ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2020, 11(27), e10376

https://doi.org/10.19053/22160159.v11.n27.2020.10376

O pensamento decolonial como alternativa ao “racismo às avessas” no futebol

Otávio Nogueira Balzano 1, João Alberto Steffen Munsberg, Gilberto Ferreira da Silvai

Universidade Federal do Ceará

Universidade La Salle

Brazil

otaviobalzano@yahoo.com.br

Resumo

Este artigo aborda a temática do “racismo às avessas” no futebol, considerado como mais um mecanismo de subjugação da elite branca, e as críticas a esse preconceito. Tem-se como objetivo central propor uma alternativa “outra” para o combate ao “racismo às avessas” no futebol, para além da crítica acadêmica. Trata-se de estudo de cunho bibliográfico descritivo, com reflexões a partir de aportes teóricos de pensadores preferencialmente latino-americanos. Como alternativa “outra”, propõe-se um projeto intercultural para a disciplina de futebol na educação física, com ênfase no pensamento decolonial, na universidade e na escola. Entende-se que para responder às dimensões de competência exigidas para uma alternativa “outra”, o professor de educação física deva conhecer o corpo teórico que sustenta o seu campo de conhecimento e a sua relação com as demais áreas, bem como o saber popular como parte do pensar e do fazer da ciência. Aposta-se no profissional da educação física rompendo com a dicotomia de que o lugar do físico é fora da sala-de-aula e o do intelecto é no seu interior, repensando o esporte escolar como prática social de participação coletiva.

Palavras-chave: futebol, racismo, educação física, pensamento decolonial, interculturalidade

El pensamiento decolonial como una alternativa al “racismo inverso” en el fútbol

Resumen

Este artículo aborda el tema del “racismo inverso” en el fútbol, considerado como otro mecanismo de subyugación de la élite blanca, y las críticas a este prejuicio. El objetivo principal es proponer una alternativa “otra” para combatir el “racismo inverso” en el fútbol, más allá de la crítica académica. Este es un estudio de naturaleza bibliográfica descriptiva, con reflexiones basadas en contribuciones teóricas de pensadores, en especial, latinoamericanos. Como alternativa “otra”, se propone un proyecto intercultural para la disciplina del fútbol en educación física, con énfasis en el pensamiento decolonial, en la universidad y en la escuela. Se entiende que para responder a las dimensiones de competencia requeridas para una alternativa “otra”, el maestro de educación física debe conocer el cuerpo teórico que respalda su campo de conocimiento y su relación con otras áreas, así como debe conocer el saber popular como parte del pensar y del hacer ciencia. Apostamos por que el profesional de la educación física rompa con la dicotomía de que el lugar de lo físico está fuera del aula y el del intelecto está adentro, y por que repiense el deporte escolar como una práctica social de participación colectiva.

Palabras clave: fútbol, racismo, educación física, pensamiento decolonial, interculturalidad

Decolonial thinking as an alternative to “reverse racism” in soccer

Abstract

This article addresses the issue of reverse racism in soccer, considered as another subjugation mechanism of the elite of white people, and the criticism of this prejudice. The main objective is to propose an alternative “other” to fight “reverse racism” in soccer, beyond academic criticism. This is a descriptive and bibliographic study, with reflections based on theoretical contributions of thinkers, mainly Latin American. As an alternative “other”, an intercultural project is proposed for the discipline of soccer in Physical Education, with emphasis on decolonial thinking, both in college and in school. It is understood that, in order to respond to the competency dimensions required for an alternative “other”, the physical education teacher must know the theoretical body that supports his field of knowledge and its connection with other areas, as well as the popular knowledge as part of thinking and doing science. We bet on the physical education professional to break the dichotomy where the place for the physical is outside the classroom and the place for the intellect is inside, and to rethink school sports as a social practice of collective participation.

Keywords: soccer, racism, physical education, decolonial thinking, interculturality

Este texto aborda a temática do “racismo às avessas”1, compreendido como as representações positivas, atribuídas aos afro-brasileiros, no espaço do futebol, que contribuem para a afirmação e a manutenção de hierarquias sociais. O elogio ao negro, no período posterior à abolição está cheio de ambiguidades, isto é, sua integração no espaço do futebol — e em outras esferas da sociedade (samba, capoeira, exército) — teria como efeito perverso a delimitação dos seus lugares de atuação e, também, a forma como os negros foram integrados à sociedade brasileira. Nesses espaços sociais, os desempenhos dos afro-brasileiros seriam louváveis e contribuiriam para a manutenção de hierarquias. No futebol também se observam as manifestações referentes a este preconceito como mais um mecanismo de subjugação da elite branca. Tem-se como objetivo central propor um pensamento “outro”2 para o combate ao “racismo às avessas” no futebol, para além da crítica acadêmica. Trata-se de um estudo de cunho bibliográfico descritivo, com reflexões a partir de aportes teóricos de pensadores preferencialmente latino-americanos.

Teorizar sobre a experiência dos negros no futebol brasileiro não é uma tarefa fácil, numa cultura a que se tem forte influência escravocrata, manifestada, dentre outros setores, através de uma mídia racista, onde muitas pessoas, inclusive pessoas negras, estão convencidas de que suas vidas não são experiências complexas e, portanto, não merecem reflexões.

Não se quer fazer a crítica da crítica, pois se entende que o desvelamento a respeito do “racismo às avessas” no futebol é de suma importância para o amadurecimento da sociedade, em prol do combate ao racismo que persiste historicamente no Brasil. Entende-se que a crítica sobre as temáticas raciais e das representações que as prescindem não podem ser tratadas apenas nas polaridades entre imagens “boas” ou “ruins”. Pretende-se ir além da crítica; ousa-se propor uma alternativa “outra”, sustentada pelo “pensamento decolonial”3.

O texto central está estruturado em três tópicos. No primeiro tópico abordam-se exemplos de “racismo às avessas”, as críticas sobre a temática e a epistemologia dominante, como violência epistêmica na perspectiva dos pesquisadores decoloniais. No segundo tópico exploram-se os conceitos de transmodernidade, de Dussel, pensamento decolonial, de Mignolo e interculturalidade, de Walsh, como fundamentação teórica para uma alternativa “outra” de valorização do conhecimento. No terceiro tópico, apresenta-se uma perspectiva “outra” da importância do afrodescendente no futebol, tendo como referência a sua contribuição cultural, o poder de criatividade para a prática do futebol, a inteligência para tomada de decisão e resolução de problemas em situações de dificuldade.

O “racismo às avessas” no futebol

A tensão entre negatividade e positividade no tratamento dos temas da miscigenação ou da raça negra atravessou as representações sobre o Brasil e seus produtos culturais. Parte da elite intelectual via a população negra como empecilho ao progresso do Brasil (Schwarcz, 2002). Tal construção se originou com a emergente sciencia do século XIX, que difundia o discurso sobre a hierarquia das raças, homogeneizando o “ser negro” (Schwarcz, 2002). Uma das explicações que colocava o negro na escala inferior das raças fundava-se no argumento de que o atraso pensado sobre o continente africano seria herdado e assimilado pela “raça negra” como característica inata. No sentido de homogeneizar “o negro”, unificou-se a pluralidade africana a favor de uma identificação essencialista, ainda que a África seja composta de diferentes grupos com distintas localizações geográficas, histórias e culturas (Munanga, 1988).

Os discursos que hierarquizavam as raças possibilitaram criar adjetivos que indicavam a suposta inferioridade dos negros de forma idiossincrática e homogeneizante: “o negro torna-se, então, sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de mentalidade pré-lógica [...] No máximo foram reconhecidos nele os dons artísticos ligados à sua sensibilidade de animal superior” (Munanga, 1988, p. 9).

No futebol não foi diferente. Segundo Gordon Jr. (1996), as representações dos negros no futebol estiveram vinculadas a expressões naturais e inatas exclusivas da “raça negra”, tais como “irracionalidade, impulsividade, excesso, musicalidade, ginga, arte, malícia” (p. 77). Essa convicção foi reiterada em diferentes momentos com negatividade ou positividade na sociedade brasileira. Futebolistas negros são subalternizados pela mídia como homens incultos, pobres, com menos capacidade intelectual e com maior vigor físico.

Para Soares (1998), os adjetivos que nasceram da identidade da “raça negra” no espaço do futebol são distintos daqueles esperados para os pretendentes em atuar em atividades consideradas superiores ou intelectuais. Os atributos positivos podem ser lidos como uma espécie de “racismo às avessas”. Conforme o autor, o fato de tais atributos serem positivos não indica a inexistência de alguma forma de diferenciação da “raça negra” perante outros grupos.

Nesse sentido, Abraão (2006) afirma que a suposta superioridade revelada pelos negros para as atividades que dizem respeito ao uso do corpo indica, em última instância, a forma como os afrodescendentes deveriam integrar a sociedade brasileira, ocupando os lugares distantes das atividades superiores da razão, a saber: os gramados, as rodas de samba ou de capoeira. Outro exemplo, segundo Eiras (2019), percebe-se quando se abre uma revista ou livro, ou se liga a televisão, quando se acessa a internet ou ao se reparar nas imagens fotográficas da população negra nos jornais. Muito provavelmente encontram-se representações que reforçam ou reatualizam a imagem da negritude de forma inferior em relação à imagem da população branca. Estas representações podem ter sido construídas por pessoas brancas despreocupadas e desinteressadas pela temática racial ou por pessoas negras que podem ver a sociedade através das lentes brancas do mundo, internalizando o racismo dentro de si.

A violência epistêmica exercida pelos colonizadores europeus manifestou-se numa série de discursos que possibilitaram e racionalizaram a dominação colonial, produzindo, assim, certas maneiras de ver “outras sociedades e outras culturas”. A linguagem e os diferentes tipos de discursos são os instrumentos daqueles que usam esse tipo de violência, o que exige certa visão de mundo ou paradigma intelectual em que “o outro e/ou o outro” são vistos como segundo ou segundo seres humanos sub-humanos — animais, selvagens, etc.

O futebol também é vítima dessa violência. Ele reproduz a lógica da divisão social do trabalho, onde brancos coordenam e negros executam. O não reconhecimento da inteligência ou do conhecimento afrodescendente faz com que muitos craques não recebam o convite para serem treinadores. Jogadores como Djalminha, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho e Pelé não seguiram no meio futebolístico enquanto técnicos. As lentes racistas brasileiras impossibilitam que se enxergue competência mental e cognitiva no futebol praticado pelo negro.

Para Giulianotti (2002), esta discriminação/violência acontece desde o processo de seleção dos atletas na formação das equipes. Conforme o sociólogo:

Para atletas não-brancos, a experiência do racismo começa na escola. Os professores esperam um nível acadêmico relativamente limitado dos alunos negros, tacitamente conscientes de que suas oportunidades de trabalho são pequenas. O currículo é modificado para maximizar sua habilidade esportiva natural. Uma vez estabelecidos dentro do futebol, os jovens jogadores negros têm menos chances de compartilhar das brincadeiras e da camaradagem dos colegas de equipe brancos. Estereótipos raciais sobre as habilidades atléticas e a baixa inteligência dos negros continuam durante a seleção do time. (p. 205)

Ainda segundo Giulianotti (2002), os jogadores de futebol são amontoados em posições “centrais” ou “periféricas”. Jogadores centrais formam a espinha dorsal do time, como o goleiro, o volante, o meia-armador e o centroavante. Eles representam o “centro inteligente” e dão o formato do jogo, de acordo com as habilidades do time e as exigências de cada partida. Os jogadores periféricos, como os zagueiros e alas, não são valorizados intelectualmente, embora sua força física e seus individualismos sejam vitais em explorar a extensão do campo, principalmente no ataque.

Um caso preocupante das diferenças de tratamento entre brancos e negros no futebol acontece na Ucrânia. O escritor Foer (2005) relata que a cultura futebolística daquele país segue uma lógica do marxismo científico aplicado ao esporte. Segundo ele, o criador do sistema de avaliação no futebol foi Valeri Lobanovsky. Esse sistema dá valores numéricos para algumas ações nas partidas, como passes, desarmes, taxa de erros, intensidade no jogo, efetividade, entre outros. Os dribles e os passes verticais têm pouco valor. Estas referências de avaliação fazem com que os jogadores brasileiros e africanos tenham pouca pontuação, pois a cultura de futebol destes jogadores é de ser engenhoso, indisciplinado e elegante. Os jogadores brasileiros e africanos estão sempre na parte inferior da tabela de avaliação, levando a uma baixa valorização de seus passes e seus rendimentos. Contribuindo com o discurso da violência epistêmica, Grosfoguel (2016), traz:

A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os demais. (p. 25)

Para o sociólogo, essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo. Trata-se de um provincianismo pretencioso, que se disfarça debaixo de um discurso de “universalidade”.

Neste aspecto, entende-se que o campo educacional precisa passar por mudança de atitude e de postura dos pesquisadores em relação ao papel da academia. Não basta teorizar; é preciso agir. Não basta dialogar; é preciso colaborar. Mato (2017) propõe como projeto decolonial a “colaboração intercultural”, articulando teoria e prática nas mais variadas modalidades de experiências colaborativas. Para o autor, o trabalho acadêmico precisa estar articulado com o ativismo social, cuja produção de conhecimento requer articulação com as práticas sociais dentro e fora da academia, em colaboração com outros atores sociais, promovendo o “diálogo intercultural” e a “construção de modalidades concretas de colaboração intercultural” para conquistar mudanças efetivas nas normas, nas políticas e nas práticas educacionais. Percebe-se que essas mudanças também devam influenciar a educação física, principalmente nos cursos de formação de professores e nas aulas dessa disciplina na educação básica.

Perspectivas decoloniais

Diante do desafio representado pela modernidade eurocêntrica e suas estruturas coloniais racistas/sexistas de conhecimento, e relacionando com o objetivo deste texto, isto é, uma alternativa “outra” de combate ao “racismo às avessas no futebol”, traz-se para colaborar com esse desafio o filósofo argentino Dussel, que propõe a transmodernidade como projeto para dar conta do processo incompleto de decolonização.

Conforme Dussel (2008), a transmodernidade é um convite para que se produza, a partir de diferentes projetos epistêmicos políticos que existem no mundo hoje, uma redefinição dos muitos elementos apropriados pela modernidade eurocêntrica e tratados como inerentes à Europa, rumo a um projeto decolonial de liberação para além das estruturas capitalistas, patriarcais, eurocêntricas, cristãs, modernas e coloniais.

Para se mover além da modernidade eurocêntrica, Dussel propõe um projeto de decolonização que utiliza continuamente o pensamento crítico das tradições epistêmicas do Sul. Nessa linha de transformação epistêmica, o semiótico argentino Mignolo (2007) entende que o caminho para o futuro ante a colonialidade é a desobediência epistêmica, isto é, a proposição de um pensamento decolonial. “La actualidad pide, reclama, un pensamiento decolonial que articule genealogías desperdigadas por el planeta y ofrezca modalidades económicas, políticas, sociales y subjetivas otras” (p. 45).

O próprio intelectual destaca que o pensamento decolonial ou “pensamento-outro”, caracterizado como decolonialidade, se expressa na diferença colonial, isto é, um reordenamento da geopolítica do conhecimento em duas direções: a crítica da subalternização na perspectiva dos conhecimentos invisibilizados e a emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade de categorias suprimidas sob o ocidentalismo e o eurocentrismo (Mignolo, 2003). Assim o pensamento outro se distingue da ideia de paradigma, considerando que o que se propõe com esta desobediência epistêmica é a possibilidade de pensar para além do modelo eurocêntrico de conhecimento. Por isso mesmo, não é um outro pensamento, e sim, um pensamento outro, pois se coloca ao lado, para além e não desde dentro, ou então, como produto da trajetória epistêmica racional moderna.

No sentido de um “pensamento outro”, a respeito da legitimidade do conhecimento corporal do afrodescendente no futebol, busca-se o conceito de interculturalidade de Walsh (2010). A linguista entende a interculturalidade: “como proyecto político-social-epistémico-ético y como pedagogía decolonial” (p. 76). E mais, considera a decolonialidade e a interculturalidade como espaços de luta, muito além de temas de origem acadêmica. Em outras palavras, a interculturalidade deve ser entendida como projeto destinado à transformação estrutural e sócio-histórica para todos. Conforme Munsberg e Silva (2018):

A interculturalidade se propõe a mais do que reconhecer e tolerar as diferenças, é preciso intervir, transformar estruturas sociais injustas, reconstruir sob outras bases, estabelecendo outras/novas formas de relações, de existir e co-existir. Aprender a ser, estar e (con)viver com o outro. (p. 148)

A interculturalidade pressupõe superar o individualismo, os velhos discursos, as estruturas excludentes e as posturas discriminatórias em prol de um trabalho cooperativo, colaborativo, reflexivo e dialógico. Sob essa ótica, a interculturalidade possibilita a convivência de realidades plurais, o questionamento de discursos hegemônicos, padronizações e binarismos, bem como a desconstrução, problematização e relativização de estruturas e práticas sociais.

 Considerando a educação física, enquanto possibilidade para uma proposta intercultural, faz-se necessário indagar como as percepções do senso comum são constituídas e vividas e como alguns saberes têm mais poder e legitimidade que os outros. Faz-se também necessário identificar as relações de poder que são expostas pelos professores, pois se percebe, desde a seleção dos conteúdos, que existe uma cultura hegemônica, e a partir daí a incorporação das regras, normas, preconceitos e valores da elite branca, padronizando os espaços, os tempos e os movimentos dos sujeitos, tornando-os alienados. Isto fomenta uma prática acrítica e sem sentido (Balzano & Silva, 2018).

É fundamental, numa prática intercultural, que o professor de educação física perceba que o futebol vai além dessa visão restrita, entendendo-o num sentido amplo, para além da mera prática. Deve, para tanto, conhecer o futebol e sua história, seus significados, suas ações e intervenções sociais, culturais e políticas. Esta proposta deverá estar pautada numa prática pedagógica que desenvolva os valores éticos, combata qualquer tipo de preconceito e valorize a cultura local.

Acredita-se que a educação física também possa desgastar o pensamento hegemônico universal e a violência epistêmica. É nas aulas de educação física que ações devem ser realizadas para o desvelamento e combate ao “racismo às avessas” que persiste na sociedade do futebol. Mas para que esse processo seja efetivo, depende da atuação ativa do profissional de educação física com seu público alvo — alunos. O profissional, nas suas aulas, deve considerar a formação do aluno enquanto indivíduo, conhecedor de seus direitos e deveres, dentro e fora do campo de jogo.

Perspectiva “outra” do conhecimento do afrodescendente “também” no futebol

Esse estilo único de jogar do futebolista afro-brasileiro, segundo Matta (1989), foi influenciado pelo samba, pela capoeira e pela malandragem e está diretamente ligado à “criatividade”, que por sua vez está relacionada integralmente com o drible4. Para ilustrar essa criatividade, traz-se o relato de Domingos da Guia, registrado na pesquisa realizada por Murad (2007):

Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes […]. Meu irmão mais velho me dizia: “Malandro é o gato que sempre cai de pé… Tu não és bom de baile?” Eu era bom de baile mesmo, e isso me ajudou em campo… Eu gingava muito… O tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba. (p. 27)

O ex-zagueiro da seleção brasileira disse que levou o samba miudinho para dentro de campo. Ele relata que seus dribles eram a transposição dos passos de sambista para dentro de campo. Em outras palavras, o corpo passou a ser usado integralmente nas jogadas, para escapar das do jogo brusco dos adversários brancos.

A criatividade é considerada uma capacidade humana de grande valor universal. Para Sánchez (٢٠٠٣), a criatividade é uma sublime dimensão da condição humana. O autor afirma que é na capacidade criativa que existe a chave da capacidade de evolução da humanidade. A criatividade apresenta-se de múltiplas maneiras. Conforme López e Navarro (2008), a criatividade deve ser entendida pela complexidade, por meio da interação individual e coletiva com o ambiente específico. Esta tendência enaltece a importância da capacidade de interagir, inovar, resolver problemas, assumir riscos, em contextos marcados por mudanças constantes de ações, que requerem divergência e modificações de pensamento.

Sendo o futebol um contexto complexo, é necessário que o jogador seja capaz de solucionar problemas, e é na formulação de uma organização não austera e nos planos de resolução dos problemas estabelecido pelos treinadores que reside a magnitude da criatividade. A atribuição da qualidade “criativo” depende diretamente de quem está julgando. Um grupo de avaliadores pode concordar que um produto não seja criativo, mas outro grupo pode avaliá-lo como muito criativo. A criatividade é, portanto, também baseada no julgamento sociocultural de uma novidade, considerando-se sua utilidade, qualidade e importância.

Como “outros”, é preciso que o brasileiro dê muita importância a esse conhecimento, pois foi através da criatividade do afrodescendente que o futebol virou uma paixão nacional e representará sempre uma possibilidade de superação para aqueles que, na prática esportiva, ascendem e transcendem graças ao talento e às qualidades ímpares de um grande atleta.

Para Daólio (2005), o futebol brasileiro é uma das principais “manifestações culturais brasileiras”, constantemente atualizada e ressignificada pelos seus atores, principalmente os afrodescendentes. Tem-se como mote que o futebolista afrodescendente, com seu estilo “particular” de jogar futebol, que começou a partir dos anos 20 e tendo seu auge nos anos 70 do século XX, foi o grande contribuinte para que o futebol brasileiro fosse reconhecido e admirado ao redor do mundo, caracterizado como o “futebol arte”5. Esse diferencial teve aporte na capoeira, samba, malandragem, futebol de rua, experiências socioculturais que contribuíram para esse estilo único de praticar futebol, influenciando na cultura nacional e na forma de jogar futebol no mundo.

Quando se fala que o povo brasileiro recriou o futebol com o seu conjunto de inteligências vivenciadas na sua formação étnico-cultural, essas estão demonstradas na manifestação de tudo ao mesmo tempo: mestiçagem, capoeira, samba, malandragem, barroquismo, inteligência para o jogo, entre outros. Em outras palavras, as expressões culturais identificadas com a cultura afrodescendente foram traduzidas e transformadas em técnicas no campo de futebol e na vida. De acordo com Daólio (2005), esses fatores geram um atleta técnico, inteligente e habilidoso. Capaz de encontrar soluções para as tarefas/problemas inerentes ao jogo com rapidez, precisão e economia de energia.

Para Mahlo (1969), a ação de jogo ou a tomada de decisão é a “combinação significativa, mais ou menos complicada, de diversos processos motores e psíquicos, indispensáveis à solução de um problema nascido na situação de jogo” (p. 33). Visto que o jogo é uma sucessão de problemas situacionais, e a solução para estes problemas, antes de ser motora, é sensorial e mental, facilmente se depreende o importante papel desempenhado pela inteligência.

Futebol é um jogo de cognição e não de execução. Não se deve cair na ilusão do “basta saber fazer” para se ter sucesso nos diversos e distintos confrontos que ocorrem durante os 90 minutos e na vida. Necessita-se pensar sobre o que se está fazendo, mesmo quando não há tempo para pensar. É necessário captar e selecionar a informação relevante de forma rápida; é preciso conscientizar e decidir rápido para que os mecanismos de tomada de decisão e execução sejam também rápidos, eficazes e eficientes. Foi essa inteligência que os atletas afrodescendentes trouxeram para a prática do jogo. Como não valorizar? A desvalorização pode ter vindo porque “muitos” não sabem fazer igual.

Não se pode dissociar corpo da mente — o que foi o “Erro de Descartes” —; os dois interagem unidos e em mesma intensidade com o ambiente. A razão e a emoção não “jogam em campos diferentes”. As emoções estão implicadas nas percepções que se faz do mundo, nas tomadas de decisões, nos raciocínios, na aprendizagem, nos processos de memorização, nas ações, na concentração, etc.

O Brasil reinventou o futebol, principalmente com o conhecimento afrodescendente. Deixou para trás o moderno, para rebatizá-lo com o nome de “futebol arte”. E foi com arte que a seleção brasileira venceu cinco campeonatos mundiais e revelou ao mundo artistas da bola6. Esse esporte, que no primeiro momento foi praticado pelas elites, com o passar do tempo e com as conquistas dos títulos mundiais, foi reconhecido pela sociedade como uma instituição e orgulho nacional. Isso ocorreu principalmente quando os afrodescendentes oriundos de classes populares se apropriaram desse bem cultural e realizaram um ato de recriação — em verdade de criação. Desta forma, o futebol ganhou contornos da cultura brasileira, isto é, passou a ser jogado com a ginga do samba e da capoeira. Tornou-se “popular” e, então, brasileiro (Matta, 1989).

Considerações Finais

Este trabalho teve a intenção de produzir uma alternativa “outra”, construindo uma posição de combate ao “racismo às avessas” no futebol, alicerçados pelo “pensamento decolonial”, isto é, valorizando o conhecimento do afrodescendente no futebol como uma episteme importante para a cultura, principalmente, para ser ensinada e apreciada nas aulas de educação física.

Entende-se que para promover uma alternativa “outra” no ensino do futebol, o professor de educação física é peça fundamental nessa engrenagem. Para isso, ele deve ser capaz de romper com a dicotomia de que o lugar do físico é fora da sala-de-aula e o do intelecto no seu interior. É preciso repensar o esporte escolar como prática social de participação coletiva promover solidariedade, criatividade, integração, autonomia e socialização do educando. Portanto, é preciso oferecer condições para a que a habilidade física dialogue de forma fértil com a racionalidade.

Ademais, o professor de educação física precisa incorporar o movimento, o jogo, o lúdico, o prazer e a alegria no conjunto da vida escolar, como dimensões indissociáveis do ser humano. Em suma, para responder às dimensões de competência exigidas para uma alternativa “outra”, o professor de educação física deve conhecer o corpo teórico que sustenta o seu campo de conhecimento e sua relação com as demais áreas, bem como o saber popular como parte do pensar e do fazer da ciência.

Nessa perspectiva “outra” de compreender o mundo, ousando e desgastando os paradigmas tradicionais, finaliza-se esse texto de uma forma “outra”, isto é, com a letra da música criada pelo rapper Fábio Brazza (2017), para exaltar o estilo brasileiro de jogar futebol, cunhado pela criatividade, pela inteligência cognitiva para resolução de problemas e tomada de decisões em campo, evidenciando a grande contribuição cultural para o Brasil.

A gente nasce assim

Do imprevisível

Do inesperado

Do sonho impossível

Do solo rachado

Da luta diária

De fora da área

Do meio do nada

É um facho de sol

Que vira alvorada

No meio da estrada

É a bola de meia pela calçada

A pelada improvisada

É como se fosse

100 mil no maraca

É cair no chão

Mas se recusar a sair de maca

É a desilusão

Que vira um gol de placa

A gente nasce assim

Com o coração pulsando que nem tamborim

Como se a vida fosse um samba que nunca tem fim

Tem que se virar

Pra receber a bola livre

Por isso que a gente aprende desde cedo

A ser bom no drible

Com nossa alegria rara

De encarar a vida como ninguém mais encara

E quando a tristeza vem

A gente tem o nosso jeito

De dominar ela no peito

E ainda tocar virando a cara

É o riso

É a raça

É a fé

A força

É o axé

Um quê de mandinga

Que traz a ginga no pé

A bola que embala o nosso balé

Um grito de olé

E quem vem de fora

Não sabe o que é

Ninguém nos ensina a fazer a diferença

Não se aprende

É de nascença

Tá nos cromossomos

É como somos

Nossa nobre linhagem

Nosso sexto sentido

É o que eu chamo de brasileiragem

Brasileiragem

É nossa ginga no pé

É um pouco de louco

E só entende quem é

Brasileiragem

É nossa raça

É a fé

É um pouco de louco

E só entende quem é

A gente nasce assim

No meio de um jogo

Pegando fogo

Entrando de sola

Tirando da cartola

Um truque novo

É a garra do povo

Que sem nada no saldo bancário

Vira Ronaldo Nazário

E se supera de novo

Fazendo magia

Feito um ilusionista

Um bruxo

É poesia

Como um lance de Ronaldinho Gaúcho

É Davi vencendo Golias

É Neymar no meio dos grandalhões

Fazendo estripulias

A gente nasce assim

Como se Deus fizesse sinsalabim

E de repente a gente já soubesse

O que ia ser no fim

É indiscutível

Inexplicável

Intraduzível

Indecifrável

Imprescindível

Imensurável

Não é querer ser mais que ninguém

Nem levar vantagem

Mas é que só a gente tem

Esse dom da brasileiragem

Assinatura original

Nossa impressão digital

Porque quando a gente faz

Ninguém consegue fazer igual

Brasileiragem

É nossa ginga no pé

É um pouco de louco

E só entende quem é

Brasileiragem

É nossa raça

É a fé

É um pouco de louco

E só entende quem é

Brasileiragem

(É nossa maneira de levar a vida, irmão)

Brasileiragem

(Com garra e coragem

É o que eu chamo de)

Brasileiragem

(Um povo que não teme lutar

Tá no DNA)

Brasileiragem

(E só entende quem é)

A gente nasce assim

Referências

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1. O futebol serviu para o campo ideológico brasileiro como política que compensaria a falta de oportunidades à população negra e sua exclusão de setores societários. Essa política foi refinada e desenvolvida de forma que reproduzisse que o único caminho para a ascensão da população não-branca só fosse possível através do corpo e, de preferência, ao corpo mudo e subalterno. Dessa maneira, a reconstrução da história do futebol e da população negra fornecem indicadores para outros processos culturais mais amplos que não se concentram apenas na cultura esportiva. O papel dos significados em torno da negritude, e especialmente ao futebol, tornam-se importantes na (re)afirmação de uma cultura negra corporificada que se amplia e se torna nacional. Com os afrodescendentes vistos apenas como corpos, a cultura negra é encarada como sinônimo de trabalho braçal, para o samba e para o futebol (Eiras, 2019).

2. “La noción de “pensamiento-otro” fue creada por el autor marroquí Abdelkebir Khatibi (1938-2009), y se refiere a la posibilidad de pensar desde la descolonización, luchar contra la deshumanización, la existencia dominada y la no existencia” (Walsh, 2013, p. 32). Os autores do grupo “Modernidade/Colonialidade” usam frequentemente expressões como “pensamento-outro”, “conhecimento-outro”, etc. Neste contexto, a palavra “outro” quer se referir não somente a qualquer perspectiva alternativa, que possa estar inserida numa lógica de fundo que não é posta em questão. Quer significar uma mudança de ótica, de lógica, de paradigma.

3. O pensamento decolonial “tem como razão de ser e objetivo, a decolonialidade do poder” (Mignolo, 2007, p. 30) e, para isso, é premente “a descolonização epistemológica, a fim de dar um largo passo em direção a uma nova comunicação intercultural, a um intercâmbio de experiências e de significações, como a base de outra racionalidade que possa pretender, com legitimidade, alguma universalidade” (Quijano, 1992, p. 447).

4. A defesa aqui impetrada não recusa que o drible existisse fora do Brasil; mas reivindica que a invenção do drible no Brasil inaugura um modo distinto de driblar, o que pode ser entendido como a efetiva “invenção do drible”, e que isso se deve à regra informal dentro de campo que retratava as restrições étnico-raciais da sociedade brasileira. [...] É interessante notar que existem duas perspectivas acerca da etimologia da palavra “drible”. Por um lado, dribble, que em inglês significa babar e por extensão gotejar ou pingar, já aparecia no futebol em 1863. Ao mesmo tempo, existe a palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear. [...] Sendo assim, podemos interpretar que o sentido de discursar em Kikongo remete a dançar com as palavras, rodopiar com as letras ou ter molejo com o que se diz para conduzir quem ouve para onde se deseja. (Noguera, 2015)

5. O futebol-arte é caracterizado, entre outros fatores, pelo jogador que de forma individual desequilibra a partida com lances de rara habilidade técnica, possuidor de uma inteligência apurada de jogo (Paoli, 2007).

6. Um atleta negro foi considerado como o melhor jogador de todos os tempos. O brasileiro Edson Arantes do Nascimento, conhecido mundialmente como Pelé, autor de mais de mil gols em sua carreira, tricampeão mundial de futebol pela seleção brasileira e bicampeão mundial de clubes pelo Santos. Foi o vencedor de diversos prêmios, incluindo o de Atleta do Século pelo jornal francês L’Equipe, no dia 12 de julho de 1980. Em 2014, aos 73 anos de idade, recebeu o prêmio Bola de Ouro honorário da FIFA, tendo em vista que durante sua carreira — de 1956 a 1977 — o prêmio era dado apenas para jogadores que jogavam na Europa, com a clara visão eurocentrista do esporte (Pizarro, 2014).