ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2023, 14(37), e14656

https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n37.2023.14656

Virtualizações da pesquisa foucaultiana sobre o cuidado de si: o humano na berlinda

Cintya Regina Ribeiro 1

Julio Groppa Aquino 2

1. Universidade de São Paulo

cintyaribeiro@usp.br

2. Universidade de São Paulo

groppaq@usp.br

Resum0

O presente artigo visa a propor um horizonte de virtualização da pesquisa foucaultiana sobre o cuidado de si na Antiguidade clássica por meio da interpelação da figura do anthropos como operador de nossos atuais modos de pensamento. Para tanto, o trabalho articula inicialmente as discussões presentes no curso A hermenêutica do sujeito no que se diz respeito às problemáticas atinentes à forma homem/humano suscitadas pelo enfrentamento de dois documentos históricos de natureza antropológico-etnográfica: Argonautas do Pacífico ocidental (Malinowski, 1978) e Escute as feras (Martin, 2021). O estudo aponta para os desdobramentos éticos dessa discussão tanto no campo filosófico quanto no filosófico-educacional ao focalizar os limites das categorizações transcendentais que determinam as fronteiras entre humanos e não humanos. Tais implicações forçam a atualidade educacional ao difícil gesto de recusa radical do sujeito, manifesto sob a forma homem/humano, como um universal, convocando a educação a atentar para as forças da própria vida em suas variações contínuas.

Palavras-chave: educação filosófica, antropologia, culturas, ética, objetivos educacionais

Virtualizaciones de la investigación foucaultiana sobre el cuidado de sí: lo humano en la mira

Resumen

El presente artículo busca proponer un horizonte de virtualización de la investigación foucaultiana sobre el cuidado de sí en la Antigüedad clásica a través de la interpelación de la figura del anthropos como operador de nuestros modos de pensamiento actuales. Para ello, el trabajo articula inicialmente las discusiones presentes en el curso La hermenéutica del sujeto a propósito de la problemática sobre la forma hombre/humano suscitada por la confrontación de dos documentos históricos de carácter antropológico-etnográfico: Los argonautas del Pacífico occidental (Malinowski, 1978) y Creer en las fieras (Martin, 2021). El estudio se centra en los desdoblamientos éticos de este debate tanto en el ámbito filosófico como en el filosófico-educativo, al enfocarse en los límites de las categorizaciones trascendentales que determinan las fronteras entre humanos y no humanos. Tales implicaciones llevan a la actualidad educativa al difícil gesto del rechazo radical del sujeto, manifiesto en la forma hombre/humano, como un universal, lo cual llama a la educación a prestar atención a las fuerzas de la vida misma en sus continuas variaciones.

Palabras clave: educación filosófica, antropología, culturas, ética, objetivos educativos

Virtualizations of Foucauldian research on the care of the self: the human in the spotlight

Abstract

This article proposes a horizon for the virtualization of the Foucauldian research on the care of the self in classical antiquity through the interpellation of the figure of the anthropos as an agent in our current ways of thinking. To this end, this work initially links the discussions held in the course The Hermeneutics of the Subject on the topic of man/human form raised by the confrontation of two historical documents of anthropological-ethnographic nature: Argonauts of the Western Pacific (Malinowski, 1978) and In the Eye of the Wild (Martin, 2021). The study focuses on the ethical splits of this debate in both the philosophical and philosophical-educational realms by focusing on the limits of transcendental categorizations that determine the boundaries between humans and non-humans. Such implications lead the current education to the difficult gesture of the radical rejection of the subject, manifested in the form man/human, as a universal situation, which calls education to pay attention to the forces of life itself in its continuous variations.

Keywords: philosophical education, anthropology, cultures, ethics, educational objectives

Em uma entrevista sobre a genealogia da ética, Dreyfus e Rabinow, explorando a natureza das últimas pesquisas de Foucault marcadamente voltadas aos modos de vida da Antiguidade, perguntaram ao pensador se ele julgava que os gregos haviam oferecido uma alternativa plausível mediante os dilemas ético-políticos do presente. Eis sua resposta incisiva:

Não! Eu não procuro uma solução de reserva; não se encontra a solução de um problema na solução de outro problema apresentado em outra época, por pessoas diferentes. O que quero fazer não é uma história das soluções. Penso que o trabalho que se deve fazer é um trabalho de problematização e de perpétua reproblematização. O que bloqueia o pensamento é admitir implícita ou explicitamente uma forma de problematização e buscar uma solução que possa substituir-se àquela que se aceita. (Foucault, 2014, p. 217)

Realizada no ano anterior à morte do pensador francês, esta entrevista é um documento valioso: expressa a situação do trabalho intelectual monumental de Foucault até aquele momento, de modo a conferir organicidade ao conjunto díspar das pistas que o autor vinha perseguindo naqueles anos a fio, sobretudo após 1976, tendo como mote a pesquisa sobre as práticas da sexualidade no Ocidente.

A admoestação foucaultiana não é adventícia. Precisamente por pautarmos temas sobre os modos de viver, suscitando reflexões acerca de nós mesmos, o assalto da transcendência — por meio de seus jogos de universalização e, ao mesmo tempo, de individualização — arremessa-nos ao domínio de categorizações confortáveis como civilização: humano/humanidade, sujeito/subjetividade, entre outras. Daí o risco de o automatismo da transposição histórica comprometer nossas chances de efetivar outros modos de pensar.

Assim, ao adentrarmos o pensamento foucaultiano de modo geral e aqui, mais especificamente, a pesquisa do autor produzida no período de 1976 a 1984, trata-se de operar uma atenção redobrada a uma política do método presente no pensamento foucaultiano.

Movido pelo esforço primeiro de operar um diagnóstico do presente, o pensador escrutina frontalmente os modos de existência de sua atualidade — e o faz por meio de uma investida de cunho genealógico, na esteira do pensamento nietzschiano. Tal investigação implica assumir que quaisquer arquivos documentais forjados pelo tempo demandam uma abordagem que não os incite a expressar uma suposta verdade substantiva originária, mas que mobilize as forças que ali se agitam em termos de suas transformações no tempo. Diferentemente de uma gênese linear e estável, a genealogia é cinzenta. Dizia Foucault (2005):

[O sentido histórico] deve ter apenas essa acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa agir as separações e as margens — uma espécie de olhar que dissocia, capaz de se dissociar dele mesmo e apagar a unidade desse ser humano que, supostamente, o conduz soberanamente na direção do seu passado. (p. 271)

Eis a prudência com a qual sinalizamos nosso endereçamento à torção final da obra foucaultiana. A nosso ver, o retorno de Foucault ao mundo greco-romano, percurso este extraordinariamente pormenorizado em seus cursos finais no Collège de France, objetiva sobretudo abrir passagem às virtualidades possíveis dos modos de existência.

Por virtualidade entendemos o movimento de metamorfose das práticas que só se faz no tempo, por meio do qual o passado insiste no presente não como essência, mas como uma espécie de vibração, comunicando uma tonalidade, uma frequência, um chamado difuso. Em uma entrevista de 1978, Foucault (2011) dá a ver essa sutileza, quando explicita sua maneira de transitar em meio às temporalidades: “Procuro, então, apreender qual é o acontecimento sob cujo signo nascemos e qual o que continua a nos atravessar... É importante dar o máximo de chance a esses acontecimentos secretos que cintilaram no passado e marcam ainda nosso presente” (pp. 225-226).

Nessa perspectiva, o presente artigo almeja endereçar-se ao curso A hermenêutica do sujeito. Em outras palavras, dada a prerrogativa ético-política de que o retorno aos arquivos do tempo se faz necessariamente por ocasião de uma interpelação incontornável do presente, cabe indagar:

Mediante tais questões, propomos um movimento argumentativo que compreende, primeiramente, uma aliança com a sensibilidade de Foucault no que se refere à sua enunciação insistente acerca da situação ficcional daquilo que naturalizamos como a condição humana. Ato contínuo, destacamos de A hermenêutica do sujeito algumas pulsações que nos convidam à virtualização de nossos modos de existir, tendo em vista determinados impasses de nosso tempo atual. Em seguida, são abordados dois documentos históricos de natureza antropológico-etnográfica: as obras Argonautas do Pacífico Ocidental (Malinowski, 1978) e Escute as feras (Martin, 2021). Trata-se de circunscrever uma cena problemática inescapável que nos confronta no presente, remetendo à insistência do anthropos como operador dominante de nossos modos de pensamento. Por fim, no terceiro movimento, apresentamos algumas digressões no intuito de tensionar filosoficamente a cena da educação na contemporaneidade.

O cuidado de si como operador de virtualidades

Pensador de sua atualidade exatamente em razão de seu pendor por viagens improváveis por outros tempos e espaços, Foucault (2004a) produziu, em A hermenêutica do sujeito, o encontro com modos de viver peculiares inventados na longínqua Antiguidade clássica. Sua bússola intelectiva mirou o trabalho meticuloso de perseguir rastros que, genealogicamente, apontavam para modos de existir contemporâneos.

Vale o alerta de que não se trata aqui de fazer de Foucault um antropólogo transtemporal, a elogiar e propalar vidas exemplares. Ao contrário, buscamos desfazer quaisquer enredamentos de cunho anthropos, acerca do homem e de sua humanidade, de modo que possamos espreitar certas vibrações do existir que ultrapassam essas rotas conhecidas.

Já em 1966, Foucault anunciava em As palavras e as coisas (1999a), com uma provocativa precisão, o estatuto do homem como invenção historicamente recente, como um efeito de novos arranjos fundamentais da disposição dos saberes. Nessa perspectiva, é sempre oportuno recordar a famosa máxima: “Se essas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram... então se pode apostar que o homem se desvanesceria, como na orla do mar, um rosto de areia” (p. 536). Para completar o inquietante quadro ali disposto, ele antecipou que uma arqueologia do nosso pensamento poderia mostrar que a invenção do homem estava fadada a, “talvez, um fim próximo” (p. 536).

Uma interrogação antropológico-filosófica seguida desse vaticínio da finitude do homem como uma categoria universal frequenta o conjunto da obra foucaultiana, manifestando-se em diferentes modulações. Ele situa a nervura do problema em uma entrevista de 1965:

Quando digo antropologia, não quero falar dessa ciência particular que chamamos de antropologia e que é o estudo das culturas exteriores à nossa. Por antropologia entendo essa estrutura propriamente filosófica, que faz com que, agora, os problemas da filosofia sejam todos alojados no interior desse domínio que podemos chamar de domínio da finitude humana. Se não podemos mais filosofar a não ser sobre o homem, como homo natura, ou ainda como um ser finito, nesta medida, será que toda filosofia não será, no fundo, uma antropologia? Nesse momento a filosofia torna-se a forma cultural no interior da qual todas as ciências do homem em geral são possíveis... Eu diria simplesmente que houve uma espécie de sono antropológico no qual a filosofia e as ciências do homem se fascinaram, de algum modo, e se adormeceram umas às outras, e que é preciso acordar desse sono antropológico, como outrora acordou-se do sono dogmático. (Foucault, 1999b, pp. 200-209, grifos nossos)

Despertar do sono antropológico-dogmático: eis a provocação de veio nietzschiano lançada pelo pensador francês em meados do século XX, cujos ecos ressoam na atualidade, agora agudizados pelos efeitos das exacerbações dessa maquinaria discursiva do anthropos.

Assim, seria mais profícuo considerarmos que a pesquisa realizada por Foucault em seus cursos finais encontra-se muito distante de qualquer projeto que pleiteasse o elogio ao homem ou, tanto menos, um suposto retorno ao sujeito.

Já em 1981, no curso Subjetividade e verdade, Foucault (2016) instaurou um turning point no modo de abordar a relação entre estes dois domínios formais. A focalização na questão da subjetividade poderia ser tomada como uma pista falsa, como se estivéssemos em uma espécie de marcha a ré, em favor de uma idealizada celebração do sujeito. A nosso ver, essa é a névoa fantasmática a rondar o legado foucaultiano, a qual é preciso enfrentar com a trágica envergadura que esse gesto exige. Aqui, trata-se da companhia de um pensador que tomou a forma homem como uma ficção datada.

Gros (2016), comentando essa guinada do pensador, alerta-nos para o fato de que essa mirada à problemática da subjetividade visaria não a uma recuperação idealizadora de certa ideia de sujeito, mas a uma genealogia da subjetividade ocidental, por meio de um trabalho investigativo centrado nas chamadas práticas de si. E complementa:

[Isso] permite que Foucault problematize um sujeito que não é simplesmente permeado e informado por governamentalidades externas, mas constrói, por meio de exercícios regulares, uma relação consigo definida. O sujeito assume uma consistência ética que lhe é própria, irredutível também ao que os modernos chamam de intimidade psicológica. (p. 276, grifos nossos)

O curso posterior, intitulado estrategicamente A hermenêutica do sujeito, dilatará tal abordagem, dedicando uma atenção minuciosa às sutilezas que distinguiam as práticas de si no contexto greco-romano, bem como às suas metamorfoses genealógicas. Ali, Foucault (2004a) rastreou dois procedimentos cruciais conexos à condução dos modos de viver, seguindo desde o período da Antiguidade clássica até a emergência do cristianismo: o cuidado de si e o conhecimento de si.

Tratava-se então de dilatar as especificidades desses procedimentos e acompanhar os pontos nos quais se tangenciaram e se repeliram. Eis aí o cerne do trabalho levado a cabo pelo autor, tendo em vista rastrear as condições de experimentação da subjetividade, tal como a significamos no mundo ocidental contemporâneo.

De largada, Foucault (2004a) coloca em xeque a evidência de que o conhecimento de si — ou seja, o trabalho de descoberta de uma suposta verdade sobre si — seria a pedra angular de constituição da figura do homem no Ocidente, tal como proposto pelos saberes históricos e filosóficos prevalentes. Imergindo em outras fontes documentais e tomando-as de modo adversativo, o pensador perseguiu a hipótese de que seria o cuidado de si, e não o conhecimento de si, aquilo que teria presidido o movimento de organização ético-política do mundo greco-romano, o qual teria instaurado certo modo de viver bem mais díspar daquilo que foi apregoado historicamente. Nos termos de Gros (2012): “tratar-se-ia, então, neste curso, de tornar os gregos um pouco mais estranhos para nós” (p. 319).

Flagrar essa disparidade permite atentar para os desdobramentos sensíveis que foram se sucedendo, de tal maneira que seja possível perspectivar como a figura do sujeito/subjetividade foi se engendrando e se naturalizando como entidade fundadora e, por isso, impreterível. Em outras palavras, a lança foucaultiana que interroga sobre como se forjaram as relações entre subjetividade e verdade possibilita-nos transladar toda a discussão para a problemática do viver, interpelando frontalmente não só o imperativo do sujeito, mas aquilo que na atualidade temos experimentado como vida.

Há um ponto de torção em A hermenêutica do sujeito que nos interessa explorar, tendo em vista ultrapassar a famigerada tópica do sujeito. Assim é que, com base no ascetismo cristão, instauraram-se modos de relação consigo que dependeriam de uma vinculação do sujeito com uma verdade transcendente. Esta, por sua vez, postularia normativas acerca de um ser ideal, indicando a suposta distância entre aquilo que se é o que se deveria ser. Foucault fez derivar dessa linhagem ao menos dois pilares caros à Modernidade, os quais se tornaram os elementos nucleares das formas de governo de si e dos outros na atualidade: a prerrogativa do conhecimento de si como instauradora da subjetividade e a premissa da verdade de si como evidência do trabalho da racionalidade.

Porém, vale lembrar que, no prisma foucaultiano, as práticas cristãs, com seus procedimentos transcendentais ancorados no conhecimento de si, configurariam tão somente um ponto de inflexão dentre os vários modos de condução das relações consigo. A nosso ver, essa relação de exterioridade entre sujeito e verdade, tornando-os entidades independentes mediadas tão somente pela assepsia da racionalidade, finda por reservar à condição humana o status de locus privilegiado, senão exclusivo, de domínio sobre as formas tantas de vida.

Por esse motivo, toca-nos indagar: Quais sutilezas encontram-se ativadas nos procedimentos pregressos do cuidado de si quando interceptado por nosso presente, o qual impõe como problema a própria dimensão oceânica da vida, para além da vida humana?

Ora, a despeito das várias modulações do cuidado de si discutidas no curso de 1982, por meio da exploração de variações que partem do solo socrático e percorrem as práticas estoicas e epicuristas, destacamos aqui um elemento essencial: a dimensão de imanência implicada a tais ações. Gros (2004) assim se refere a essa noção: “o que Foucault encontra no pensamento antigo é a ideia de inscrever uma ordem na própria vida, mas uma ordem imanente, que não seja sustentada por valores transcendentais ou condicionada do exterior por normas sociais” (p. 643).

Foucault (2004a) afirma que, na Antiguidade, cuidar de si consistia em uma atividade, uma ocupação, uma prática voltada a si mesmo. E mais: “a prática de si é concebida como um combate permanente” (p. 602). Atividade, ocupação, combate: eis os atos que nos distanciam de toda e qualquer forma de transcendência. A convocação ao cuidado de si resulta, portanto, em uma remissão ao “trabalho de si para consigo, da elaboração de si para consigo” (p. 20).

Ainda de acordo com Gros (2008), “a história que Foucault quer descrever, em 1982 é a das técnicas de ajuste da relação de si para consigo” (p. 128, grifos nossos). Ora, estamos no domínio pragmático do exercício, da obra, da construção artesanal e, sobretudo, da prerrogativa de um inacabamento perene. Trata-se, precisamente, de uma “empreitada de dessubjetivação” (Foucault, 2010, p. 291).

Além disso, “ocupar-se consigo não é, pois, uma preparação momentânea para a vida; é uma forma de vida” (Foucault, 2004a, p. 601). Com efeito, perseguindo as variações desses procedimentos do cuidado de si ao longo do curso, o autor vai apontando de que maneira cuidar de si e conhecer-se a si mesmo eram movimentos indissociáveis no contexto da Antiguidade clássica, oportunizando um vínculo que se realiza em um campo imanente, jamais em razão de uma verdade transcendental. Isso significa que “não pode existir saber sem uma modificação profunda no ser do sujeito” (Foucault, 2004a, p. 37). Essa imanência manifesta-se na indissociabilidade das várias forças em jogo: o pensar, o dizer, o fazer etc. Trata-se, efetivamente, de um trabalho diuturno por meio do qual “é preciso, a cada instante, passo a passo, confrontar o que pensa e o que se diz com o que se faz e o que se é” (Foucault, 2004b, p. 219).

Na sintetização de Gros (2008), um dos vetores de força essenciais do cuidado de si “consiste em estabelecer uma correspondência regrada entre atos e palavras” (p. 135). Em suma, tal disposição obriga a levar em consideração todas as forças ali contingenciadas, relativizando a soberania da presença humana nesse complexo jogo.

Atuando como catapulta às questões de nossa atualidade, a imanência dada nas produções de si e da vida como motor procedimental do cuidado de si é o ponto que nos interessa enfatizar.

Há algo nessa fusão que embaralha as fronteiras entre humanos e não humanos, tornando insuficientes essas categorizações, senão invalidando-as. Afinal, tais modos de relação consigo são travados por meio de embates entre forças que provêm de toda parte, não se limitando àquelas restritas às interrelações dos homens. Exemplo disso é a miríade de aspectos do viver que se encontram problematizados na pesquisa de Foucault, englobando desde os âmbitos dietético, erótico, matrimonial e com a cidade, até as práticas de vigilância dos pensamentos, de escrita, de rememoração, de exame de consciência etc. Não por acaso, o horizonte da austeridade comparece obrigatoriamente nas práticas de si. Contudo, é importante ressaltar a inversão de perspectiva que se nos afigura: os procedimentos austeros manifestam não o domínio de uma subjetividade soberana a agir sobre si e sobre o mundo, mas a virulência das forças ali contingentes, as quais impõem ininterruptamente o encargo ético de fazê-las coexistirem em instabilidade, modulando-as como formas de vida tão intensas quanto fugazes.

De fato, há algo dessa genealogia da subjetividade ocidental empreendida no curso de 1982 que se faz transbordar como signo inominável, forçando sua eclosão no presente. Nessa direção, valemo-nos dos estudos foucaultianos sobre o cuidado de si não como um protomanual de conduta a ser observado na atualidade, mas como potência imanente de virtualização, precisamente.

Nossa aposta é, portanto, a de que uma das forças de virtualização da pesquisa de Foucault sobre o universo greco-romano se perfaz na esteira do encontro com a dimensão performativa do viver; encontro que exige outro tipo de endereçamento à verdade: não mais calcada em uma matriz de transcendência a dispor os seres e organizar o mundo, mas atada a um lastro inescapável de imanência, o qual circunscreve as forças em um arranjo sempre provisório e inesperado, fazendo da verdade um efeito modulatório resultante dessas disputas.

É esse esforço tão tateante quanto arrebatador que nos dispõe em sintonia com as reflexões oportunizadas pelo pensamento foucaultiano, particularmente no que diz respeito ao problema do anthropos como crivo dos modos de existência.

Na companhia com o pensador, sabemos que o encontro com o contemporâneo nos ofusca, exigindo-nos o gesto vigilante de desconfiar das evidências. Assim, para enfrentarmos nosso presente, é preciso interrogarmos os feitos do mundo, com vistas a transtorná-los, liberar-lhes as forças, recombinando-as, enfim, apostando na abertura de possibilidades não antevistas de experimentação do viver. É nesse intuito que nosso próximo movimento argumentativo coloca em vizinhança os dois documentos históricos de feitio antropológico-etnográfico, já anunciados.

Duas histórias, um século e o fim do humano

Aproximadamente um século separa os relatos dos antropólogos Malinowski e Martin. Neste artigo, a evocação de dois documentos de cunho etnográfico tão apartados temporalmente não visa a uma discussão sobre as transformações históricas da ciência antropológica. Tomamos tais obras tendo em vista o modo de tratamento arquivístico proposto por Foucault, considerando-as não em termos de expressões autorais de dois sujeitos emblemáticos, mas como marcas contingentes de uma ordem discursivo-temporal anônima. Diz Foucault (2001):

O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso... não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser... A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade. (p. 273-274)

Isso posto, tomemos os Argonautas de Malinowski (1978), destacando a exaustiva descrição do vínculo dos papua-melanésios — hábeis navegadores do Pacífico ocidental, habitantes da costa e das ilhas periféricas de Nova Guiné — com a produção de suas canoas marítimas, bem como com as práticas de magia.

Antes de mais, é imprescindível assinalar que o trabalho de Malinowski é aqui tomado tão somente como uma ocasião estratégica, um signo emergente na ordem discursiva de sua atualidade, uma vez que instaura um ponto de inflexão no estabelecimento das relações com outros grupos culturais no interior de uma discursividade antropológica. O pesquisador polonês põe em circulação a novidade do seguinte procedimento: habitar efetivamente o território investigado e, ao mesmo tempo, abordá-lo de forma empírica, como corpo científico, marcando enfaticamente a fronteira que distingue o sujeito pesquisador dos sujeitos pesquisados.

O relato do antropólogo confere privilégio, assim, ao trabalho de construção das canoas de madeira, demarcando tal atividade como fundamental à prática ritualística do kula,1 assinalando a indissociabilidade entre tal atividade e a prática da magia. Esse é o ponto que, aqui, nos convoca a atenção.

O processo de produção das canoas inicia-se com a escolha da árvore que será derrubada. A partir daí são realizados diferentes procedimentos mágicos concomitantes às várias etapas do trabalho: desde o rito preliminar conduzido antes mesmo de a planta ser cortada, a fim de fazer uma oferenda ao espírito da selva, de modo que este abandone aquela árvore; passando por rituais de exorcismo e purificação das canoas, com vistas a expulsar feitiços malignos que poderiam deixá-las pesadas e lentas, o que comprometeria a navegação; até os últimos rituais que buscam imprimir uma decisão final, fazendo com que a canoa navegue velozmente (Malinowski, 1978). Vemos como a construção das canoas se efetiva em meio à própria execução dos procedimentos mágicos, tornando-os uma mesma e única atividade.

Com base nessa observação e em outras análogas, Malinowski (1978) sistematiza a concepção de magia por parte dos nativos:

Pode-se afirmar, sem exagero, que a magia, de acordo com suas ideias, governa os destinos humanos; que ela dá ao homem o poder de dominar as forças da natureza; e que a magia é, para o homem, uma arma e uma couraça contra os múltiplos perigos que o ameaçam de todos os lados. Assim, naquilo que é mais essencial ao homem, isto é, sua saúde e bem-estar físico, o ser humano é apenas um joguete das forças de feitiçaria, de espíritos malignos e outros seres controlados pela magia negra. (p. 288)

Em outra passagem, entretanto, atesta: “Todas as formas de magia foram transmitidas aos homens por seres não humanos que as ensinaram mas não as criaram” (p. 292).

Nota-se que o pesquisador aponta a prevalência do poder humano sobre a natureza, via magia, e, em contrapartida, nos comunica que esta última não é proveniente do reino humano, mas que advém da transmissão a cargo de seres não humanos. Ademais, sustenta que a condição do ser humano encontrar-se-ia à deriva das forças de feitiçaria, evidenciando, portanto, uma ambiguidade a respeito das esferas de influência entre humanos e não humanos.

A tensão segue, porém, exigindo alguma síntese do antropólogo:

Na própria essência da magia está a impossibilidade de ter sido criada ou inventada pelo homem, sua completa resistência a qualquer mudança ou modificações feitas por ele. A magia existiu desde o princípio das coisas; ela cria mas nunca é criada; ela modifica mas nunca deve ser modificada... Ao mesmo tempo a magia é concebida como algo essencialmente humano. Não é uma força da natureza capturada pelo homem, de algum modo e colocada a seu serviço; é, essencialmente, a afirmação do poder intrínseco do homem sobre a natureza... Em todas as tradições verificamos que a magia está sempre na posse do homem, ou pelo menos de seres antropomórficos. (Malinowski, 1978, p. 293).

Os breves relatos destacados acima visam a construir uma ambientação mínima, porém oportuna, para deflagramos o empenho de tradução científica por parte do pesquisador polonês no início do século XX em face do mistério que observava em formas culturais de viver alheias a ele. Tomando a centralidade da figura antropocêntrica — o nativo —, vemos que a explanação se orienta pela distinção prévia entre as entidades homem e natureza, seres humanos e não humanos, bem como outras dualidades. Em seguida, adentramos uma atmosfera, tão científica quanto mágica, construída pela descrição analítica do antropólogo, uma vez que as relações entre tais instâncias duais são dispostas segundo uma espécie de paradoxo constitutivo: destaca-se a vulnerabilidade do homem mediante as forças não humanas que o assaltavam inescapavelmente e, ao mesmo tempo, atesta-se um poder intrínseco desse mesmo homem sobre a natureza, dotando-o de um poder de combate vital.

Poderíamos considerar, em virtude desse relato científico singular, que algo sempre escapa das supostas fronteiras entre humanos e não humanos. Em algum ponto intangível dessa discursividade antropológica, as forças do homem e da natureza inevitavelmente se imiscuem. Talvez por isso, em várias passagens, os esforços tradutórios de Malinowski só encontram forma quando sucumbem a esse inexplicável, materializando, paradoxalmente, a própria impossibilidade de sua compreensão: “as palavras com que o feiticeiro exerce seu poder sobre uma coisa ou um processo são tidas como coexistentes a esta coisa ou processo. A fórmula mágica e seu objeto nasceram juntos” (Malinowski, 1978, p. 292).

Quase um século depois, outra pesquisadora europeia, a francesa Nastassja Martin (2021), defronta-se com outra tarefa etnográfica — agora na Sibéria, extremo do planeta, na região chamada de Grande Norte Subártico — ao investigar o povo even. A obra Croire aux fauves, foi publicada na França em 2019 e traduzida no Brasil em 2021 sob o título Escute as feras.

Martin (2021) situa como ponto de inflexão de sua pesquisa — e da totalidade de sua vida — um evento extraordinário: em uma das ocasiões de seu trabalho de campo, ela vê-se frente a frente com um urso; os dois seres entram em luta corporal, saem ensanguentados e, surpreendentemente, ambos sobrevivem.

A sobrevivência dessa mulher redimensiona toda a experiência ali em curso: a comunidade agora considera essa outra mulher, a sobrevivente, como miêdka, isto é, uma pessoa marcada pelo urso: “aquela que vive entre os mundos” (Martin, 2021, p. 23). Ao mesmo tempo, essa pessoa transformada enfrenta sua própria disrupção: “estou me transformando em algo que ignoro; isso fala através de mim” (p. 28).

A empreitada etnográfica que ora se configura exige mais do que aplicar a lição aprendida que distingue cientificamente o humano e seu outro. Ocorre que, no evento descrito, corpos atritados entraram em uma relação-limite, tocando o sutil ponto de imanência entre vida e morte, ali onde habitamos todos indistintamente. A pesquisadora vai então ensaiando outra mirada sobre o acontecimento: “no encontro entre mim e o urso, em seu maxilar contra o meu maxilar... se não tivesse acontecido seu olhar amarelo no meu olhar azul... Por que nós nos escolhemos?” (Martin, 2021, pp. 58-59).

O relato disposto em primeira pessoa do singular não é mera escolha casual da autora, nem opção fortuita por este ou aquele recurso estilístico: impõe-se como um modo de expressão intencionalmente estranho à seara cientificista, produzindo um efeito paradoxal na esteira do qual, quanto mais a antropóloga avança na narrativa de si mesma, mais sua confortável condição de sujeito e sua suposta singularidade vão evanescendo, em meio ao arrastão produzido naquele encontro entre peles, ossos, carnes e sangues. Em um esforço de inteligibilidade do acontecimento, ela pondera:

O fundo animista dos humanos é o rosto deformado da máscara. Metade homem metade foca; metade homem metade águia; metade homem metade lobo. Metade mulher metade urso. O que está por trás do rosto, o fundo humano dos bichos é o que o urso vê nos olhos daquele que ele não devia olhar; é o que meu urso viu nos meus olhos. Sua parcela de humanidade; o rosto por baixo do meu rosto. (Martin, 2021, pp. 90-91).

É interessante deflagrarmos a rota de fuga inevitável que desorganiza o gesto antropológico: na busca pela compreensão científico-social do outro humano que habita uma inóspita zona glacial subártica, encontra-se, para muito além dessa alteridade já cifrada, a pulsação de formas de vida que coexistem em um plano indiferenciado, o qual, por mau jeito ou insuficiência da nossa linguagem, poderíamos nomear como uma espécie de infra-humanidade comum.

Assim, a escrita de Martin (2021) opera em termos de dois vetores entrelaçados: o esforço de narrar o acontecimento, de dar-lhe uma forma inteligível e, ao mesmo tempo, o trabalho de evidenciar os limites linguageiros dos modos de dizer desse acontecimento, de fazer coabitar os paradoxos, de dissipar os dualismos.

Operar com o escrito etnográfico em primeira pessoa do singular segundo um exercício filosófico-literário de apagar a si mesmo é experimentação linguística paradoxal: só ela é capaz de introduzir a dissonância necessária em um relato antropológico que já não pode se sustentar em um solo antropocêntrico.

Desse modo, habitar os limites de nossa linguagem não é algo exterior ao trabalho investigativo; antes, trata-se de constituir a própria complexidade do fazer antropológico. A opacidade que circunda as possibilidades do dizível é assim tratada pela pesquisadora:

Faço da incerteza um presente... porque estamos diante de um vazio semântico, de algo fora do enquadramento... Não deixar parar a incerteza a seu respeito é normalizá-lo para fazer com que entre no coletivo humano custe o que custar. E contudo, o urso e eu falamos de liminaridade. (Martin, 2021, p. 78)

Instaurar um espaço de liminaridade entre o humano e o inumano é, antes de tudo, abrir passagem a outros modos de existir, ou seja, é dispor-se a inventar um território de práticas singulares no seio de uma tarefa política e ética que possa esboçar algum tipo de réplica às urgências que nos ocupam atualmente.

Não à toa, a experiência de encontro com o urso será transmutada pela antropóloga, vertendo-a em outra modalidade de força em favor do gesto investigativo. Distribuindo seus cadernos de registros de campo em cores distintas, a pesquisadora faz do caderno preto o seu diário noturno, pessoal, ensaístico. Nos parágrafos finais, Martin (2021) anuncia:

Fecho o caderno pensativa. Guardo-o cautelosamente na estante, um leve sorriso se desenha em meus lábios. Acho que o caderno preto se derramou pelos cadernos coloridos depois do urso; acho que não vai mais existir caderno preto; acho que isso não é nada demais. Haverá uma única e mesma história, polifônica, aquela que tecemos juntos, eles e eu, sobre tudo aquilo que nos atravessa e nos constitui. Volto a me sentar à mesa. Ponho os cadernos de campo ao meu lado, ao alcance das mãos. É hora. Começo a escrever. (p. 106)

Os limites em seus transbordamentos temporais

Tratados como irrupções discursivas emergentes na contingência de sua própria atualidade, os documentos de Malinowski (1978) e de Martin (2021) põem em circulação, cada qual à sua maneira, tanto os limites dos modos de pensar quanto aquilo que deles transborda e que, no entanto, se presentifica de maneira inefável na matéria viva de seus escritos, seja pela via da sustentação dos paradoxos — no estilo cientificista —, seja pela narrativa do espanto — pela aposta literária.

Quando dispostos lado a lado, ou seja, quando tais escritos se encontram no além-tempo de sua produção, eles constituem uma superfície de pensamento outra que, ora virtualizada, afronta nossa atualidade, instaurando problemas incontornáveis aos nossos modos contemporâneos de existir.

A crítica aberta ao antropocentrismo e às suas variações múltiplas não é inédita. Entretanto, os desdobramentos desse modo anthropos de existir o são. A presença dessa força persiste inarredavelmente em nosso presente, ao que tudo indica, a despeito dos sinais incontestes de sua erosão. Eis então que nossa existência parece padecer exatamente dessa tragicidade: uma sobrevida antropocêntrica que insiste em se arrastar em meio às ruínas de um mundo.

Talvez a questão que se imponha hoje não seja retomar a crítica à metafísica do sujeito nas mesmas bases do século XX. Acreditamos que o desafio atual reside exatamente no enfrentamento da situação fática dessa artilharia da subjetividade já desdobrada em mil variações contemporâneas imprevistas — do império dos individualismos (neo)liberais, passando pelos narcisismos estruturantes e aportando nas técnicas neuropsicologizantes do self empreendedor, bem como nas tecnologias de governamento das subjetividades identitarizadas de nossos dias.

Se evocamos a aliança Malinowski-Marin, é porque ela nos impele a um desses enfrentamentos, permitindo-nos focalizar uma dessas variações, que nos parece crucial: vibrando extemporaneamente na escrita documental dos autores, é a própria forma homem/humano que tende a vacilar quando nos interrogamos sobre a estranheza desses acontecimentos, os quais, por sua vez, ultrapassam os limites daquilo que até então pudemos pensar.

Não é fortuita a escolha desses dois autores formados no ambiente da tradição europeia, núcleo irradiador de certo fazer científico e filosófico que tem produzido e consolidado as formas de viver prevalentes no presente. De modo intencional, evidenciamos tais modos discursivos emergentes a fim de operar, desde seu interior, os impasses com os quais eles próprios se defrontam quando o próprio operador fundante das chamadas ciências humanas — anthropos — é aquilo que sucumbe mediante a convocação extrema da vitalidade do mundo.

A despeito de os dois antropólogos operarem segundo abordagens distintas, queremos estrategicamente destacar um ponto de conversação, cuja materialidade manifesta-se em um dos comentários da pesquisadora, a propósito de um trabalho etnográfico seu, em outro ponto glacial do hemisfério norte, anterior ao que foi referido aqui:

Penso em Clarence, o velho sábio gwich´in... no Alasca... ele me dizia que tudo era constantemente “gravado” e que a floresta era “informada”... As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa. Por isso é preciso prestar muita atenção aos pensamentos que formulamos, porque o mundo não se esquece de nada, e cada um de seus elementos componentes vê, ouve, sabe. O que aconteceu, o que sucede, o que se prepara. Existe um sinal de alerta dos seres exteriores aos homens, sempre prontos a extrapolar suas expectativas. Além disso, cada forma-pensamento que depositamos fora de nós mesmos vem se misturar e se acrescentar às antigas histórias que informam o meio ambiente, bem como às disposições daqueles que o povoam... existe um sem-limites que aflora à superfície do presente, um tempo do sonho que se alimenta de cada fragmento de história que continuamos a nele agregar. Há no mundo uma latência e uma ebulição, semelhantes à lava que espera sob o vulcão até que alguma coisa a force a sair da cratera. (Martin, 2021, pp. 80-81)

Seria no mínimo redutor se tomássemos essa paisagem de maneira idílica, a expor outra concepção do que seria viver gentilmente entre humanos e não humanos, como se se tratasse apenas de outra ideia ou concepção de humanidade que preferisse levar em conta os outros seres para incluí-los em nosso mundo. Na contramão dessa tentativa — pueril, frise-se — de humanização e de integração entre seres, encontramo-nos diante de algo mais radical naquele chamado do sábio do extremo norte: trata-se de tornar inoperantes quaisquer esforços de humanização, quando aquilo que está em pauta é o estatuto soberano da própria vida, muito além dos marcadores restritos do si e do outro.

A discussão entabulada no excerto selecionado acima performa exatamente a impossibilidade de considerar os seres como unidades, indivíduos, fazendo aparecer os movimentos insuspeitos que, sem cessar, trabalham para o enredamento das forças, gestando aí a materialidade daquilo que se faz mundo. Vale destacar que essas forças se compõem segundo um arranjo inominável, produzido na disparidade absoluta: árvores, pensamentos, animais, sonhos, rios, temporalidades, homens, florestas, histórias...

A dramaturgia das forças que arranca o homem de seu lugar usual consiste, assim, no epicentro de nossa atenção, na medida em que tal abordagem impõe uma interpelação ética extrema: obriga a uma atenção férrea ao caráter impregnante da vida, em todas as suas formas, ou seja, exige libertar a vida de seu enclausuramento em determinadas criaturas a fim de pulverizá-la, franqueando, assim, vitalidades inimagináveis. Tocar esse campo de possibilidades, posicionando-nos desde nossa própria atualidade, exige adentrar um território enigmático, sem percursos traçados de véspera.

Tal modo de perspectivar o trabalho de viver traz implicações não só para a própria ação filosófica, mas, particularmente, para uma prática filosófica em educação. Ensaiar breves articulações nessa direção constitui nosso ponto de chegada.

Considerações finais

Quarenta anos nos separam da efervescência intelectual de Foucault condensada naquelas doze aulas ministradas entre janeiro e março de 1982 no Collège de France. Ali, o trabalho de pensamento histórico-filosófico voltado à noção de cuidado de si na Antiguidade clássica tinha um endereçamento político intrinsecamente alinhado às problemáticas daquele final do século XX. Mais especificamente, um dos eixos de interrogação daquela contemporaneidade, para o pensador, dizia respeito às condições de possibilidade da prática filosófica.

Ao perscrutar genealogicamente um tipo de relação consigo que dependia da indissociabilidade entre o cuidado de si e o conhecimento de si, Foucault fraturava a discursividade filosófica proeminente, a qual fazia do conhecimento verdadeiro o lastro da ação de filosofar. Em contrapartida, haveríamos de concordar com Muchail (2011) que “a filosofia como cuidado de si é conhecimento e, mais que conhecimento, é modo de existência, estilo de vida. É esta modalidade esquecida da filosofia que Foucault quer reconduzir às possibilidades de nosso presente” (p. 127).

Implicando agora a totalidade da vida e não mais, tão somente, um sujeito do conhecimento isento e apartado das implicações de sua presença no mundo, tal gesto filosófico obriga a um trabalho incansável de avaliação e de reavaliação dos valores em jogo e, justamente por isso, impõe-nos um problema não só de cunho político, mas sobretudo ético.

Entretanto, há aqui um giro extraordinário que Foucault nos possibilita virtualizar, suscitando um diálogo transtemporal que parte das relações consigo na Antiguidade clássica, que passa pelas vontades subjetivas do século XX e que culmina no momento de assombro em que nos encontramos: nós, essa humanidade derradeira, cega aos acontecimentos de mulheres-urso e de espíritos-árvores-canoas. Trata-se, em definitivo, de incitar uma modificação radical na maneira de formular uma problematologia de ordem ética.

É tácito que a Modernidade instaurou questões de natureza ética, mas o fez sob uma perspectiva transcendental, elegendo a condição humana como unidade de valor e, ao mesmo tempo, como instrumento de mensuração dos ditos problemas. As mutações espaço-temporais advindas da pesquisa foucaultiana do cuidado de si viabilizam outro modo de interpelação ética: abdicar das transcendências e abrir-se às múltiplas frequências que fazem variar, incessantemente, as forças do mundo.

Tal modalidade de condução filosófica incide sobre o campo filosófico-educacional de modo irreversível. Historicamente, a educação, em sua circunscrição ocidental, encontra-se comprometida com a salvaguarda do legado da história humana. Mas, no revés dessa temporalidade, algo mais agudo vem imiscuindo-se silenciosamente no derramar dos séculos, forçando a atualidade educacional ao difícil gesto de recusa radical do sujeito como um universal — aqui manifesto sob a forma homem/humano — de modo tal que se venha a experimentar a exuberância da contingência, cuja manifestação se dá como vida, tão somente.

Esse chamado às práticas educacionais não se apresenta como uma sugestão, mas como uma convocação inescapável. A partir do momento que, em nossa prática filosófico-educacional, assumimos os limites do humano universal bem como de seus jogos antropocêntricos típicos, necessariamente somos arremessados à dinâmica performativa da vitalidade do existir, a qual exige recusar, entre outras categorizações, as fronteiras entre humanos e não humanos.

Assim, outra é a tarefa que se anuncia à educação: a disposição de enfrentar o mundo pela via da insurgência frente ao legado antropologizante, relendo-o com base em uma ética da imanência, isto é, uma espécie de ética das coisas mínimas, atenta à potência do impessoal ou, simplesmente, à vida em seus pequenos e insistentes enigmas.

Referências

Foucault, M. (1999a). As palavras e as coisas. Martins Fontes.

Foucault, M. (1999b). Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria, psicanálise. Forense Universitária.

Foucault, M. (2001). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Forense Universitária.

Foucault, M. (2004a). A hermenêutica do sujeito. Martins Fontes.

Foucault, M. (2004b). Ética, sexualidade, política. Forense Universitária.

Foucault, M. (2005). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Forense Universitária.

Foucault, M. (2010). Repensar a política. Forense Universitária.

Foucault, M. (2011). Arte, epistemologia, filosofia e história da medicina. Forense Universitária.

Foucault, M. (2014). Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Forense Universitária.

Foucault, M. (2016). Subjetividade e verdade. WMF Martins Fontes.

Gros, F. (2004). Situação do curso. Em M. Foucault, A hermenêutica do sujeito (pp. 613-661). Martins Fontes.

Gros, F. (2008). O cuidado de si em Michel Foucault. Em M. Rago & A. Veiga-Neto (Orgs.), Figuras de Foucault (pp. 127-138). Autêntica.

Gros, F. (2012). A propósito de A hermenêutica do sujeito. Mnemosine, 8(2), 316-330. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41569/28838

Gros, F. (2016). Situação do curso. Em M. Foucault, Subjetividade e verdade (pp. 273-288). WMF Martins Fontes.

Malinowsky, B. (1978). Argonautas do Pacífico Ocidental (2ª ed.). Abril Cultural.

Martin, N. (2021). Escute as feras. Editora 34.

Muchail, S. (2011). Foucault, mestre do cuidado. Loyola.


1 O kula corresponde a uma peculiar relação intertribal que se dá em uma grande extensão geográfica no interior de um circuito definido de navegação. Trata-se de um sistema econômico de trocas. Mas, para Malinowski (1978), remete a um fenômeno duplamente comercial e cerimonial, no qual o ritual mágico se confunde com a prática econômica. Ali, são trocados colares de conchas vermelhas por braceletes de conchas brancas. Entretanto, esses dois bens principais não são considerados como simples mercadorias cujo fim é a posse; é o caráter de transação que confere valor ao objeto, fazendo da própria circulação incessante o elemento de valor. Assim, a finalidade do ritual é sustentar o circuito de valoração para fomentar contatos interculturais, isto é, a atribuição de uma posse necessariamente provisória desses objetos a um grupo restrito de nativos confere-lhes distinção social, incitando, dessa maneira, a retomada do circuito cerimonial entre as comunidades.