DOI: https://doi.org/10.19053/01227238.8015
Artículo de investigación -
Reflexión
Trabalhadores Urbanos,
Estudantes e Guerrilheiros escrevem a História a Contrapelo na Sociedade
Brasileira
de 1968
Urban
workers, students,
and guerrillas write
history against the grain in the Brazilian society of 1968
Trabajadores
Urbanos, Estudiantes y
Guerrilleros escriben la Historia a contrapelo en la Sociedad Brasileña de 1968
Carlos Bauer[1]
Universidade Nove de Julho (Brasil) Grupo de pesquisa HISULA – UPTC
RESUMO
Neste ensaio se analisa a presença dos estudantes, operários e guerrilheiros em alguns episódios políticos
registrados a partir de 1968 no Brasil, partindo-se de uma reflexão sobre a estreita relação que
esses personagens sociais mantiveram com a luta armada e a da importância da
herança política e organizativa que
propiciaram aos movimentos sociais que irromperam desde a segunda metade da
década de 1970. A presença desses movimentos armados e o seu caráter pedagógico
como parte indissolúvel da história dos movimentos sociais permite entendê-los como aqueles que tomam uma direção
inesperada, contrária à edificação da ordem e dos mecanismos de dominação que são próprios da sociedade capitalista;
mas que ousam virar o mundo de ponta cabeça e semear no solo fértil da história
a utopia de uma sociedade sem explorados, nem exploradores.
Palavras-chave: movimentos
sociais; luta armada; história dos movimentos sociai; década de 1960;
movimentos sociais e resistência ao regime militar.
ABSTRACT
This
article analyzes the presence of students, workers, and guerrillas in some
political episodes documented since 1968 in Brazil. Based on a reflection about
the close relationship of these social characters with the armed struggle and
the importance of the political and organizational inheritance that fostered
the social movements from the second half of the 1970s. The presence of these
armed movements and their pedagogical nature, as an indivisible part of the
history of social movements, allows us to understand them as agents of
unexpected changes, contrary to the settlement of order and the mechanisms of
domination, typical characteristics of a capitalist society. These movements
dare to turn the world from head to toe and sow, in the fertile soil of
history, the utopia of a society neither exploited nor with exploiters.
Keywords: social movements;
armed struggle; history of social movements; 1960s, social movements;
resistance to the military regime.
RESUMEN
En este ensayo se analiza la presencia de los estudiantes, obreros y
guerrilleros en algunos episodios políticos registrados a partir de 1968 en
Brasil, partiendo de una reflexión sobre la estrecha relación que estos personajes
sociales mantuvieron con la lucha armada y la de la importancia de la herencia
política y organizativa que propiciaron a los movimientos sociales que
irrumpieron desde la segunda mitad de la década de 1970. La presencia de esos movimientos armados y su
carácter pedagógico como parte indisoluble de la historia de los
movimientos sociales permite entenderlos como aquellos que toman una dirección
inesperada contraria a la edificación del orden y de los mecanismos de
dominación que son propios de la sociedad capitalista; pero que se atreven a
girar el mundo de punta cabeza y sembrar en el suelo fértil de la historia la
utopía de una sociedad sin explotar, ni exploradores.
Palabras clave: movimientos sociales; lucha
armada, historia de los movimientos sociales; la década de 1960, movimientos
sociales; resistencia al régimen militar.
Recepción:
20/05/2017
Evaluación:
08/09/2017
Aceptación:
05/01/2018
O intuito desse
ensaio de interpretação histórica é
verificar alguns acontecimentos
que se produziram
no Brasil em 1968 e as suas repercussões políticas e sociais.
Partimos do pressuposto
de que muitos
desses episódios marcaram a história brasileira contemporânea na sua inteireza,
mas, ao procurarmos resgatar sua memória objetivamos refletir sobre suas
repercussões na esfera dos movimentos sociais e o papel pedagógico que teriam,
ou, não, desempenhando em sua urdidura e
desenvolvimento.
Aproximadamente 50
anos depois vivemos uma aparente anestesia dos movimentos sociais e o auge de
um ciclo conservador oposto pelo vértice daquele instante que se prometia como
a primavera dos povos e a possibilidade das utopias e sonhos de mudanças
radicais se realizassem em todo o mundo.
Em muitos países do
mundo, 1968 trouxe a possibilidade histórica da ruptura com os valores e
mecanismos da reprodução social próprios do capitalismo e os seus reflexos
transcenderam as fronteiras nacionais e simultaneamente atingiram aos mais
variados países. Na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina
e no Brasil também os conflitos tornaramse visíveis
nas manifestações do movimento negro, nos protestos contra a Guerra do Vietnã,
contra
a presença soviética do leste Europeu; como também contra as inúmeras ditaduras
militares que varriam os países latino-americanos, além de um sem número de
fenômenos políticos, culturais e sociais que continuam ecoando até hoje em
nossas vidas.
Em 1968, nos Estados
Unidos da América, são assassinados Martin Luther King e
Robert Kennedy, as contradições
explodiam embaladas pelos protestos negros e contra a Guerra do Vietnã,
mas
o conservadorismo político se consolidou naquele país que hoje detém o maior e
insuperável número de armas registradas por habitantes e, assim, na prática,
manifestam uma predileção pela violência sem comparação no mundo.
Num outro contexto, dimensionando
a importância histórica da Comuna de Paris Karl Marx escreveu
"há dias que valem por séculos na história dos povos", assim,
parafraseando esse autor podemos dizer também que existem anos que marcam profundamente
a
história, esse é o caso de 1968.
Naqueles dias, no
Brasil, muitas organizações políticas, operárias e estudantis de esquerda que
haviam rompido com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), com a vida
institucional, por conta das cassações, perseguições do
Estado ou mesmo pelo afastamento
de algumas correntes mais radicais do pensamento católico,
como é caso da Ação Popular (AP), optaram pela luta armada contra a ditadura
civil-militar instalada no país. Opção essa que trouxe à morte trágica, o
desaparecimento, a prisão arbitrária e a tortura para muitos que ousaram
enfrentar a sanha autoritária da ditadura militar, então, vigente no país[2].
Em 1968 tivemos nas
cidades de Osasco (SP) e de Contagem (MG) a emergência de um novo sindicalismo,
fortemente implantando nas comissões
de fábricas, rompendo, na prática, com o Sindicato de Estado vigente, com uma
capacidade de mobilização política e autonomia da classe
operária,
até então inusitado, e oposto pelo vértice do sindicalismo servil e disciplinado
que havia se constituído durante o Governo de Getúlio Vargas (1930-1945).
Figura 1. Manifestação cívica varguista
do dia 01 de maio de 1941.
FONTE: Acervo do autor.
Não é nenhum exagero se
afirmar que esse tipo de organização da classe trabalhadora é crucial para se
entender a gênese da Central Única
dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT) que hoje assumem um
papel destacado no cenário político e sindical nacional. Também importantes
setores da Igreja Católica passaram para a oposição ao regime militar, como os
partidos políticos, as organizações estudantis, operárias, camponesas e mesmo
muitos intelectuais estavam proscritos, passaram dar voz aos perseguidos
políticos, aos trabalhadores explorados, aos injustiçados
que
a ditadura produzia todos os dias. Suas críticas, contudo, iam muito além dos
episódios que se produziam no Brasil e questionavam o próprio capitalismo e a
sua essência de exploração. Suas críticas e diagnósticos sociais, reflexões
políticas e filosóficas são a base do que convencionamos chamar de Teologia da
Libertação.
Praticamente 50
anos depois é possível indagar: se produziu um tempo necessário para
possibilitar uma reflexão crítica sobre os acontecimentos e as repercussões políticas
e
sociais daquele ano
que
para muitos iria mudar
o
mundo e o Brasil?
1. Dos guerrilheiros, suas organizações e formas de
compreender a realidade brasileira.
Foi a partir de 1968
que um sem número de organizações de esquerda que havia rompido com a linha
pacifista do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou mesmo algumas
correntes
mais radicais do pensamento
católico como é o caso na Ação Popular (AP)
optaram pela luta armada. Mas, antes disso, os estudantes assumiram um lugar
central entre os que se opunham ao regime autoritário. Questionando a
interferência estrangeira na educação, na economia e nos rumos da vida pátria,
protestavam nas ruas contra o famigerado Acordo MEC-USAID, o questionamento
da
presença imperialista no país, materializada na política do FMI e o
descompromisso entreguista de alguns setores das elites nacionais. Logo, não se
constituiu por acaso que muitos militantes do movimento estudantil assumiriam
um papel destacado na opção de
luta armada contra a ditadura civil-militar que havia tomado de assalto o poder
em 1964.
Figura 2. Manifestação dos estudantes
contra o
imperialismo e os acordos MEC-US-AID em 1968.
FONTE: Acervo
do autor.
Nos primórdios da
década de 1960, a universidade no Brasil era considerada um território livre e
os debates que se produziam nos campi reivindicavam a revolução e a própria
questão da liberdade e autonomia universitária articulava- se com os projetos
da nova sociedade que se buscava alcançar. Alimentado, assim, os sonhos de toda
uma geração de estudantes que parecia disposta a mudar o mundo com as suas
próprias mãos!
Entre esses jovens
estava o estudante secundarista Edson Luís Lima Souto. Morto em pleno
restaurante universitário do Calabouço, no Rio de Janeiro, transformou-se
num
marco de profunda indignação e consternação em todo país. O seu trucidamento
desnudava o caráter arbitrário, a violência de Estado patrocinada pelo regime
militar
e a efetivação dos mecanismos coercitivos
de controle social principalmente
tornados
visíveis com a edição dos Atos Institucionais (AI), entre eles o AI-5, em 13 de
dezembro de 1968.
Figura 3. Corpo do estudante Edson Luis
assassinado no restaurante universitário do Calabouço em 1968.
FONTE: Acervo do autor.
A indignação social
causada pelo assassinato de Edson Luís, com um tiro no coração, desferido pelo
revólver do também jovem aspirante da PM Aloísio Raposo, espalhou-se
rapidamente
e levou uma multidão ao seu velório que foi realizado na Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro. Os desdobramentos desse
funeral podem ser
considerados
uma das primeiras manifestações
massivas contra o regime militar e sua prática repressiva e cerceamento das
liberdades civis.
Figura 4. Cortejo fúnebre do estudante Edson
Luis assassinado no restaurante universitário do Calabouço em 1968.
FONTE: Acervo do autor.
Iniciava-se, assim,
um curto ciclo de manifestações pacíficas contra a ditadura militar e, logo
depois, se produziu uma das maiores manifestações realizadas, até então, contra
a escalada de violência que atingia os partidos políticos, a imprensa, os
intelectuais e outros representantes da sociedade civil: a Passeata dos Cem
mil.
Figura 5. Manifestação pública pacífica
contra o assassinato do estudante Edson Luis em 1968.
FONTE: Acervo do autor.
A busca de uma saída
pacífica para crise política e que evitasse o confronto mostrou-se
infrutífera,
pois apenas sete dias depois do cortejo fúnebre de Edson Luís, em plena
escadaria da Igreja da Candelária, os cavalarianos da Polícia Militar desciam o
porrete nas costas dos que haviam acabado de participar da missa
em
memória do estudante morto.
Figura
6.
Manchete do jornal Folha de São Paulo, relatando os conflitos entre estudantes
e policiais por ocasião do sepultamento do estudante Edson Luís.
FONTE: Folha de S. Paulo, p. 1, 30 de março de 1968; Acervo do autor.
A partir daí
verificou-se a escalada da violência policial e militar pelas ruas de todo
país, a opção pela guerrilha urbana e o desfecho que o AI-5 produziu, ou seja,
a implantação de uma ditadura total, não foi mera coincidência. Ademais, diante
da inviabilidade do regime militar suportar uma democratização estrutural do
Estado, o que não permitiria levar
adiante os seus projetos econômicos de integrar o Brasil nos cânones da
economia transnacional e do capitalismo internacional. Enfim, para os arautos
do regime militar, como o ministro da Justiça, Gama e Silva, não havia saída
dentro da ordem.
A perspectiva da
guerrilha enquanto concepção de enfrentamento armado contra a ditadura militar
foi adotada por um sem número de agrupamentos políticos que atuando na
clandestinidade realizaram ações armadas em
diferentes
regiões e estados do país. Entre esses grupos, se notabilizaram a Ação
Libertadora Nacional (ALN), comandada pelo ex-deputado
federal
e exmembro da
direção executiva do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Carlos Marighella, e a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada pelo ex-
capitão do Exército Brasileiro Carlos Lamarca.
Figura
7.
Registro da filiação politica de Carlos Marighela ao PCB.
FONTE: Acervo
do autor
Figura 8. Registro fotográfico de Carlos Lamarca, ainda como
membro do Exercito brasileiro, oferecendo treinamento de tiro aos funcionários
do Banco Brasileiro de Descontos (Bradesco).
FONTE: Acervo
do autor
Outro agrupamento
formado com militantes políticos vinculados ao Partido Comunista do Brasil (PC
do B), partindo de uma concepção maoista de
instalação de focos de intervenção política no meio rural, organizou no início
da década de 1970 um movimento guerrilheiro no sul do Pará. Instalados numa
inóspita região do Araguaia, contando com um incipiente apoio da população
local, algumas dezenas de guerrilheiros, vinculados ao partido, estabeleceram o
que o general Hugo Abreu, comandante das tropas enviadas para sufocar o
movimento revolucionário, classificou como "o mais importante movimento
armado já ocorrido no Brasil rural".
Exageros à parte! Mas
que muitas vezes foram utilizados para se justificar o extermínio dos membros
desses grupos, durante o Governo do General Médici (1969-1974) e, em menor
intensidade, no Governo Geisel (1974-1979),
os agrupamentos identificados com a luta armada no campo e na cidade foram
sendo localizados, perseguidos e eliminados, com a utilização de uma enorme
mobilização de tropas e do aparelho repressivo do Estado
Figura 9. Cartaz com as fotografias dos desaparecidos políticos
na Guerrilha do Araguaia, de 12 de abril de 1972 a 05 de janeiro de 1975.
FONTE: Acervo
do autor
No sul do Pará,
as forças
repressivas mobilizaram um impressionante contingente militar envolvendo,
aproximadamente, vinte mil soldados para debelarem a aventura guerrilheira de
algumas dezenas dos militantes do PC do B. O resultado desta ofensiva foi o
assassinato de pelo menos 61 militantes das forças guerrilheiras que atuavam no
Araguaia. Entretanto, a repressão desencadeada contra os grupos que optaram
pela oposição armada ao regime militar acabou, também, atingindo um sem número
de pessoas que não estavam envolvidas diretamente com a luta armada, muitas das
quais, além de presas de forma violenta e arbitrária, foram torturadas, mortas
e enterradas em sepulturas clandestinas.
Figura 10. Fotografia dos guerrilheiros
aprisionados, martirizados
e mortos
na Guerrilha do Araguaia, de 12 de abril de 1972 a 05 de janeiro de 1975.
FONTE: Acervo do autor
Aliás, na luta contra
as hostes repressivas do Estado militarizado foram
mortas mais de uma centena de pessoas e outras tantas são contadas como desaparecidas.
Desaparecido é um eufemismo que se utiliza para se falar de alguns brasileiros
que foram perseguidos, presos e trucidados ilegalmente pelo regime militar, e
que não tem, nem mesmo, o direito a uma sepultura digna e sobre a sua própria
morte!
Também os
acontecimentos do Primeiro de Maio de 1968, momento no qual alguns setores
organizados do movimento operário e estudantes ligados aos grupos de esquerda
expulsaram o governador e incendiaram o palanque instalado na Praça da Sé, as
greves operárias em Osasco e Contagem e seus desdobramentos políticos refletiam
uma perspectiva foquista de luta revolucionária. Uma
concepção que apostava na irradiação da luta revolucionária, que
iria assim contagiando diferentes setores da sociedade, após sua instalação em
pontos "estratégicos" do país. Mas essa caracterização não era
exclusiva dessa ou daquela organização, elas formavam o pano de fundo das
análises elaboradas pela quase totalidade das organizações de esquerda que
optou pela luta armada contra o regime e que constituíram durante as décadas de
1960 e 1970 uma verdadeira constelação de agrupamentos adeptos dessa tática de
atuação política.
2. As raízes dos movimentos de Osasco e Contagem
Os protestos contra os
baixos níveis salariais e contra a política de contenção das liberdades
democráticas fizeram emergir as greves de Osasco e Contagem e as haveriam de
transformar em "símbolos" da luta contra a ditadura militar. As
raízes desses movimentos podem ser buscadas ainda em 1965 quando prosperou nas periferias
de São Paulo e Belo Horizonte, grupos de base e estudantes universitários
que
então realizavam um
intenso trabalho de agitação social
e
propaganda política em torno das péssimas condições
de
trabalho, arrocho dos
salários
e do alto custo de vida.
Em 1967, grupos de
militantes sindicais formaram comissões de "oposição sindical",
encarregadas de atuar nos sindicatos para recuperar os cargos eletivos ocupados
por interventores mandatários do governo ditatorial. Realizaram-se regularmente
campanhas
eleitorais para dotar as estruturas corporativas
de
alguma flexibilidade e legitimidade. A oposição ocupou com estas campanhas o
limitado espaço disponível mobilizando os trabalhadores e valendo-se
da
oportunidade para elevar o nível de consciência dos problemas sociais e econômicos
que
afetavam seus salários e suas vidas.
As contradições
da
política de "renovação
sindical" tornaramse manifestas nas
eleições realizadas em 1967, no Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem, cidade
operária localizada nos arredores de Belo
Horizonte, exatamente porque
as oposições sindicais, que
era baseada na
representação dos trabalhadores que
atuavam no interior das fábricas,
organizaram uma chapa para
concorrer
com os titulares oficiais.
O programa da oposição
continha uma análise da democratização interna da estrutura
sindical, e preconizava
claramente
a direta participação dos
trabalhadores na administração do sindicato. Também criticava a política de
contenção salarial do governo e a instituição do Fundo de garantia por tempo de
serviço (FGTS) em detrimento da estabilidade no emprego arduamente conquistada
pelos trabalhadores.
Na cidade paulista de
Osasco a maioria dos grupos de base que atuavam no movimento sindical era
ligada às pastorais operárias, ou
às organizações políticas
de
esquerda que estavam próximas aos movimentos estudantis
e de massa. Isto queria dizer politicamente que as maiorias desses militantes
estavam presentes nos bairros e nas fábricas e frequentavam as assembleias sem
levar em consideração à linha sindical do governo, aplicada fielmente pelos
dirigentes sindicais da época.
Dessa sorte, no campo
oposicionista o que se podia verificar eram esboços de uma orientação política
que apontava para o rompimento com a tradição clientelista, buscando assumir
uma postura de rebeldia frente ao Ministério do Trabalho e aos dirigentes
sindicais "oficiais" que sempre procuravam conciliar os interesses
dos operários com os dos governos e do patronato.
Embora existissem
semelhanças nos movimentos deflagrados pelos trabalhadores metalúrgicos de
Osasco e Contagem, o contexto político e sindical também tinha suas diferenças.[3]
A violenta greve que
irrompeu em Osasco no ano de 1968, pode ser compreendida como um produto da ruptura ideológica
e organizativa com as concepções do
sindicalismo de Estado, pois sua origem e desenvolvimento buscavam se
estruturar através de um incansável trabalho de organização molecular e de
permanente politização dos setores de base; que se colocavam em oposição direta
à política salarial vigente do governo militar.
Criticavam também as
concepções corporativistas do sindicato, seu caráter verticalizado e o contumaz
atrelamento ao Estado e sua política de controle social, o que levou os
dirigentes sindicais de Osasco, naqueles dias, a se afastarem tanto das
propostas "conciliadoras" emanadas do MIA, quanto de quaisquer perspectivas
de
se associarem aos partidários daqueles que preconizavam a necessidade de se
constituir uma frente ampla e democrática para se combater os militares.
Para os metalúrgicos de
Osasco não se tratava apenas de conquistar melhores aumentos na época do
dissídio, também "existia, (...), uma questão política":
[...]
nossa visão naquela época. Estávamos ligados ao movimento de massas, mas
bastante comprometidos com as posições de uma ruptura com
o reformismo e de luta armada que a esquerda começava a levantar. Partíamos da
mesma análise de conjuntura que o restante da esquerda estava fazendo: o
governo está em crise, ele não tem saída, o problema é aguçar o conflito,
transformar a crise política em crise militar. Daí vinha nossa concepção
insurrecionalista de greve: levar a massa, através de uma radicalização
crescente, a um confronto com as forças de repressão. Era a visão militarista
aplicada ao movimento de massas. Correspondia a uma determinada concepção do
processo revolucionário[4].
Osasco e Contagem como
experiências de "um novo sindicalismo" apontavam uma tentativa de ruptura
com
a tradição de controle burocrático e de manipulação política muito presente
na
história do movimento sindical brasileiro e
até então vigentes. E demonstravam também que
a luta política dos trabalhadores deveria exigir um trabalho cotidiano
de
base a partir dos locais de trabalho. A grande inovação das greves de 1968 está
associada ao fato de terem sido realizadas sem a ação de piquetes, iniciandose
dentro da própria fábrica, em horário de expediente.
Outra novidade, criada
pelos metalúrgicos de Contagem, mas levada a extremos pelos de Osasco, foi à
ocupação e o controle da própria fábrica, com os operários assumindo os postos
estratégicos da empresa, passando a dirigilos, o
que trouxe significativa mobilização proletária na execução dessa inusitada
empreitada política.
A reivindicação dos
operários de Contagem e que se constituiu logo no primeiro dia
do
movimento, e depois
encampada pelos operários de outras fábricas, era
a outorga de 25% de aumento salarial. O Ministro do Trabalho, coronel Jarbas
Passarinho, foi chamado às pressas
e voou para Minas Gerais com o intuito negociar com os grevistas. De forma
ardilosa o presidente do Sindicato negou que a entidade tivesse promovido ou
mesmo dirigisse a paralisação
(mesmo
porque poderia sofrer intervenção da DRT em caso contrário), mas se
solidarizava com os grevistas e chegou mesmo a
oferecer o auditório do Sindicato para as negociações.
No final de abril, o
General presidente Costa e Silva acabou assinado um decreto de emergência,
concedendo 10% de abono salarial, quantia que deveria ser compensada no
dissídio de novembro. O resultado não agradou aos operários, nem à maior parte das
organizações
políticas, mas acabou representando uma vitória efetiva dos metalúrgicos
mineiros
(que prometiam voltar à greve para
integralizar
o aumento). Até o dia primeiro de maio, a maioria dos trabalhadores continuou
em greve.[5]
A greve de Osasco
refletiu uma longa experiência de organização política e sindical, a partir dos
locais de trabalho, envolvendo militantes da Frente Nacional do Trabalho (FNT),
um agrupamento de advogados trabalhistas e operários cristãos, que se apresentavam
publicamente como opositores da direção
do
sindicato por este, então, serem
pretensamente dirigidos por comunistas.
Além do que se propunham também a efetivar um trabalho de denúncias das
degradantes condições laborais e
de conscientização política a partir dos próprios locais de trabalho.
Nas greves anteriores,
os metalúrgicos da Cobrasma já haviam tido uma participação destacada. Em outra
destacada fábrica da região, a Braseixos, os operários começaram a se afastar
da orientação política do PCB e de suas concepções sindicais por eles caracterizadas
de
cupulistas, passando a organizar o que ficou conhecido como "comitês
clandestinos
de fábrica".
Tais comitês,
na
época, tinham escassa representatividade; constituíam mais
grupos de discussão e um molecular trabalho de propaganda política, que
editavam boletins, faziam denúncias e procuravam estudar a história da classe
operária e a teoria revolucionária do proletariado. Traziam em si um conjunto de
concepções principescas e eram esses os princípios
que lhe
davam certa unidade política: defesa do socialismo, recusa das práticas
conciliatórias de classe e a primazia da participação e da ação direta das
bases. Havia nos grupos uma evidente simpatia pela Revolução Cubana e pela luta
armada. Exceto em alguns momentos de maior mobilização (quando eram criadas
coordenações para o melhor desenvolvimento de suas ações) não possuíam qualquer
direção regular e verticalizada. As reuniões de seus integrantes eram
realizadas nos mais diversos lugares, mas
sempre em função do cumprimento de tarefas ligadas à mobilização ou organização
política para movimentos concretos.
Em 1966, quando a UNE
propunha o voto nulo, adotaram uma posição singular:
anular os votos para deputados e senador, mas
participar
ativamente da campanha no âmbito
municipal. Apoiou assim um candidato do MDB a prefeito, Guaçu Pitteri, e lançou
candidato próprio (pela legenda de oposição) a vereador; também fez propaganda
de dois outros candidatos a vereador. Todos foram eleitos!
Aproveitando-se de
sua presença na Câmara Municipal e relativa influência na Prefeitura, também
tentaram participar de Sociedades Amigos de Bairro e em campanhas de
alfabetização de adultos. Depois de março de 1968, ou seja, depois das
passeatas em protesto que foram realizadas pela morte de Edson Luís, alguns militantes
de Osasco entrariam no processo de luta ideológica que se travou substancialmente
em
toda esquerda sobre os rumos que
deveriam ser tomados pelos que lutavam contra a ditadura militar. Também lá, um
dos pontos centrais do debate foi à questão da tomada do poder pela via armada.
Em 1967, a partir da
Comissão da Cobrasma, com operários de outras fábricas a FNT e o grupo de
Osasco organizaram uma chapa para participarem das eleições sindicais. A FNT
ficou com a maioria dos cargos, mas o grupo de Osasco teve maior influência na
definição do programa. Este colocou claramente a
luta contra o arrocho, pelo direito de greve, pela organização de comissões de
empresa, pelo reajuste trimestral de salários como reivindicações programáticas
centrais; também propunha a
adoção do sistema de contratação coletiva
de trabalho que era, na época,
considerado uma grande e desconhecida novidade.
A chapa de situação
(Azul) foi encabeçada por Henos Amorina (presidente do
Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco de 1965 a 1967). Em quase todas as
fábricas, os resultados acabaram revelando certo equilíbrio entre as duas
chapas. A contagem dos votos dos trabalhadores da Cobrasma decidiu as eleições
em favor da Chapa Verde, liderada por José Ibrahim. Mas logo depois, em virtude
das posições políticas assumidas publicamente pela
nova direção metalúrgica de Osasco, o sindicato esteve
prestes a sofrer uma intervenção
da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), inclusive, o presidente acabou
suspenso do cargo por quinze dias.
Após o
fracasso do MIA, os dirigentes sindicais
paulistas passaram a organizar uma
"festa" para o primeiro de maio. A direção metalúrgica de Osasco foi
convidada para os preparativos, o que fez articulandose com as oposições
sindicais, entidades estudantis e organizações políticas armadas para transformar
a data comemorativa num dia de luta. Enquanto as direções pelegas convidaram
autoridades e artistas para a solenidade do dia do trabalhador, a diretoria
dos
metalúrgicos de Osasco mobilizou suas bases, fazendo propaganda de duas
palavras-de-ordem: "Minas é exemplo de luta" e "Greve contra o
arrocho".
Durante o Primeiro de
Maio, José Ibrahim foi muito criticado por algumas organizações políticas
estudantis, tendo sido classificado até como pelego por não ter aparecido na
Praça da Sé, embora o sindicato tenha fretado alguns ônibus e custeado a ida de
mais de mil trabalhadores ao
ato. O risco de uma iminente intervenção da DRT foi à razão da ausência de
Ibrahim, levantada pela diretoria do sindicato e
outros membros do grupo de Osasco.
Figura 11. Manifestantes tomam o palco das autoridades e protestam durante as
solenidades realizadas, na Praça da Sé (SP), no primeiro de maio em 1968.
FONTE: Acervo do autor
As correntes estudantis
que hostilizavam Ibrahim acusando-o de
pelego não sabiam de dois fatos que estavam em curso: uma greve estava sendo
preparada secretamente pelos
trabalhadores de Osasco; como também, entre os trabalhadores, julgavase
fundamental continuar participando da diretoria do
sindicato para poder preparar e deflagrar esse movimento paredista.
Figura 12. Ficha de José Ibrahim no Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS). O DOPS, criado em 30 de dezembro de 1924, foi o órgão do governo
brasileiro, utilizado durante o Estado Novo e, mais tarde, principalmente, na Ditadura Civil-Militar instalada, em 1964, como parte do
aparato estatal repressivo e inibidor das liberdades políticas e democráticas
no país.
FONTE: Acervo
do autor
A greve de Contagem
pegou o regime de surpresa, forçando-o a negociar e a fazer concessões.
Consistiu num primeiro "furo" no arrocho, mas este se continuasse a
sofrer novas afrontas acabariam comprometendo por completo a própria política
econômica governamental de controle salarial. A greve de Contagem teve implicações
políticas na medida em que desafiou a política econômica oficial vigente. Mas
em julho, o fator surpresa já não existia mais. Só um movimento extremamente
organizado poderia ser
vitorioso.
Figura 13. Panfleto operário chamando a
organização da greve dos metalúrgicos de Osasco (SP) em 1968.
FONTE: Acervo
do autor
No final de junho, os
estudantes paulistas haviam ocupado a Faculdade de Filosofia (Maria Antonia) e
havia notícias de movimentos camponeses ocorrendo em Santa Fé do Sul (São
Paulo). Além disso, articulava-se a Frente Ampla com Carlos Lacerda, Jango e
Juscelino, o que lançavam suspeitas de que uma hipotética cisão no seio das
classes dominantes estava em franco progresso. Esses simples fatos bastaram
para cegar os olhos à conjuntura política e para alentar
a
esperança dos que entendiam que a mera
entrada do movimento operário em cena poderia
alterar fundamentalmente os
rumos históricos do país. Se a possibilidade de repressão quase imediata à
greve era um dado quase palpável, por outro lado, havia expectativas
tão
grandes que se acreditava na possibilidade de, pelo menos,
o
movimento grevista abalarem
um
pouco os sólidos alicerces do
regime ditatorial.
Um enviado do
delegado regional do Trabalho, o General Moacyr Gaya,
foi a Osasco dialogar com Ibrahim, que como no script que
vinha de Contagem, procurou isentar o sindicato da responsabilidade pela greve.
O Coronel Passarinho imediatamente partiu para São Paulo e montou seu QG no
Palácio dos Bandeirantes. No começo dessa mesma noite, a polícia interveio.
Primeiro na Lonaflex, depois na Cobrasma.
Mesmo diante da rápida ação repressiva do governo, no dia seguinte, outras
fábricas aderiram: Braseixos, Brown Boveri e, parcialmente, a Cimaf,
a Eternit e
produziu um total aproximado de 10 mil grevistas, algo impressionante e mesmo
inusitado para aqueles dias marcados pela
intensa repressão política e social. Depois a polícia investiu contra o
sindicato, pois, já havia sido decretada a sua intervenção.
Figura 14. Registro fotográfico da prisão
dos metalúrgicos de Osasco (SP) em 1968.
FONTE: Acervo do autor
No primeiro dia,
foram realizados cerca de 300 a 400 prisões na Cobrasma
e aproximadamente 50 operários ficaram detidos; no segundo dia, ocorreram
algumas prisões em igrejas e a cidade foi toda ocupada por policiais em duplas,
com cachorros amedrentadores e
armas de guerra em punho - a máxima governamental de que o pior inimigo era o
interno mostrava-se à luz do dia.
No terceiro dia,
mesmo sem um comando de greve, pois as maiorias dos seus líderes encontravam-se
presos ou escondidos, o movimento continuou. Perseguidas e atuando de forma
dispersiva, as lideranças tentaram conter o movimento buscando evitar um
desastre ainda maior, ou mesmo uma derrota histórica e que o prostrasse
de forma irremediável. Numa assembléia
de
estudantes em apoio aos grevistas, Manuel Dias do Nascimento, o Neto de Osasco,
chegou a prometer "a continuação do movimento com greves de
grevilhas", ou seja, paralisação um dia de uma seção, outro dia de outra
e, num outro ainda seriam estimuladas as faltas dos moradores de um ou de outro
bairro ao trabalho.
Após o sexto dia, as
fábricas de Osasco funcionavam normalmente. Inúmeros
trabalhadores foram despedidos, outros tiveram que ficar foragidos em função
das buscas policiais que haviam se produzido desde o início do conflito. Tempos
depois, a maior parte das empresas, para evitar problemas, acabou atendendo algumas
reivindicações específicas dos operários e se chegou mesmo a oferecerem cotas
variáveis de antecipação salarial.
Em Contagem e Osasco
restaram núcleos organizados. Em Contagem, em outubro ocorreu uma segunda
greve, que foi preparada exclusivamente a
partir das organizações que atuavam na região. Só durou um dia, sendo
dissolvida pela polícia e o sindicato sofreu intervenção governamental.
Em Osasco, os núcleos
restantes, em setembro e início de outubro, começaram a se aglutinar para, de
novo, reconstituir a oposição sindical. Entretanto, as lideranças mais
expressivas
já estavam mais voltadas para a vida
interna de sua organização política e
se preparavam para "abandonar a
cidade" em troca de realizarem a cada vez mais
próxima
opção pela guerrilha. A dificuldade para reorganizar a oposição sindical foi
ampliada ainda mais quando os
líderes de Osasco foram sendo presos um a um.
O principal
desdobramento político do movimento estudantil, na década de 1960, que foi o
enfretamento armado ao regime militar, o levou primeiro para
fora
do movimento operário e, depois para a
derrota armada, infortúnio que também haveria
de se abater sob as principais lideranças operárias. O elo orgânico entre os
movimentos de Osasco e Contagem e o movimento operário posterior foi
precocemente abortado, mas a experiência daqueles movimentos permaneceu.
Primeiro eles foram tomados como exemplos pelo regime para intimidar
a
classe operária, todavia eles precisam ser
repensados e ajudarem à classe
operária a encontrar seus próprios caminhos de organização política e sindical
no Brasil.
A experiência das
comissões de fábrica, de atuação nos sindicatos (ainda que atrelados), a luta
contra o arrocho, pelo direito de greve realizando greves e pelo contrato
coletivo de trabalho aparecem como
luzes não de um relâmpago perdido num
dia de céu azul, mas
daquelas centelhas que iluminam os mais escuros
dos caminhos.
Os acontecimentos de
Osasco e Contagem não podem ser
menosprezados pelos artífices de nossa história social, pois marcaram de forma
substancial e com os traços da
rebeldia operária os
acontecimentos políticos registrados na
sociedade brasileira em 1968, além do que precisam ser lembrados os que ousam
nadar contra a corrente e que projetam
a história como possibilidade e
não como fatalidade social.
A partir de 1968
a classe trabalhadora, a juventude e os movimentos sociais tiveram que viver um
período de fortes limitações em suas lutas e ações cotidianas que
acabariam soterradas por uma intensa e sistemática repressão estatal. As
derrotas sofridas e as duras
lições
que foram tomadas levaram os movimentos a desenvolver suas atividades na
clandestinidade. Diante das circunstâncias impostas pela repressão deflagrada
pela ditadura militar, o trabalho político acabou sendo realizado silenciosa e cotidianamente
no
interior das fábricas e a implantação dessa perspectiva trouxe
consigo elementos de "basismo" e autonomia operária, sendo
fundamental para o estabelecimento dos alicerces e a expansão do chamado
"novo sindicalismo" que começou a se apresentar a partir de 1977.
Tais objetivos podiam então ser identificados pela trajetória política da
Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo.[6]
Mas, essa não foi à
regra. Diferentes agrupamentos resolveram radicalizar suas ações na luta
contra
a ditadura e acabou optando pela
guerrilha
urbana ou rural como forma de combater a ditadura militar. Esse período acabou
sendo marcado por sequestros de
embaixadores estrangeiros e outras personalidades, assaltos a bancos, ataques a
quartéis e várias proezas, muitas vezes desesperadas, outras heróicas de
jovens lutadores das liberdades democráticas e do socialismo.
Após a
derrocada do movimento operário e
do movimento estudantil e
a ampliação do aparato
repressivo do Estado, centenas de operários,
trabalhadores
rurais, estudantes, profissionais liberais e outros representantes das chamadas
camadas médias da população, não suportando as atrocidades do regime militar,
se lançaram para a ação guerrilheira como
forma de luta. Estes verdadeiros revolucionários, contudo,
não dispunham das mínimas condições para enfrentarem
militarmente o poder do estado capitalista
fortemente
instalado no Brasil.
Também os movimentos
sociais daqueles dias não dispunham de lideranças de massas
que
fossem capazes de driblar o
intenso controle social que o regime
exercia através da manipulação e controle dos meios de comunicação de massa;
transformados que foram em educadores sociais e responsáveis pela eficiente
propaganda do Brasil potência, país do futuro e da Doutrina de Segurança
Nacional utilizando-se de
slogans ufanistas como
"Pra frente Brasil" ou, maquiavélicos, como
o famigerado, "Brasil: ame-o ou
deixe-o".
Naquele momento, pelas
armas, não era possível vencer a ditadura militar. Mas,
muitos tentaram como Lamarca o fez no Vale do Ribeira. Deu-se
assim
com a resistência heroica de algumas dezenas de militantes do PC do B nas matas
do Araguaia dizimados por milhares soldados do exército brasileiro.
Do ponto de vista econômico,
a
ditadura militar se esforçou para garantir a implantação do instrumental
material, energético, capacitação portuária,
estradas, mas também todo um aparato jurídico mais
adequado
à instauração e reprodução do grande capital internacional em nosso país.
Foram anos de
crescimento acelerado da economia brasileira que embalados pelas políticas de
controle social, do arrocho salarial, de um endividamento externo sem
precedentes e da total abertura do país para o capital internacional, se chegou
a crescer até 10% ao ano. Os resultados deste enganoso "Milagre
brasileiro" foi à produção de um acelerado crescimento sem distribuição da
riqueza socialmente produzida, que aumentou a concentração de renda, as desigualdades
sociais, a criminalidade e os conflitos de classe.
Num quadro político
como esse talvez não houvesse nenhum tipo de possibilidade
de
se organizar um poderoso movimento social,
como
aquele que mais tarde haveria de se
constituir em torno do movimento das Diretas já, traduzindo de forma
emblemática um amplo enfrentamento democrático contra as forças do regime
militar. Naquele momento histórico, os diferentes agrupamentos revolucionários,
ao fazerem sua opção pela luta armada, refletiam muito mais uma ação de desesperança
do
que uma possibilidade real
de mudar os destinos do país
pelas armas.
Podemos dizer que o
saldo deste processo foi extremamente negativo
para o desenvolvimento dos movimentos sociais e sua vanguarda foi duramente atacada.
As prisões se encheram de trabalhadores e dezenas deles foram torturados e
mortos pela ditadura militar.
Diante da
impossibilidade de se realizar
um trabalho de organização
mais sistemático dentro das fábricas, uma parcela
significativa da vanguarda do movimento operário que não havia aderido à
guerrilha, apontou uma alternativa para o
desenvolvimento de sua ação política: o questionamento
e
a busca de soluções para os monumentais
problemas
enfrentados pela população
trabalhadora nos bairros das
periferias das grandes
cidades.
A organização e o fazer
político nos arrabaldes dos grandes centros urbanos
envolveu
a luta por melhores condições
de vida imediata e, assim,
buscou
construir mecanismos de auto-organização dos operários produzindo manifestações
sociais das classes mais
pauperizadas, possibilitando aos moradores alguns espaços de reivindicações dos
seus mais elementares direitos de cidadãos, com isso gerando embriões
de
uma vontade coletiva
popular. Por conta disso,
evidentemente, é importante reconhecer que
o trabalho político efetuado pela
classe trabalhadora nos subúrbios das grandes cidades tem a possibilidade
de
apontar as contradições
da
sociedade capitalista e reivindicar a
sua superação!
Talvez até mesmo com a
mesma radicalidade dos que haviam sido produzidos nas fábricas de Osasco e
Contagem, ao impulsionar as lutas populares pela regularização de loteamentos
clandestinos, instalação de redes de luz e água, transportes coletivos, em
defesa da escola pública etc. e, numa conjuntura nefasta como aquela produzida
pelo governo militar, nos primeiros
anos da década de 1970, o
espaço político conquistados nos bairros das periferias das grandes cidades
brasileiras significou, inegavelmente, um avanço político e organizativo
bastante
razoável.
De fato, após o
estabelecimento de um governo golpista em 1964, podemos dizer que foi através
de determinadas manifestações coletivas das classes populares, que atingiram
certo nível de organização e coesão interna, vindo a constituirse em movimentos
sociais, que a participação popular acabou se expressado no cenário político
nacional.[7]
A luta pelos
transportes coletivos, escolas, por creches, postos sanitários e de saúde,
áreas de lazer e recreação, pela moradia, pela legalização da posse da terra,
etc., são alguns exemplos dessas novas formas de participação social que
começaram a surgir depois das duras lições tomadas em 1968. Elas foram capazes
de gerar e mesmo hoje em dia continuam gerados movimentos sociais variados,
todos eles relacionados à reprodução da força de trabalho.
O reconhecimento do
movimento em direção aos bairros não significou dizer que
o
trabalho político realizado
dentro
das fábricas havia sido totalmente
abandonado.
As lutas operárias continuaram inseridas no interior das unidades produtivas,
mas de uma forma silenciosa e restrita. Não se tratava, naquele momento, de
procurar desenvolver ações de massa, mas de
propaganda circunscrita aos
grupos de base, no interior das fábricas e nos
bairros, com o objetivo de socializar
experiências entre as oposições sindicais e sindicatos combativos e,
simultaneamente, se esforçar para implantar novos
grupos
de trabalhadores, ligados às
vanguardas, nas unidades de produção.
Paulatina e
interruptamente, o movimento operário acabou construindo um novo patamar de
ação de massas que em
menos de dez anos,
nos meados da década de 1970, já foi possível
vislumbrar na forma de explosões operárias massivas e violentas
contra
as dificílimas condições de vida e
a superexploração da força de trabalho então reinante.
Sabidamente não
foram apenas as lições de 1968 que possibilitaram o desenvolvimento das lutas
populares nos bairros da
periferia, através dos chamados novos
movimentos sociais urbanos. Existem muitos outros fatores e dentre eles podemos
mencionar: a) a existência de associações de moradores, b) os cursos de alfabetização
de
adultos que eram impulsionados pelas
idéias
e propostas de Paulo Freire, c) cursos técnicos e profissionais, d) movimentos
patrocinados pela Igreja Católica, e) comunidades eclesiais de base etc. Esses movimentos
abriram
um espaço importante e
necessário para a implantação
e
consolidação do trabalho políticos nos mais
distantes
subúrbios das grandes cidades e não podem deixar
de serem mencionados quando buscamos entender o lento processo de construção da
democracia no Brasil.
Em nosso país
esse
tipo de luta
possibilitou
a emergência de alguns movimentos sociais urbanos de expressão significativa: o
movimento pela Anistia em 1978-1979 e o Movimento contra a Carestia que começou
a se tornar mais visível a partir de
1977. O primeiro embora tenha sido liderado por segmentos específicos da
população brasileira, expressou uma luta que era de toda a nação, contra o
arbítrio e o autoritarismo vigentes.
Outro elemento político
importante a destacar neste movimento foi o papel articulador que ele
representou, para as forças democráticas em geral e para os movimentos
populares em particular. Com a decretação da Anistia o movimento prosseguiu
através da constituição dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos em praticamente
todos
os estados do país e a sua presença política é de suma importância na
reconstrução da memória e da história de incontáveis cidadãos que viveram com
paixão e intensidade o ano de 1968 na sociedade brasileira.
Figura
15.
Manifestação dos operários metalúrgicos em greve na cidade de Contagem (MG) em
1968.
FONTE: Acervo
do autor.
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Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984).
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Bauer, Carlos. "Trabalhadores Urbanos, Estudantes e Guerrilheiros escrevem a História a Contrapelo na
Sociedade
Brasileira de 1968". Revista Historia de la Educación
Latinoamericana. Vol. 20 No. 30 (2018): 167-192
[1] Carlos Bauer é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade
Nove de Julho (Uninove) e autor, entre outros, dos livros História e internacionalismo da Escola Nacional Florestan Fernandes, Introdução
crítica ao humanismo dialógico de Paulo Freire e A classe operária vai ao campus. Esboço de história
social, trabalho precário, resistência e ousadia na universidade brasileira
contemporânea (publicados pela Editora Sundermann, in: www.editorasundermann.com.br). Correo eletrônico: professorcarlosbauer@cnpq.pesquisador.br
[2] Para uma compreensão mais ampliada e documentada desse processo
histórico consultar, especialmente,
o livro, de
nossa autoria. Carlos Bauer, Contribuição
para a história dos trabalhadores no Brasil. Volume II. A
hegemonia vermelha. (São Paulo: Edições Pulsar, 1995), 282.
[3] Para o detalhamento dessa questão, conferir o
trabalho de Francisco C. Weffort, Participação
e conflito industrial: Contagem e Osasco - 1968 (São Paulo:
Cebrap, caderno 5, 1972).
[4] José Ibrahim y José Campos Barreto. "Manifesto de
balanço da greve de julho" em A esquerda e o movimento
operário: 1964/1984. Volume I. A resistência à resistência: 1964/197,
eds. Celso Frederico (São Paulo: Novos Rumos, 1987), 37.
[5] Consultar a
compilação documental reunida e publicada pelo professor Celso Frederico, A esquerda e o movimento operário - 1964/1984 - A
reconstrução. Volume III. (Belo Horizonte: Oficina de Livros,
1991).
[6] Consultar,
especialmente, a
pesquisa de Hamilton A. Faria, "A experiência operária nos anos de resistência
(A oposição sindical metalúrgica de São Paulo e a dinâmica do movimento
operário)" (Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 1986).
[7]
Sobre essa temática,
conferir, especialmente,
a obra de Maria
da Glória Marcondes Gohn, A força da periferia: a luta
das mulheres por creches em São Paulo. (Petrópolis: Vozes, 1985).
[8] Nota do autor. A Revista Historia de la Educación Latinoamericana (Rhela), em
seu número 11, volume 28, correspondente ao segundo
semestre de 2008, publicou uma
excelente coletânea de artigos,
versando sobre a importância histórica do movimento estudantil latino
americano e a influência política do Maio de 1968, organizados pela professora
María Cristina
Vera de Flach, da Universidad de Córdoba (Argentina)
e membro do Grupo de investigación Historia y
prospectiva de la Universidad Latinoamericana
(HISULA), no qual foram reunidos os seguintes
articulistas e seus manuscritos: Javier
Ocampo Lopez, Maestro Germán Arciniegas
el educador, ensayista, culturólogo e ideólogo de los movimientos estudiantiles en Colombia; Hugo E.
Biagini, La cultura de la resistencia juvenil y el proceso emancipador; John
Jaime Correa Ramírez, Contra la despolitización de la memoria. Entrevista con
Carlos Antonio Aguirre Rojas, A propósito de los 40 años de mayo del 68; José Rubens Lima
Jardilino, Os frutos de maio:
resenha histórica do movimento estudantil na América latina no inicio do século XX;
Jesús Márquez Carrillo e Paz Diéguez Delgadillo, Política, universidad y
sociedad en Puebla. El ascenso del Partido Comunista Mexicano en la UAP,
1970-1972; Silene de Moraes
Freire, Movimento estudantil no Brasil: lutas passadas, desafios presentes; Dora Piñeres De La Ossa, Relación
universidad y sociedad, prensa y política en los movimientos estudiantiles de
los años cuarenta en la Universidad de Cartagena; Norma Dolores Riquelme,
Conformación de los espacios de poder en el Gobierno de la Universidad Nacional
de Córdoba (Argentina) a mediados del siglo XX; José Eustáquio Romão, Os
frutos de maio de 1968 - O Grito dos Silenciados; Sergio Arturo Sánchez Parra,
Violencia política en Sinaloa: El caso de los "Enfermos" 1972-1978 (Los lugares
y medios para la radicalización) e Luis Fernando Villafuerte Valdés, Una
metodología interpretativa para el estudio de los movimientos
sociales. Enmarcamientos y cultura. Una visión desde México.
Os
artigos acima
citados podem ser acessados,
livremente, em http://revistas.uptc.edu.co/revistas/index.php/historia_educacion_
latinamerican/is sue/view/129
Também
versando sobre essa temática, Rhela, em seu Vol. 19 No.
28, de janeiro a junho
de 2017, organizados pelo professor Álvaro Acevedo Tarazona, da Universidad Industrial de Santander (Colômbia), trouxe a publicação
dos seguintes
artigos: Movimiento
estudiantil de Córdoba y su influencia en Honduras, de Orlando David Murillo
Lizardo; ¿Jóvenes e indignados? La movilización social colombiana en el año
2011, de Álvaro Acevedo Tarazona e Andrés David Correa Lugos; Constantes en los
movimientos estudiantiles latinoamericanos: Aproximación a partir del caso
chileno de 2011, de Andrés Donoso Romo e Protesta y movilización estudiantil en
la Universidad Industrial de Santander: la oportunidad política, de autoria de
Raquel Méndez Villamizar, Johana Linares García e Hector Mauricio Rojas Betancur.
Os
manuscritos podem ser consultados, livremente, em