ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2021, 12(28), e11470

https://doi.org/10.19053/22160159.v12.n28.2021.11470

Educação ambiental de base comunitária e a luta pela água

Barbara Pelacani1, Anne Kassiadou Menezes,Daniel Renaud Camargo, Celso Sánchez, Marcelo Stortti

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

1barbarapelacani@ufrj.br

Resumo

Neste artigo nos propomos a refletir sobre a educação ambiental que emerge do conflito em torno do projeto de construção da barragem do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, RJ. Para tanto, partimos da perspectiva de educação ambiental de base comunitária, elaborada pelo Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur, em especial no encontro com o Movimento dos Atingidos por Barragens, numa busca por justiça ambiental. Assim, tais aproximações desvelam o viés necropolítico deste projeto de des-envolvimento que entra em choque com agricultores e com a vida deste território. Com isso, destacamos a educação ambiental de base comunitária, tecida a partir do encontro com as vozes e as águas que fluem por este ambiente como um caminho possível para o enfrentamento de uma necropedagogia que sustenta tal necropolítica.

Palavras-chave: justiça ambiental, necropolítica, conflito socioambiental, movimentos sociais, agricultores

Educación ambiental comunitaria y la lucha por el agua

Resumen

En este artículo, proponemos reflexionar sobre la educación ambiental que surge del conflicto en torno al proyecto para construir la presa de Guapiaçu, en Cachoeiras de Macacu, Río de Janeiro. Para ello, partimos de la perspectiva de la educación ambiental comunitaria, desarrollada por el Grupo de Estudio de Educación Ambiental desde el Sur, en especial en el encuentro con el Movimiento de Afectados por Represas, en busca de la justicia ambiental. Así, tales reuniones revelan el sesgo necropolítico de este proyecto de “desarrollo” que choca con los agricultores y con la vida de este territorio. Por eso, destacamos la educación ambiental comunitaria, tejida a partir del encuentro con las voces y las aguas que fluyen a través de este entorno como una posible forma de enfrentar una necropedagogía que respalda dicha necropolítica.

Palabras clave: justicia ambiental, necropolítica, conflicto socioambiental, movimientos sociales, agricultores

Community environmental education and the struggle for water

Abstract

In this article, we propose to reflect on the environmental education that emerges from the conflict over the construction project of the Guapiaçu dam, in Cachoeiras de Macacu, Rio de Janeiro. To this end, we start from the perspective of community environmental education developed by the Environmental Education Study Group from the South, especially in the interaction with the Movement of Dam Affected People, for the pursuit of environmental justice. Thus, such meetings unveil the necropolitical bias of this “development” project, that clashes with farmers and with life in this territory. Therefore, we highlight the community environmental education, interwoven from the encounter with the voices and the waters that flow through this environment, as a possible way to confront a necropedagogy that supports such necropolitics.

Keywords: environmental justice, necropolitics, socio-environmental conflict, social movements, farmers

A gente combinamos de não morrer! [...] A morte incendeia a vida, como se estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é.

— Conceição Evaristo (2014, p. 99).

O projeto de construção da barragem de Guapiaçu — no município de Cachoeiras de Macacu (RJ) — suscitou uma série de questionamentos na população local, que se viu diante de uma ameaça aos seus modos de vida. Eles receberam a notícia deste empreendimento com muita apreensão, considerando os possíveis impactos socioambientais que tal barragem poderia provocar. Aumentaram dessa forma as tensões políticas, econômicas, de saúde e dos bens comuns utilizados por essas comunidades. Isto teve um impacto na região metropolitana do Rio de Janeiro, pois o território citado tem uma produção diária de 55 toneladas de alimentos, liderando o plantio de aipim e milho (Movimento dos atingidos por Barragens [MAB], 2015a). Diante disso, tais comunidades se organizaram e, com apoio do MAB, passaram a semear processos de re-existência de onde emergem estratégias pedagógicas. E é justamente sobre tais estratégias que dedicamos esforços de pesquisa.

Assim, nossas investigações partem da tessitura teórica entre os campos da ecologia política e da educação ambiental [EA], embasados na perspectiva crítica (Layrargues & Loureiro, 2013; Loureiro, 2019), com a mirada sobre o conhecimento que emerge das comunidades — por compreendê-lo em seu potencial emancipatório, assumido aqui como educação ambiental de base comunitária [EABC] (Camargo, 2017; Pelacani et al., 2020; Sánchez et al., 2020; Sarria et al., 2018; Stortti & Sánchez, 2018). Com isso, refletimos sobre as relações entre um conflito socioambiental e as potencialidades educativas emergentes das lutas pela água em um território do estado do Rio de Janeiro (Pelacani, 2018).

Elencamos as categorias conflito ambiental (Porto, 2012) e necropolítica (Mbembe, 2011) para problematizar o caso do projeto da barragem do Guapiaçu — um contexto emblemático que nos ajuda a entender como a necropolítica e a necropedagogia (Kassiadou, 2020) se materializam e desvelam as relações de poder. Este caso, ainda que compreenda uma situação que se expressa numa escala local, revela fenômenos sociais que estão imbricados em contextos políticos, sociais, culturais e econômicos também presentes numa escala macro. Estes pontos são ilustrados em diálogo com o campo da ecologia política (Alimonda, 2017; Martinez-Alier, 2007) e desaguam na EA para a compreensão destas relações.

Assim, identificamos nas vivências de agricultores da região de Guapiaçu uma outra lógica de existir, resistir e re-exitir em diálogo com suas trajetórias constituídas na relação com seu território, podendo ser identificados como sujeitos de terrexistência (Stortti, 2019). Com isso, neste trabalho elegemos como foco de análise a luta pela água enquanto conflito socioambiental e o papel da EA como processo de formação política para o fortalecimento comunitário, por meio das ações desenvolvidas pelo MAB no Guapiaçu e nas parcerias com o Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur [GEASur] da Unirio.

Aqui, destacamos de maneira mais incisiva o papel das mulheres agricultoras neste contexto, justamente por reconhecermos que seus corpos e suas vidas são os mais impactados por tais projetos de des-envolvimento, bem como por reconhecermos sua atuação na articulação das comunidades e organização dos movimentos sociais. Portanto, levamos em conta no presente trabalho a presença das mulheres na EABC nas ações desenvolvidas pelo MAB, que em muitos aspectos denota uma educação ecofeminista (Oliveira et al., 2020). Posto isto, pretendemos descrever as ações pedagógicas e pontuar onde estas mulheres agricultoras se estabeleceram como protagonistas, compreendendo que os processos pedagógicos organizados pelos movimentos sociais fortalecem as lutas, integram territórios e internacionalizam os processos de resistência.

Reflexões teóricas: ecologia política, necropolítica, necropedagogia

Para compor nossas reflexões, a delimitação teórica do presente ensaio se baseia em categorias conceituais que nos deram coerência para fundamentar os argumentos e estabelecer bases para as reflexões e análises a respeito da questão ambiental. A importância dessa articulação da EA em sua vertente crítica, conforme aponta Loureiro (2019), com os acúmulos do campo da ecologia política latinoamericana (Alimonda, 2017; Leff, 2006), nos auxilia a contextualizar as propostas pedagógicas às realidades socioambientais dos territórios, compreendendo-os como o novo campo de interesse do grande capital, que, através de suas estratégias cada vez mais sofisticadas de neoextrativismos, acentuam a capital dependência.

Em Martinez-Alier (2007), encontramos a compreensão da ecologia política como uma fusão da ecologia humana com a economia política, que envolveria a produção de conhecimentos considerando os diferentes atores com distintos níveis de poder e interesses, os quais se confrontam com as demandas de recursos por parte de outros atores num contexto ecológico particular.

Já para Alimonda (2015), a ecologia política pode

trazer implícita uma reflexão sobre a democracia e sobre a justiça ambiental como ampliação e complementação dos direitos humanos e de cidadania. A centralidade da política nas relações sociedade-natureza pode ter significativas consequências teóricas e práticas, ao permitir a articulação de perspectivas de diferentes problemáticas “sociais”, e a abertura de um espaço de interpelações horizontais e enunciações plurais. (p. 9) 1

Concordamos com Layrargues e Loureiro (2013), que assinalam que a ecologia política teve a capacidade de explicitar uma grande questão da contemporaneidade, por revelar as contradições do sistema social com base no uso abusivo e intensivo da natureza.

Esse olhar crítico nos permite fazer uma leitura da “necropolítica” e da “necropedagogia” que emerge nos cenários de conflitos. Ao compreendermos, a partir das reflexões de Mbembe (2011), que existem “políticas que se estruturam mediante a divisão das pessoas que devem viver e as que devem morrer” (p. 17), alcançamos a noção do que seria uma necropolítica. A necropolítica atua como forma de apropriação dos territórios pelo capital. As relações de poder dominantes matam por meio, por exemplo, de políticas de flexibilização das legislações ambientais, trabalhistas e previdenciárias, bem como da redução das tarifas fiscais, além da seleção de territórios estratégicos para a construção dos grandes empreendimentos (Malerba et al., 2014). Sob esta ótica, tais estruturas e políticas de morte se revelariam também no entendimento e produção de processos pedagógicos, situações, atos, ideologias e intencionalidades que favorecem a impossibilidade de ser mais — de humanizar-se (Freire, 2014), no sentido ontológico, no qual denominou-se necropedagogia (Kassiadou, 2020).

Neste caminho, Kassiadou (2020) reforça que existe um conjunto de relações pedagógicas — observadas em casos concretos de conflito ambiental —, que negam a humanidade. Se o ser humano se constitui a partir de suas atividades no mundo, as intenções pedagógicas que negam essas possibilidades são formas destrutivas e desumanizadoras de produzir conhecimento. Ou seja, a necropedagogia desafia os processos de emancipação humana dos sujeitos oprimidos. Ao resgatar as ponderações sobre a desumanização propostas por Freire (2014) , somos levados a fortalecer a necessidade dos debates ontológicos na EA em seus sentidos amplos, de maneira que possam oxigenar este campo da educação a partir de uma perspectiva popular, buscando sempre a interlocução com os sujeitos e grupos encobertos pelo sistema hegemônico.

Ao refletir sobre conflitos ambientais, Porto (2012) revela que o que se encontra em jogo são disputas por valores e visões de mundo que definem as lógicas e sentidos do trabalho, da economia e da própria vida. Considerando tal ponto de argumentação acerca do conflito ambiental, compreendemos que este é um fenômeno privilegiado do ponto de vista político, epistemológico e pedagógico, pois, na medida em que as partes se manifestam com seus modos diferenciados de apropriação e uso dos bens de um determinado território, isso necessariamente envolve a dimensão do posicionamento político diante da realidade, o que passa pela produção de conhecimentos, valores, sonhos, projetos e utopias. Este ponto de vista é fortalecido ao analisarmos alguns versos de Freire (1988, em Machado & Machado, 2017) sobre as relações entre conflito e formação: “Estou muito convencido que o conflito é formador; o conflito faz parte da consciência. O conflito existe e há que se aprender nele” (p. 76).

Educação ambiental de base comunitária

O conceito de EABC começou a ser delineado pelo GEASur a partir da criação do projeto de pesquisa Educação ambiental desde el Sur: decolonialidade, interculturalidade e ecologia de saberes. Perspectivas para a educação ambiental no contexto latinoamericano, coordenado pelo professor Dr. Celso Sánchez. Com base na perspectiva de tal projeto, o pesquisador Silva (2016) produziu a dissertação Sociedades de água do Morro da Formiga: subsídios para educação ambiental de base comunitária e ecologia de saberes em favela carioca, que investigou a emergência da EABC de um movimento de gestão popular da água. Concluiu-se que existe uma EA cujo objetivo é promover uma sociedade ambientalmente e socialmente mais justa que incorpore a ecologia de saberes para promover o reconhecimento de outras epistemologias e visões de mundo.

Camargo (2017) pontua que a EABC é produzida a partir de uma estreita parceria com as comunidades, levando-se em conta os contextos locais, as especificidades dos territórios, bem como empregando os saberes locais e as memórias comunitárias como elementos basilares de suas propostas pedagógicas. Trata-se de uma perspectiva elaborada a partir do encontro entre a abordagem de educação ambiental crítica e o “legado das lutas sociais da América Latina”, que abrange, entre outras coisas, a educação popular, a pedagogia freireana, a investigação ação participante de Fals Borda etc., constituindo-se em “uma importante chave para pensar um ‘que-fazer’ comprometido e atento às vozes dos territórios” (Camargo, 2017, p. 184).

Nesta linha, a EABC vem sendo desde então sistematizada e seus principais pontos são elencados a seguir:

1) o contexto geopolítico latinoamericano; 2) o legado das lutas sociais da América Latina como base politico-teórico-metodológica para pensar uma educação ambiental não-norte-eurocentrica; 3) histórias de vida, memória oral, cultura popular e saberes locais como elementos estruturantes das propostas educativas, bem como a visão de uma educação ambiental capaz de auxiliar na proteção do patrimônio imaterial das comunidades; 4) as perspectivas da decolonialidade, interculturalidade e ecologia de saberes como eixos estruturantes; 5) uma concepção de educação ambiental crítica articulada à educação popular, por meio do uso de metodologias participativas; 6) a visão da educação ambiental enquanto uma ferramenta de gestão popular dos recursos. (Camargo, 2017, pp. 88-89)

Neste caminho, ao dissertar sobre as lutas que educam na América Latina, Pelacani (2018), ao estudar o projeto de barragem do Guapiaçu, identifica uma EA que valoriza a atuação popular e dialoga com a força das mulheres diante de um conflito. Reconhece que a re-existência parte da necessidade de sobreviver ao ataque produzido por projetos de desenvolvimento nos territórios e daí germina uma EABC que precisa ser ouvida pela universidade. Descreve a dimensão política da EABC ao defender que ela deve ir “para além de revelar às comunidades as questões ambientais e as possibilidades de um futuro sustentável” (Pelacani et al., 2020, p. 351). Tal perspectiva destaca a urgência da práxis dos pesquisadores com as comunidades e do conhecimento da EABC que germina da atuação popular diante dos conflitos.

A perspectiva das mulheres dentro da EABC é estudada no GEASur pela pesquisadora Oliveira et al. (2020), que sinaliza as contribuições dos feminismos do Sul Global para se pensar a valorização das experiências comunitárias em sua pluralidade. Acredita que a perspectiva ecofeminista popular pode representar um caminho para a busca por alternativas de EABC que fortaleçam as comunidades.

A práxis da EABC é atravessada pelas reivindicações que as comunidades produzem junto aos movimentos sociais em sua re-existência, uma potência para a atuação popular (Pelacani, 2018). Refletimos acerca de uma EA que, implicada pelos conflitos, está comprometida com a compreensão da materialidade-história do território e do posicionamento dos sujeitos históricos na atuação socioambiental, pedagógica e política.

A luta pela água no Guapiaçu e o MAB

O Guapiaçu é um território que apresenta uma história de lutas pela terra, pela água e pela vida, que se repetem em ciclos, desde a resistência no período da ditadura empresarial-militar até os dias de hoje na mobilização contra a construção de uma barragem. As disputas travadas neste contexto fomentaram a produção de uma série de saberes, práticas e ações de base comunitária, decorrentes das mobilizações do povo em torno da defesa da água, da natureza e de seus modos de vida. O movimento dos agricultores teve origem na ocasião do anúncio da construção de uma barragem em seu território. Diante disso, eles se mobilizaram com seus sindicatos rurais e movimentos populares para resistir a este projeto. Neste caminho de luta se uniram ao MAB para fortalecer sua luta diante de um projeto de grandes dimensões necropolíticas.

A barragem, se concretizada, inundará 2100 ha e impedirá a produção de toneladas de alimentos — aipim, milho, jiló, quiabo, laranja, goiaba, palmito de pupunha, hortaliças e leite — que saem mensalmente do Vale do Guapiaçu em direção ao CEASA do Rio de Janeiro — o que representa cerca de 40 % do total ali comercializado —, bem como para mais de 70 escolas estaduais para a complementação da merenda escolar. O projeto da barragem do Guapiaçu é apontado como um conflito pela água e pela terra que ameaça mais de 1000 famílias em 12 comunidades, com pessoas atingidas direta e indiretamente (Associação dos Geógrafos Brasileiros [AGB], 2014). Esse projeto ignora as possíveis alternativas e não aborda o fato de que este tipo de barragem, um tanto ultrapassado pelo seu grande porte, tem um curto prazo de validade, pois estudos da AGB (2014) mostram que em 2035 ela já não seria mais capaz de abastecer a população da cidade, o que reforça sua inviabilidade.

Esta proposta é parte dos grandes projetos de desenvolvimento do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Tais projetos promoveram a expulsão de populações locais, incluindo camponeses e comunidades tradicionais como verificado no caso do Complexo Industrial Portuário do Açu em São João da Barra, que é parte do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro e corta diversos municípios da Baixada Fluminense; e o caso do Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro [COMPERJ] que está diretamente relacionado com a proposta de construção da barragem do Guapiaçu (Comissão Pastoral da Terra, 2013, 2014, 2015; Memórias das Lutas, 2017). A figura 1 expressa, simbolicamente, as disputas de território no estado do Rio de Janeiro.

Figura 1

Charge sobre grandes projetos de desenvolvimento, criada por Silas Evangelista do MAB

Fonte: Memórias das lutas (2017).

A barragem do Guapiaçu é um projeto que vem sendo anunciado há mais de 6 anos, tendo sido reativado pela Secretaria do Ambiente do Rio de Janeiro. Esta obra insere-se no conjunto de condicionantes do licenciamento ambiental do COMPERJ, onde inicialmente aparecia como uma necessidade do empreendimento para o abastecimento industrial em seu estudo e relatório de impacto ambiental. A primeira proposta foi combatida pelo MAB e pelos agricultores do Guapiaçu, e os estudos foram refeitos. Sendo assim, foi recentemente inserida, enquanto um dos “benefícios” provocados pela construção do COMPERJ, uma compensação diante dos seus impactos socioambientais, com a justificativa de dar conta do abastecimento humano no cenário de “estresse” hídrico do leste da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (AGB, 2014).

O MAB tem uma história de 20 anos de movimento nacional em defesa dos direitos dos atingidos, em defesa da água e da energia e pela construção de um “Projeto Popular” para o país. Tem atuado na organização dos atingidos por barragens no Brasil através de resistência, lutas e conquistas.

O MAB está organizado em cada região através de seus grupos de base, alicerce e força do movimento, e das coordenações a nível local, estadual ou nacional. A história e as manifestações do movimento estão marcadas pela forte presença da identidade dos trabalhadores rurais, com relações próximas ao sindicalismo rural combativo e com o Movimento dos Sem Terra [MST]. Juntamente com o MST e o Movimento de Pequenos Agricultores, o MAB integra a Via Campesina no Brasil. Entre as necessidades políticas e organizacionais do movimento nacional e dos movimentos locais e regionais, o MAB organiza suas lutas, desempenhando diversos papéis na resistência frente ao modelo hegemônico de sociedade, com diferentes posicionamentos diante do desenvolvimentismo, além de apresentar alternativas com base na atuação local e busca por tecnologias.

O encontro da EA com o MAB que será desenhado a seguir é essencial por trazer a materialidade para o presente trabalho e por enfrentarem a incongruência do sistema capitalista diante dos conflitos socioambientais, como demarca Loureiro (2019). A atuação do MAB descrita através das ações relacionadas à luta pela água no Guapiaçu e suas vertentes colabora tanto pela elaboração de discursos, exposição de dados que fortalecem a resistência, quanto no apoio à mobilização. Pelacani (2018) destaca que quanto mais ampla a escuta do movimento para com a base, mais fortalecido este se conforma, aumentando sua capacidade de mobilização

Metodologia

O presente trabalho é um dos reflexos da investigação de dissertação da pesquisadora Bárbara Pelacani (2018), denominada As lutas que educam na América Latina: a educação ambiental que emerge do conflito pela água em Cachoeiras de Macacu com um olhar desde a Colômbia. Tal pesquisa foi resultado de um processo pedagógico coletivo fomentado e germinado através de debates teóricos e práticas de EA com o GEASur. O grupo de estudos é o espaço acadêmico que abriga os demais pesquisadores presentes no texto apresentado. Assim, as pesquisas e reflexões de Celso Sánchez, Marcelo Stortti, Anne Kassiadou e Daniel Camargo se entrelaçam e provocam um debate sobre as interfaces da EABC com a ecologia política.

A metodologia utilizada no presente artigo está relacionada a pesquisas qualitativas, em diálogo com a perspectiva descritiva analítica. Parte-se da revisão bibliográfica e do levantamento de dados através das redes sociais, em sites na internet e da observação participante de atividades realizadas pelo MAB e em conjunto com o GEASur.

A observação participante pode ser caracterizada como uma pesquisa coletiva que envolve o pesquisador e a população. Se preocupa com o papel do investigador dentro da situação investigada. É pensada para reduzir o estranhamento recíproco, visando compartilhar o observável de forma intuitiva e se propõe a cuidar dos laços de confiança favoráveis ao processo de investigação (Alexandre, 2014).

Seguimos a ótica da dialogicidade freiriana (Freire, 2014), isto é, o fundamento essencial de um processo educativo como prática de emancipação. No pensamento de Freire, o diálogo, a partir da oralidade, é um movimento natural de mulheres e homens desvelado “como algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como algo mais que um meio para que ele se faça, se nos impõe buscar, também seus elementos constitutivos” (Freire, 2014, p. 89).

A partir desse ponto de vista, fizemos observações das ações educativas e culturais do MAB em diferentes lugares, como no espaço comunitário do movimento em Cachoeiras de Macacu; na Escola de Educação da Unirio — Urca, RJ —; e na exposição das Arpilleras no Centro Cultural da Justiça Federal. Participamos de reuniões relacionadas ao projeto da barragem do Guapiaçu e atividades comunitárias. Esse processo de observação se inicia em 2017 e termina em dezembro de 2019.

No próximo item apresentamos os dados levantados durante o processo de observação participante e as análises e inferências feitas a partir do diálogo com o referencial teórico debatido no início do artigo.

Os processos educativos da luta socioambiental

Identificamos a parceria estratégica do MAB com universidades, poder público, organizações sociais e outros segmentos da sociedade e sistematizamos os processos pedagógicos identificados no conflito pela água do Guapiaçu e nas parcerias com o GEASur.

O MAB elaborou, junto com as comunidades atingidas e em diálogo com universidades, contraponto ao projeto de construção da barragem do Guapiaçu (MAB, 2015a). Apresentam o dossiê que traz alternativas à barragem como forma de enfrentar a crise hídrica. A proposta do MAB exposta no dossiê é por uma segurança hídrica verdadeira e comprometida com a justiça socioambiental, manifestando seu interesse no cuidado com a quantidade e a qualidade da água do rio Guapiaçu.

Portanto, o movimento reivindica alternativas com sustentabilidade ambiental através da recuperação da produção de água com reflorestamento, agroecologia e EA, cuidando da vazão dos rios e não os destruindo. A percepção comunitária que dialoga com o MAB na elaboração do dossiê argumenta a favor do abastecimento público, mas que ele não se sobreponha à luta dos agricultores. O movimento identifica a construção de uma grande barragem como uma tragédia ambiental.

Além disso, o MAB propõe a criação de uma Política Estadual de Direitos para populações atingidas por barragens e a apresentação da política de tratamento para cada uma das famílias atingidas pela barragem do Guapiaçu, com objetivo de garantia de justiça ambiental (MAB, 2015a). Este caso é uma das frentes de atuação do MAB em defesa da água e da energia e pela construção de um “Projeto Popular” para o país.

Um processo que ficou amplamente conhecido foram as Arpilleras2 construídas em parceria com a Fiocruz. Aí as trabalhadoras rurais construíram processos de diagnóstico participativo através da confecção de mapas que identificam as situações de risco e os problemas socioambientais mais graves em cada território. Elas conheceram a técnica chilena denominada “arpilleras”, na qual se costuram retalhos de tecido sobre juta para contar histórias e marcar a memória das mulheres nas lutas. Esse processo foi muito rico em produção de peças artísticas e gerou uma exposição denominada de Arpilleras bordando a resistência, além de um filme que narra a vida de cinco mulheres militantes do MAB de diferentes regiões do país e a produção de suas arpilleras. Destacamos que essas são formas de enfrentamento à necropedagogia que o movimento produziu, uma EABC que encontrou caminhos para abordar o papel da mulher na sociedade brasileira. 

Outra produção foi a do documentário Guapiaçu: um Rio (de Janeiro) Ameaçado (MAB, 2015b), realizado em parceria com a Fundação Heinrich Böll, a FASE e a AGB. O movimento exibiu o média-metragem em várias regiões e deixou-o disponível online, como estratégia de sensibilização e de ampliação da luta. Sua realização contou com a participação de agricultoras e agricultores do território e foi construído coletivamente por militantes do MAB. Nele se expressou o grito das atingidas, que pode ser ilustrado pela fala da agricultora Lena Viana, que na época era militante do MAB: “As pessoas querem arrancar a gente do nosso lugar com raiz e com tudo, o quê que vai acontecer de nós? Nós vamos morrer, assim como as árvores que se arrancam e não tem como se replantar de novo”, em resposta à questão central do vídeo: “Em meio à falta d’água que assola a região sudeste do Brasil, uma pergunta vem à tona: quem pagará a conta dessa crise?” (MAB, 2015b)

O MAB organizou o seu 8º Encontro Nacional com mais de 3500 atingidos de todo Brasil. Celebraram a vida e a defesa pela unidade na luta pela soberania nacional. Organizou também o Seminário Internacional Transição Energética para um Projeto Energético Popular, o qual reuniu cerca de 100 pessoas de 37 organizações, vindas de 23 países da América, África e Europa. Ambos foram realizados em outubro de 2017 no município do Rio de Janeiro e contaram com apoio e participação de pesquisadores do GEASur (figura 2).

Figura 2

2a: 8º Encontro Nacional do MAB; 2b: Seminário Internacional Transição Energética para um Projeto Energético Popular

Fonte: Bárbara Pelacani (2017).

Podemos destacar a parceria do MAB com o GEASur, construindo e compartilhando coletivamente conhecimentos. Neste sentido, foram organizadas duas edições do evento internacional denominado Diálogos desde el Sur. O VI Diálogos desde el Sur: Águas Alternativas para o Desenvolvimento contou com a participação da coordenação nacional do MAB, e com pesquisadores, professores e militantes da Colômbia.

O evento Ciranda Universitária da Água e Energia, produzido pelo MAB no âmbito da divulgação do Encontro Nacional nas Universidades, foi realizado na Unirio com apoio do GEASur e aglutinou o VIII Diálogos desde el Sur: Educação e Lutas Populares e o segundo encontro A Questão Ambiental e as Resistências Populares, com debates entre pesquisadores de diversas universidades do Brasil e da Colômbia, ativistas socioambientais, estudantes e a população. A Ciranda Universitária contou com a exibição do filme Arpilleras e a Feira Camponesa com os produtos vindos da agricultura familiar de diferentes movimentos sociais do campo (figura 3a).

Como parte dessa parceria, o GEASur convidou Alexania Rossato da coordenação nacional do MAB para compor o curso de extensão Educação Ambiental de Base Comunitária e Ecologia Política na América Latina (figura 3b). A liderança apontou caminhos para pensar uma educação popular na luta pela água, que envolve as disputas territoriais, com perspectivas econômicas e políticas, com a pauta: “água e energia não são mercadorias!”, por reconhecer que os processos de privatização arrasam comunidades. Contribuiu na formação de educadores e ativistas socioambientais críticos, com a intenção de responder às demandas da educação ambiental em territórios que enfrentam conflitos ambientais (Sánchez et al., 2020).

Figura 3

3a: Cartaz do VIII Diálogos desde el Sur: Educação e Lutas Populares; 3b: Cartaz do curso de extensão do GEASur

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Fonte: GEASur (2018).

Durante o curso de extensão foi organizada a exposição H2Orizontes que apresentou charges críticas idealizadas pelos agricultores do Guapiaçu militantes do MAB Silas Evangelista e Raiene Evangelista3 (Figura 4a). Os desenhos originais exibidos junto com o trabalho artístico de Bárbara Pelacani, que entretece fotografia e narrativa poética: as fotoescrevivências (Pelacani, 2018), inspiradas na professora Conceição Evaristo, apresentam a luta pela água no Guapiaçu. A exposição também foi apresentada para um público diverso no espaço do Movimento dos Pequenos Agricultores – Raízes do Brasil em Santa Teresa (RJ), na sala de exposições da Unirio e na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus Nova Iguaçu.

O MAB, a universidade pública, as agricultoras e os agricultores do Guapiaçu têm produzido um enfrentamento à necropolítica e à necropedagogia através das práticas aqui apresentadas, relacionadas à formação pedagógica para emancipação, produção de encontros e difusão de informações sobre as ações do MAB, articulação entre grupos e movimentos sociais, entre sujeitos em luta e estudantes. Têm aproximado agricultoras e agricultores da universidade, através de palestras e exposições, que integram saberes que não estão presentes nas universidades. Saberes que lutam por espaço para serem apresentados e que seus territórios estejam representados.

As práticas de fortalecimento descritas nos permitem identificar os caminhos que a necropedagogia percorre para implementar sua necropolítica. Como descreve Kassiadou (2020), a necropedagogia desumaniza e impede a emancipação dos sujeitos. Identificamos aqui, através do contraste com as práticas de enfrentamento, que ela opera produzindo silenciamento, desarticulação e inferiorização de sujeitos e de seus saberes. A necropedagogia refletida no presente trabalho seria um processo de deslegitimar a luta dos movimentos sociais, observada a partir da oposição aos processos que geram autonomia descritos nas ações de EABC.

Figura 4

4a: Exposição H2Orizontes trabalho de Bárbara Pelacani; 4b: Charges de Silas e Raiene Borges

Fonte: Bárbara Pelacani (2019).

As ações são atravessadas pelo posicionamento das mulheres, que podem ser entendidas como agentes protagonistas, ocupando posições de liderança, com lugar de fala priorizado nos eventos, palestras e produções culturais e com o foco de muitas atividades voltadas para posicioná-las na sociedade com um destaque que tradicionalmente, culturalmente e politicamente não é dado para elas. A partir dos diálogos entre o MAB e os militantes são produzidas práticas pedagógicas que provocam um enfrentamento diante dos grandes empreendimentos, como podemos observar nos insurgentes processos de re-existência.

Os processos descritos no presente trabalho envolvem a ampliação da participação política e a disputa por recursos para reparação dos impactos ambientais. A práxis do MAB amplifica nas comunidades locais a compreensão do contexto de injustiça ambiental, aprofundando a noção de escala da luta, que está presente tanto no âmbito local quanto internacional, como nos foi apresentado anteriormente através do amplo debate sobre ecologia política. A compreensão se soma então à atuação comunitária que passa a atuar gerando debates locais, nacionais e internacionais através de diversos meios que serão apresentados.

Considerações

Através da observação do conflito pela água, as questões socioambientais se expandem para se aproximarem com os contextos dos territórios, abarcando questões históricas, sociais, econômicas e políticas. A partir das experiências descritas no presente trabalho, dos diálogos do GEASur com o MAB, além das observações das ações desenvolvidas pelos agricultores e agricultoras no Guapiaçu, identificamos a presença e formação dos sujeitos históricos que compartilham desejos, experiências e formas de vida diante da necessidade de sobreviver à necropolítica. As vivências práticas/teóricas e as trocas de saberes/fazeres dessas mulheres e homens militantes permitem que, através de suas lutas, os mesmos promovam um giro epistemológico, ampliando suas capacidades de atuação e enfrentamento aos processos necropolíticos produzidos pela lógica do des-envolvimento.

Nesse sentido, essa práxis educativa tecida na luta pela água, em especial pelas mulheres agricultoras, pode ser identificada com uma forma de EABC, isto é, como aquela que parte da realidade local de braços dados com os atores de determinado território. A presença das mulheres na EABC é ponto essencial para o enfrentamento de necropolíticas. Esta perspectiva de EA compreende a necessidade do enfretamento direto contra a necropedagogia e reconhece a necessidade de re-existência dos oprimidos desvelando, criticando e reagindo aos processos de normalização da morte de sujeitos, territórios e saberes.

A EABC aponta para a urgência de se pensar a pluralidade dos mundos e das formas de ser, existir, viver, pensar e conviver — exprimindo a necessidade de se romper com um modelo único de sociedade que silencia experiências. Este trabalho exibe processos pedagógicos que estão em oposição aos projetos da necropedagogia, que invisibilizam saberes, estigmatizam populações e não retratam o conhecimento dos movimentos sociais como válido, a fim de legitimar a necropolítica que opera a partir de grandes projetos de desenvolvimento, tal como a construção da barragem em Guapiaçu, no estado do Rio de Janeiro.

Diante de conflitos ambientais, o MAB, junto das agricultoras e dos agricultores, busca na criatividade e na inovação se reinventar elaborando novas ações educativas. Nesse sentido, podemos aprofundar a reflexão sobre esses sujeitos históricos e a EA insurgente que brota desse chão de terra de conflitos ambientais, reconhecendo a parceria entre eles e os pesquisadores e professores da universidade pública e de outras instituições. Essa integração fortalece a disseminação de informações, incluindo a divulgação destas lutas em diversos espaços, além de integrar o conhecimento dos movimentos sociais com o conhecimento acadêmico, oferecendo subsídios para as práticas de resistência à necropedagogia — o que nos faz pensar e pontuar sobre a importância do papel da universidade pública no fortalecimento da práxis pedagógica dos movimentos sociais.

A potência, ao integrar os saberes, vai além da capacitação, da aula e da educação formal onde a universidade detém o conhecimento: é um processo pedagógico transformador de mão dupla e retroalimentação entre o campo e a academia, entre o agricultor e a educadora, entre a militante e o doutor. Desta dinâmica nutritiva, nasce uma EABC constituída de um processo formativo que se dá no campo, a partir da vivência no conflito em busca da re-existência, e se multiplica nas salas de aula, espaços culturais, encontros sociais, permitindo-nos reconhecer que os movimentos sociais apresentam demandas para a universidade: troca de informações, abertura de canais de comunicação, processos de mobilização e integração para fortalecimento mútuo.

A pesquisa em EA, na perspectiva crítica, cria intervenções sociais organizadas com a clareza política que se constrói no coletivo. O sujeito se forma ao compreender sua realidade e perceber-se ativo e participante na estrutura que se impõe e sobre a qual opera, ao informar-se, ao encontra-se. A luta é o espelho para identificar o seu território ambiental, social e político, sem perder de vista o econômico e o cultural — desta maneira, sua territorialidade se exibe. A práxis aparece como prática e reflexão no ventre da re-existência do conflito, que transborda do centro de formação para a atuação.

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1 Tradução realizada pelos autores.

2 Link do filme Arpilleras disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PEu-AATb3TU

3 O trabalho dos artistas foi inicialmente ilustrado no material pedagógico elaborado pelo curso de extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, intitulado Memórias das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro.