarem. Entretanto, relatou que, depois, ao ficar sozinha, costumava debruçar-se na pequena janela do quarto da nova casa, olhando a paisagem. Nessa hora, permitia-se chorar, sentia-se insegura e, sob certo aspecto, abandonada diante da nova etapa de vida que iniciava:
Eu olhei pra serra âe uma janelinha âo nosso quarto e pensei: -Taquara deve estar pra lá e eu chorei tanto. Aí, depois, pensei: - O que é que eu to chorando, eu tenho que ter forças, eu já estou atrasada em vinte dias de aulas, a gente gastou tanto, eu vou ter que enfrentar, estudar e vencer!25
Grazziotin em pesquisa, ouvindo memórias de moças que foram internas em colégios de freiras ou que moravam com parentes, amigos da família ou paravam na casa de alguém, em troca de seus serviços, para poder estudar, escutou lembranças que narravam as mesmas angústias, estranhamentos e sensação de abandono identificadas nas memórias dessas duas alunas.
Há que se considerar que as lembranças desses sujeitos remetem à época da juventude, fase da vida de conflitos e de indecisões, podendo gerar sofrimento, em que é comum sentir-se instável, frágil e pouco valorizado nos grupos em que se convive. Vale destacar, também, o quanto é importante para o jovem ser aceito por seus pares e construir uma identidade grupal. É possível que essa moça, ao ser reconhecida pelo grupo de colegas, se sentisse impulsionada a seguir em frente, e que isso diminuísse sensivelmente seus sentimentos de tristeza e de saudades de casa. Neste sentido, outro aluno avalia os tempos da escola:
Eu via que a solução dos problemas era encontrada com os amigos, então, por exemplo, onze horas da noite, a gente sem sono, noite bonita e tal, ninguém queria dormir e começava a dar fome porque a gente jogava, corria e todo mundo ficava com fome, então um dizia vamos lá tomar leite no Corlac, Corlac era um depósito de leite, então íamos lá, não tinha guarda, a gente descobria aonde as serventes moravam e íamos na casa delas pedir pão, elas davam. Era uma escola maravilhosa porque a disciplina não era rígida, em muitos sentidos bem mais avançada que se possa imaginar. Nos éramos livres, havia uma aparência de disciplina, nós íamos para a cidade em grupos e depois voltávamos... não havia um sentimento de estar quebrando regras, era normal sair porque nós estávamos aprendendo... Então nós nos protegíamos um ao outro, nós nos cuidávamos e havia os que tinham namoradas na cidade e eram invejados por nós, havia os que tinham ligações maiores, tinham a proteção da cidade, nós não... nós íamos construindo, fazendo nossas descobertas26.
São emblemáticos esses sentimentos tristes uma escola que, teoricamente, promovia a convivência entre rapazes e moças. Vê-se que a vida no internato, para alguns rapazes, era difícil. Não menos difícil era a vida das moças vindas de longe para formarem-se como professoras rurais.
3. Outros aspectos da vida no internato
Sendo o internato uma prerrogativa masculina, há situações que só os rapazes passavam, só eles sabiam porque estavam literalmente expostos àquela realidade.
Uma questão intimista evocada, se refere ao estranhamento que as moças da cidade despertavam nos alunos da Rural. Houve narrativas que evidenciaram o quanto os rapazes se sentiam pequenos, inferiorizados, quase invisíveis diante delas. A aproximação das meninas parecia ser difícil, embora passassem o dia juntos, um deles explicou que a convivência mais íntima era um "mistério":
Osório começou a me dar dimensões da vida que eu não imaginava antes, por exemplo, a dimensão da mulher, a presença feminina como realmente sexo oposto, porque até então eu não tinha tido atração feminina, olha as meninas passaram a provocar uma atração em Osório. Nós tínhamos muito respeito pelo outro, pelo sexo feminino, porque nós não tínhamos convivência com irmãs, moças ou com namoradas, nós não tínhamos roupas adequadas, nos não tínhamos o direito de ter uma namorada porque não tínhamos nada, não éramos ninguém, éramos pessoas vindas de longe e depois íamos embora. As moças riam disso, eu acho que elas tinham um pouco de pena da gente, tinham gurias muito bonitas, mas nunca me lembro de ter tocado nelas, às vezes a gente tentava entrar em reuniões dançantes em Osório, mas a gente não conseguia, tinha que pagar ingresso ese a gente entrasse, elas pertenciam a uma classe superior, diferente, um ou outro estudante que era de Osório tinha essa categoria social, então eram pessoas à parte27
Em seus depoimentos, comentaram peculiaridades da vida de internato. Lembraram que havia um professor que morava por perto, e que então distribuía e recolhia as cartas dos alunos, também costumava guardar o dinheiro deles, chamavam-no de "Correio". Contaram ainda que cada um colocava suas roupas dentro da fronha do travesseiro para serem lavadas e, na devolução, elas voltavam limpas, mas todas misturadas. Assim uns alcançavam para os outros: "se tu vivesses lá, eu conhecia a tua roupa, tamanha a vivência e familiaridade", dizia um deles28.
Aos professores, indagou-se se a Escola Normal Rural era, de fato, um lugar em que se misturavam sentimentos de solidão e liberdade. Em resposta, uma das docentes comparou seu tempo de aluna interna, em escola confessional, com modo de educação promovido pela Rural. Da mesma forma que outros, acredita que apenas os mais tímidos sofressem pela solidão, e reconheceu uma certa liberdade incentivada pela escola:
Eu que fui interna em colégio e assim era quase militar, tipo um regime de guerra, era horrível, um troço germânico, tu não podia conversar, tu não podia dar um passo sem pedir licença, tu não podia tomar uma iniciativa, nada, tudo era barrado, tudo era castigado, era cruel, uma coisa horrível, então aquilo lá eu achei o máximo. Bah, um internato assim não podia ser melhor! Eles iam livremente pra sala de aula, claro que na hora da aula tinha que ir pra aula, mas não era aquela rigidez29.
Outra professora reforçou o quanto era importante, e raro naquela época, para a formação dos jovens, o fato de poderem compartilhar do mesmo espaço educacional, em que as exigências eram iguais e todos, em princípio, tinham os mesmos objetivos.
As lembranças dos narradores sinalizam a necessidade de se refletir um pouco mais acerca dessa particular mistura de solidão, liberdade e de cumplicidade que caracterizava as vivências dos alunos e alunas na escola. Então, constitui-se mais um elemento de análise: os rapazes, por serem mais livres, acabavam desfrutando mais a cidade do que as moças. Essa é uma questão intimamente ligada ao sexo masculino na sociedade daquele tempo. Ir ao cinema à noite, por exemplo, parece que era uma prerrogativa masculina, o ato de caminharem sozinhos pelas ruas de Osório e retornarem à escola em um horário quando outros já estavam dormindo, ou, ainda, os refúgios no Morro da Borrúcia, que circunda a escola, todas essas eram vivências importantes na construção de suas identidades. As alunas comentaram que também gostariam de ter ido ao cinema à noite, mas suas famílias não permitiam.
Outra professora ressaltou o ambiente familiar que havia no internato, relatou que, à noite, costumava fazer balas para os meninos e, antes de dormirem, entregava uma bala a cada um. Percebe-se que o sentir-se só não era peculiaridade apenas dos rapazes, pois ela também falou da solidão, principalmente nos dias em que era a única professora a permanecer na escola. Então, para enfrentar a tristeza, não se isolava, ficava com eles na hora do estudo, partilhando momentos de integração:
E quando eu passei a dormir lá tinha dias que eu ficava muito sozinha, houve uma ano que um dia eu era a única professora que dormia lá, porque não tinha ninguém cuidando do estudo, eu ia lá pra sala de estudo e ajudava eles, eu gostava muito de desenhar então eu levava meus cadernos de desenho do Belas Artes, eu desenhava um, desenhava outro e eles adoravam, era outro vínculo, mas na aula era outra conversa, eu era durona30.
Os professores explicaram que as moças representavam uma possibilidade de vínculos entre os internos e a sociedade. Elas parecem ter sido seu maior contato com o mundo externo, com outras famílias, com o espaço urbano, enfim. Nesse sentido, os ex- alunos recordaram que sentiam muita falta das colegas, quando elas retornavam para a cidade ao terminar a aula e nos fins de semana. A professora Ana comparou as moças com a metáfora de uma "ponte", importantíssimas por não permitirem que os rapazes permanecessem isolados na escola. Elas, ao aproximarem o mundo externo dos colegas, traziam um pouco deste mundo de fora para eles. Assim, um deles comentou:
Eu sempre achei que o relacionamento nosso com as meninas era maravilhoso e eu sentia até falta, eu, como tive muitas irmãs, pedia muitas vezes pra elas me arrumarem roupa ou alguma coisa, elas traziam no outro dia a roupa passada, melhor que a lavadeira lá da escola, e a gente ia lá náfrente esperar elas, pareciam que eram umas irmãs, eu tinha meus grupinhos das gurias, sempre gostava porque sempre traziam alguma novidade pra gente e até traziam porque nos tínhamos dificuldades financeiras, não tínhamos dinheiro, e aquelas, como a Madalena e outras que moravam ali por perto, traziam bolo, um pãozinho diferente, um chocolate, então isso foi... uma aproximação maravilhosa31.
Retomando, o internato parece definir-se como um espaço de relações afetivas e materiais também. Eles e elas referem-se às partilhas que aconteciam cotidianamente, enfatizando a criatividade como condição para melhor viverem na escola:
Na Rural tudo era compartilhado. Cigarros, doces, bifes e roupas. José Weber e eu conseguíamos fazer de dois ternos, um cinza e outro azul-marinho, quatro 'fatiotas'. Ora eu usava o conjunto marinho e ele o cinza. Depois, trocávamos, ele usava o marinho e eu ocinza. Mas, volta e meia, ele partia para as festas de calça cinza e casaco azul. Assim, restava-me apenas sair de casaco cinza e calça azul. Até as camisas dos professores Benito e Tarragô não escapavam dessa prática. A criatividade era a nossa defesa32.
Essa ideia da "irmandade", de "ser como irmãos" na escola, é muito forte nos depoimentos examinadas. Disseram que não havia namoros entre colegas, embora não mencionaram que existisse alguma proibição. No entanto, falaram que eram comuns namoros com pessoas de fora da escola, tanto entre o grupo de rapazes, quanto entre as moças. Apenas um deles comentou que era uma exceção entre os colegas porque tinha facilidade em conversar com as moças, sendo admirado e talvez até mesmo invejado pelos outros por conseguir superar barreiras e se aproximar delas.
Ao buscar um motivo que explicasse essa suposta facilidade, enfatizou que a convivência com cinco irmãs deve ter favorecido uma maior compreensão das características femininas. Completou, com orgulho: "os meninos não conseguiam chegar nas meninas.33"
É possível que este sentimento de irmandade se constituísse em algo intransponível naquele momento de suas vidas, impedindo uma aproximação que excedesse o limite da amizade. Acrescentaram que uns cuidavam dos outros, os rapazes protegiam as moças, e elas, de certa forma, também faziam o papel de cuidadoras deles. Reforça-se aqui a ideia de que provavelmente eles precisassem até mais da proteção das colegas do que o contrário. Quando questionamos os dois casais de colegas da mesma turma, ambos disseram que a relação de namoro só aconteceu depois que saíram da escola.
Entir-se livre e, ao mesmo tempo, sozinho, parecem sentimentos contraditórios. A solidão seria o ônus para quem estudava naquela escola e não era natural de Osório?
CONCLUSÕES
Os sujeitos desta investigação, hoje, seguramente com mais de setenta anos, reverenciam a Escola Normal Rural de Osório como algo significativo em suas vidas. Uma série de elementos se agregam na tentativa de explicar a construção de suas identidades, marcadas pela coesão de um grupo que, via de regra, atribui à formação obtida muitas das conquistas pessoais e profissionais. O que os leva a tal atribuição? Primeiramente, por ser pública. Segundo seus relatos, a escola era um lugar de aceitação de diferenças, uma vez que havia co-educação e ali conviviam diversas etnias e culturas.
É importante reforçar que esses sujeitos se reconhecem como "os pioneiros da Rural". É assim que se autodenominam, pois assumem a condição de serem aqueles que inauguraram a escola. Ou seja, nos primeiros anos de funcionamento da instituição, eram poucas as pessoas que compartilharam aquele ambiente pequeno, que proporcionava um contato muito próximo entre todos.
A origem humilde, característica apontada por quase todos os alunos entrevistados, a exceção de um, somada à oportunidade de ingresso em uma escola pública que lhes proporcionaria o acesso quase imediato ao mundo do trabalho, em uma profissão legitimada tanto para homens quanto para mulheres, constitui um outro elemento de aproximação. Uma escola mista, composta por muitos rapazes internos, moças semi-internas, professores e professoras, os quais também, em sua maioria, residiam na escola, promovia outro tipo de convivência, incomum nas instituições escolares dos anos de 1950 e ainda rara nas escolas de hoje. O fato de muitos virem de longe, principalmente os rapazes, pois a eles era garantido o internato, implicava na sua permanência na escola, às vezes até mesmo nos períodos de férias escolares. A escola representava para esses jovens a possibilidade de conhecer um outro mundo, distinto de sua cultura familiar. De tudo que se escutou, conclui-se que a escola despertava muitas expectativas a quem lá chegava, promovia a difusão de saberese oportunizava sociabilidades. Pluralidade, co- educação e convivialidade parecem resumir as marcas das memórias desta instituição em Osório, como uma escola incomum, experiência singular na vida de alunos e de professores que por lá passaram.
Aos olhos de hoje, pensando nas relações de gênero, ocorre certo estranhamento ao não se escutar, nos relatos das mulheres, objeções mais contundentes referentes às desigualdades de condições dessas, com relação aos homens. Naquele contexto, eles tinham garantida a moradia gratuita, e a elas cabia enfrentar mais essa dificuldade, a busca por um lugar aonde residir. Essa partilha desigual do espaço escolar foi naturalizada pelas entrevistadas como algo posto, dado que era, por direito, dos homens.
O que se discute neste texto, sobretudo, é que as condições efetivas de acesso à formação docente rural naquela escola eram oportunizadas aos rapazes, pois, como já se disse, eles tinham a possibilidade do regime de internato. É possível que esse benefício explique por que a profissão de professor rural fosse buscada por mais rapazes do que moças.
Essa reflexão não tem a intenção de evocar os conceitos de opressores (homens), oprimidas (mulheres) e, sim de deslocar a ideia de luta de sexos para o conceito de relações de gênero, focando a análise na maneira como as mulheres, alunas do mesmo ambiente que os homens, percebiam seus direitos naquela instituição pública e mista.
1 Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação/UFRGS.Grupo de Pesquisa EBRAMIC/Educação no Brasil: memória, instituições e cultura escolar - CNPQ. Email: almeida.doris@gmail.com
2 Doutora em Educação, professora do Centro de Ciências Humanas na Graduação e no PPGEdu/UNISINOS. Email: lusgarbi@terra. com.br
3 O conceito de sujeito utilizado no trabalho aproxima-se do pensamento de Michel Foucault e considera que mulheres e homens "tornam-se sujeitos", "aprendem a reconhecer-se como sujeitos"(Foucault, 1995 p. 232), assujeitam-se aos discursos que circulam no tecido social. Segundo Rago (1995, p. 77), "os indivíduos se produzem e são produzidos numa determinada cultura, através de determinadas práticas e discursos, enquanto subjetividades". Portanto, Foucault distancia-se de uma visão fundante e essencialista de um sujeito eminentemente individual. Analisa o sujeito como alguém que é produzido histórica e culturalmente pelas práticas sociais.
4 Michelle Perrot, As mulheres ou os silêncios da história. (Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005), 264.
5 Consuelo, Flecha García, "Las relaciones de género y la educación: de la tradición a la sociedad avanzada". In: La memoria y el deseo: cultura de la escuela y educación deseada. Humanidades pedagógica, Eds Agustín Escolano Benito,; José Maria Hernández Díaz(Valencia: tirant ló Blanch 2002) p. 386.
6 Joan Scott. "História das mulheres" ". In A Escrita da história: Novas perspectiva, eds. Peter Burke,(São Paulo: UNESP, 1992), p. 354.
7 Óp., cit, p. 13.
8 Joan Scott, Gênero: uma categoria útil da análise histórica. Educação e Realidade. 16(2), Porto Alegre (1990): p. 5 - 22.
9 Michelle Perrot,. As mulheres ou os silêncios da história. (Bauru, São Paulo: EDUSC, 2005). 10.
10 James Fentress, Chris Wickham. Memória social: novas perspectivas sobre o passado.(Lisboa: Teorema, 1992) p. 278.
11 Maria Stephanou e Maria Helena Câmara Bastos. "História, Memória e História da Educação", In. Histórias e memórias da educação no Brasil, edsMariaStephanou e Maria Helena Câmara Bastos (Petrópolis: Vozes, 2005) volume III, p. 416 -429.
12 Gwyn Prins,"História Oral", In A escrita da História: novas perspectives, eds. Peter Burke, (org.). (São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992) p. 163 - 198.
13 Antoinette Errante, Mas afinal, A Memória é de Quem?Histórias orais e modos de lembrar e contar. História da Educação 4, n. 8. Pelotas (2000): UFPel. p. 141 - 174.
14 Antoinette Errante. Mas afinal, A Memória é de Quem?Histórias orais e modos de lembrar e contar. História da Educação 4, n. 8. Pelotas (2000): UFPel. p. 141 - 174.
15 JanainaAmado, O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral. Revista História 14,São Paulo (1995): p. 125 - 136.
16 JanainaAmado, O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral. Revista História 14,São Paulo (1995): p. 125 - 136.
17 Essa narrativa encontra-se no livro memorialístico produzido por docentes e discentes da Escola Ildefonso Simões Lopes, antiga Escola Normal Rural de Osório, ver Durlo, Cleto Vicente (org.). Memórias de meio século da Rural. Santa Maria: Pallotti, 2001.
18 Narrativa de Adriano obtida em 2010.
19 Narrativa de Adriano obtida em 2010
20 Narrativa de José obtida em 2010.
21 Narrativa de Antônio e Beatriz obtida em 2006.
22 Narrativa com Antônio e Beatriz obtida em 2006.
23 Narrativa de Claudia obtida em 2006.
24 Narrativa de Claudia obtida em 2006.
25 Narrativa de Claudia obtida em 2006.
26 Narrativa de Carlos obtida em 2010.
27 Narrativa de Adriano obtida em 2010.
28 Narrativa de Flávio obtida em 2005.
29 Narrativa de Lígia obtida em 2006.
30 Narrativa de Lia obtida em 2005.
31 Narrativa de Antonio obtida em 2006.
32 DURLO, Cleto Vicente (org.). Memórias de meio século da Rural. (Santa Maria: Pallotti, 2001) p. 98.
33 Narrativa de Antonio obtida em 2006.
FONTES
Narrativa de Flávio obtida em 2005.
Narrativa de Antônio e Beatriz obtida em 2006.
Narrativa de Claudia obtida em 2006.
Narrativa de Lígia obtida em 2006.
Narrativa de Adriano obtida em 2010.
Narrativa de José obtida em 2010.
Narrativa de Carlos obtida em 2010.
REFERÊNCIAS
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Antoinette Errante, Mas afinal, A Memória é de Quem? Histórias orais e modos de lembrar e contar. História da Educação 4, n. 8. Pelotas (2000): UFPel. p. 141 - 174.
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