ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2023, 14(37), e14716

https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n37.2023.14716

Psicagogia hoje: pensar a educação para além do pedagogismo

Silvio Donizetti De Oliveira Gallo 1

Alexandre Filordi de Carvalho 2

1. Universidade Estadual de Campinas

gallo@unicamp.br

2. Universidade Federal de Lavras

afilordi@gmail.com

Resum0

A partir do curso A Hermenêutica do Sujeito de Michel Foucault, o artigo investiga a noção de psicagogia e seu desdobramento ao longo do pensamento deste autor, visando a atualizar uma problematização para se avançar nas questões acerca das verdades presentes como fundamentação da educação contemporânea. Ao se fazer isso, constitui-se uma argumentação de que a psicagogia pode ser experiência com as veridicções educativas para além de seus pedagogismos. Assim, no lugar de se normalizar (1) as condições contemporâneas de experiências de educação baseadas em afirmação de índices e resultados, competências e atitudes de demandas homogêneas e (2) a ênfase restrita na relação ensino-aprendizagem, busca-se mostrar como a psicagogia contribui para a afirmação das singularidades e diferenças e para a constituição de subjetividades marcadas pela modificação do modo de ser dos sujeitos e, portanto, afeitas a outros jogos de verdade.

Palavras-chave: psicagogia, educação, modos de ser, subjetividades, pedagogismo

Psicagogía hoy: pensar la educación más allá del pedagogismo

Resumen

Con base en el curso La Hermenéutica del Sujeto de Michel Foucault, el artículo indaga la noción de psicagogía y su desarrollo en el pensamiento de este autor, con el objetivo de actualizar una problematización para el avance en las cuestiones acerca de las verdades que fundamentan la educación contemporánea. Al hacerlo, se construye el argumento de que la psicagogía puede ser experiencia con las veridicciones educativas, más allá de sus pedagogismos. Así, en lugar de normalizar (1) las condiciones contemporáneas de educación con base en la constatación de índices y resultados, de competencias y actitudes de exigencia homogéneas y (2) el énfasis que se restringe a la relación enseñanza-aprendizaje, se busca mostrar cómo la psicagogía contribuye a la afirmación de las singularidades y las diferencias y a la constitución de subjetividades marcadas por la modificación en el modo de ser de los sujetos y, por ende, articuladas con otros juegos de verdad.

Palabras clave: psicagogía, educación, modos de ser, subjetividades, pedagogismos

Psychagogy today: thinking about education beyond pedagogism

Abstract

Based on Michel Foucault’s course The Hermeneutics of the Subject, this article examines the concept of psychagogy and its development throughout this author’s thinking, aiming to update a problematization to advance in the inquiries about the truths that underlie contemporary education. In doing so, the argument that psychagogy can be experience with educational veridictions, beyond its pedagogism, is constructed. Thus, instead of normalizing (1) the contemporary conditions of education based on the achievement of indices and results, of homogeneous competences and attitudes of demand, and (2) the emphasis that is restricted to the teaching-learning relationship, there is the attempt to show how psychagogy contributes to the affirmation of singularities and differences, and to the constitution of subjectivities marked by the modification in the way of being of the subjects and, therefore, articulated with other games of truth.

Keywords: psychagogy, education, ways of being, subjectivities, pedagogism

Por que pensar a psicagogia hoje

Aqueles que estudam a obra de Michel Foucault estão cientes de que a problemática educativa não foi central em suas pesquisas, ainda que sua obra traga ferramentas por demais interessantes para a pesquisa no campo da educação. Contudo, no começo dos anos 2000, Audureau (2003)1 postulou que as explorações sobre educação na obra de Foucault podem ser vistas em duas perspectivas distintas, quase antagônicas: de um lado, educação e escola como maquinarias ligadas a um processo de assujeitamento, que constituem o sujeito como efeito de relações de poder cristalizadas; e outro lado, como articuladas com processos de “subjetivação”, que possibilitam ao sujeito agir sobre si mesmo, transformando-se.

A primeira perspectiva aparece, sobretudo, em Vigiar e Punir (Foucault, 1991), na qual a escola é destrinchada como instituição disciplinar, que opera pelo sequestro e confinamento dos indivíduos, fazendo agir sobre eles as engrenagens do poder disciplinar e constituindo-os como sujeitos. Parece ser uma análise mais crítica que afirmativa ou propositiva em relação à escola, relevando seu caráter de assujeitamento — para usar a expressão de Audureau. Em seu livro sobre a escola, L’École, Question Philosophique (2003), Kambouchner dedicou um capítulo para explorar as contribuições de Foucault para o ensino. Sua análise é centrada em Vigiar e Punir (1991), mas com um interessante esforço de cruzar as ideias dessa obra com algumas afirmações de Foucault recolhidas em diversas entrevistas dos Ditos e Escritos (1994, 2014), assim como em alguns de seus cursos no Collège de France, com especial acento no último, de 1984, A Coragem da Verdade (2011a).

O trabalho analítico de Kambouchner (2013) reforça esta visão, digamos, “negativa” da educação em Foucault, ao colocar em relevo a atividade de ensinar. Partindo de uma fórmula posta por Foucault na primeira aula — de primeiro de fevereiro de 1984 — do curso A Coragem da Verdade2 (2011a) ao afirmar que não é preciso ser corajoso para ensinar, Kambouchner (2013) destaca a falta de interesse desta atividade:

Exceto nos limites muito estreitos da transmissão de uma tekhnè, a atividade de ensino e ainda mais fortemente o trabalho do professor são marcados, em Foucault, por um valor negativo. É verdade que as sociedades modernas não podem ser concebidas sem a instituição escolar; e mesmo que a ordem disciplinar tenha sofrido os mais diversos tipos de “insurreição”, a forma escolar de enquadramento das jovens gerações não parece perto de ser abandonada. Portanto, é necessário que haja professores. Mas, aparentemente, transmitir isso que se aprende não é algo interessante. Ensinar: nenhum risco, e, portanto, nenhum interesse. (pp. 324-325)

Ora, Kambouchner destaca a educação como assujeitamento, daí sua perspectiva negativa; mesmo indo aos últimos trabalhos de Foucault, o que encontra é uma espécie de “desinteresse” pela atividade de ensinar. Mas, será que se resume a isso?

Audureau (2003) vai em outra direção, ao pensar a educação como processo de subjetivação, afirmando que seria possível também encontrar no Foucault que se interroga a propósito de uma ética de si a possibilidade de ações pedagógicas como subjetivação, constituição de si mesmo. Ainda que chame a atenção para as dificuldades desta empreitada, afinal “se, como admite o próprio Foucault, a questão [da transição da ética do cuidado de si para a política] é delicada, pode-se perguntar como o sujeito ético foucaultiano poderia abordar o tema da educação” (Audureau, 2003, p. 23). Defende que há elementos interessantes a serem explorados.

A obra tardia de Foucault, o costumeiramente denominado “último Foucault”, envereda por questões que podem abrir caminhos interrogantes muito interessantes para o campo da educação. Neste artigo, procuraremos explorar algumas destas possíveis interrogações, de modo especial em torno da ideia de uma psicagogia, apresentada na aula de 10 de março de 1982, interrogando em torno de sua possibilidade em nossos dias. Para chegar a isso, passaremos pela questão do governo de si como abertura dos trabalhos de Foucault para uma questão pedagógica do trabalho de si sobre si mesmo.

O problema da condução e do governo: governo de si e dos outros

Em seu curso de 1978 no Collège de France, Segurança, Território, População (2008), dando continuidade ao estudo do biopoder e da biopolítica iniciado no curso anterior, Foucault introduziu a noção de governo3, que implicaria em uma inflexão importante em seu pensamento. A análise do poder — genealogia — até então resultava em uma tensão permanente entre poder e resistência. Ao substituir a noção de poder pela de governo, compreendida como a condução das condutas dos indivíduos, o filósofo abre duas perspectivas interessantes. Primeiro, o governar não é dominar, coagir. Ao contrário, pressupõe a livre conduta dos indivíduos. Por isso organiza-se de forma a conduzir essa conduta. Segundo, na medida em que as condutas são conduzidas, é de se supor que os indivíduos possam também produzir condutas outras, em direções distintas àquela do governo, o que ele denomina contracondutas.

Ora, para o campo da educação essa abordagem abre possibilidades novas. Se em Vigiar e Punir (1991) a escola é um dos lugares por excelência do cultivo do poder disciplinar, estando aberta a possibilidade de indisciplina como resistência ao exercício deste poder, quando pensamos os processos educativos como governo, como condução das condutas, pressupõe-se uma liberdade daquele que aprende, a possibilidade de assumir livremente a condução de sua conduta ou de estabelecer contracondutas. Isso não é pouco e não é por acaso que, ao tratar do problema das “artes de governar”, Foucault em muitos momentos chame a atenção para o governo das crianças, o governo dos filhos, o governo dos estudantes4 como processos importantes para o “destravamento” das artes de governo e para o processo de governamentalização dos Estados modernos.

Castro (2009) chama a atenção para os dois eixos da noção de governo: “o governo como relação entre sujeitos e o governo como relação consigo mesmo” (p. 190), sendo que, em seu modo de ver, são “as noções de governo e governamentalidade [que] nos permitem compreender porque é o sujeito, e não o saber ou o poder, o tema geral das investigações de Foucault” (p. 189). Ou seja, para compreender o projeto de realização de uma hermenêutica do sujeito ocidental, precisamos passar pelo governo como condução das condutas, pela governamentalidade como ponto de articulação entre o governo dos outros e o governo de si mesmo. Em outras palavras, para uma genealogia do sujeito moderno, as noções de governo e de governamentalidade são linhas centrais, que se entrelaçam com muitas outras, mas das quais não podemos abrir mão para que a compreensão seja possível.

Em novembro de 1980, Foucault realizou duas conferências no Dartmouth College, nos Estados Unidos, repetindo-as dias depois, com algumas mudanças, na Berkeley University. A primeira conferência — 17 de novembro — teve por título Subjetividade e Verdade; a segunda — 24 de novembro — foi denominada Cristianismo e Confissão5.

Desde o início da primeira conferência, relacionando verdade e sujeito — as necessidades impostas de se dizer a verdade sobre si mesmo —, Foucault (2013) esclarece que está procurando construir uma “genealogia do sujeito moderno” (p. 33), que é seu modo de procurar sair de uma “filosofia do sujeito” produzida ao longo da modernidade, de Descartes a Husserl. Ele recusa também os dois caminhos de saída desta filosofia do sujeito produzidos no século XX, o positivismo lógico e o estruturalismo, enveredando por uma perspectiva nietzschiana, que pleiteia a historicidade do sujeito. Cumpre, então, fazer a genealogia deste sujeito, buscar as linhas heterogêneas e díspares, os jogos de verdade e de poder que presidem sua construção histórica. Ora, lembrando a aula de 30 de janeiro de 1980 no Collège de France, podemos dizer que Foucault está a fazer uma “anarqueologia do sujeito”, procurando evidenciar a recusa de um poder instituído já na constituição mesma do sujeito6.

Ao retomar Habermas e sua análise, que indica três tipos de técnicas presentes nas sociedades humanas — as técnicas de produção, de significação e de dominação —, Foucault introduz um quarto tipo, as técnicas de si, aquelas através das quais os sujeitos — tomados como construção histórica — são capazes de agir sobre eles mesmos. Para ele, é de fundamental importância estudar como as técnicas de si e as técnicas de dominação atravessam-se mutuamente e isso é possível através da noção de governo.

O ponto de contato no qual [a maneira pela qual] os indivíduos são dirigidos pelos outros articula-se com o modo pelo qual eles se conduzem a eles mesmos, é o que podemos chamar, creio, “governo”. Governar as pessoas, no sentido amplo do termo, não é uma maneira de forçá-las a fazer aquilo que quer aquele que governa; há sempre um equilíbrio instável, com complementaridade e com conflitos, entre as técnicas que asseguram a coerção e os processos pelos quais o si se constitui ou se modifica por ele mesmo. (Foucault, 2013, pp. 38-39)

Foucault anuncia, então, que após passar um tempo analisando as questões de governo sob a ótica das técnicas de dominação, isto é, o exercício do poder, o governo dos outros — o que não passa de um dos aspectos da questão —, pretende doravante dedicar-se ao outro polo da questão, as técnicas de si, que implicam em um governo de si mesmo. Este momento de seus estudos marca, pois, a origem de uma hermenêutica do sujeito, que seria o tema geral dos cursos de 1980 a 1984.

A questão do si e sua hermenêutica

Precisamos perguntar: se recusa a filosofia moderna do sujeito, no qual este é visto como autocentrado, autofundante, buscando uma noção de sujeito como construção histórica, resultante das relações de poder, o que Foucault entende por este “si” quando trata, por exemplo, das técnicas de si?

O debate que se seguiu à conferência de 17 de novembro no Dartmouth College é muito elucidativo desta questão. No auditório alguém afirma se sentir confuso com o uso que Foucault faz da expressão si, dizendo que procura compreendê-la como um sinônimo de alma, no sentido em que ele afirma, em Vigiar e Punir (1991), que a alma é a prisão do corpo. A isso o filósofo responde:

Como vocês sabem, não temos [o equivalente da] palavra “self” em francês; é uma pena, porque penso ser uma boa palavra. Em francês, temos duas palavras, “sujeito” e “subjetividade”, e não sei se vocês usam com frequência “subjetividade”, penso que não. Vejam: por “si” eu entendo o tipo de relação que o ser humano enquanto sujeito pode ter e nutrir com ele mesmo. Por exemplo, o ser humano pode ser, na cidade, um sujeito político. Sujeito político, isso quer dizer que ele pode votar, ou que ele pode ser explorado pelos outros etc. O si seria o tipo de relação que este ser humano enquanto sujeito tem com ele mesmo numa relação política. Podemos chamar isso de “subjetividade” em francês, mas não é satisfatório, eu penso que “si” é melhor. E este tipo de relação do sujeito consigo mesmo é, eu creio, o alvo das técnicas... E quando eu disse que a alma era a prisão do corpo era, claro, uma brincadeira, mas a ideia era que o corpo, neste tipo de disciplina, é definido e delimitado por um tipo de relação do indivíduo com ele mesmo. É este tipo [de relação] que é imposto pela disciplina e que dá ao corpo um certo lugar e uma certa definição, uma certa importância, um certo valor etc. (Foucault, 2013, p. 131).

Evidencia-se, assim, que o si de Foucault, como partícula reflexiva, implica necessariamente nesta relação consigo mesmo; é essa relação que a expressão evidencia. De modo que o si não é sujeito, mas a relação que o sujeito estabelece consigo mesmo. Para que seja possível relacionar-se consigo, é preciso, antes de tudo, estar constituído como sujeito, ser um efeito de relações de poder, de um processo que, como vimos anteriormente, Audureau (2003) denominou como assujeitamento. É preciso estar sujeitado a poderes para que seja possível agir sobre si mesmo, transformar-se — aquilo que o mesmo autor denominou subjetivação —, de modo que as duas ações não podem ser separadas ou simplesmente tomadas de modo desconectado.

O que implica, então, uma hermenêutica do sujeito ou, mais propriamente, uma hermenêutica de si? Na segunda conferência em Dartmouth College, em 24 de novembro de 1980, Foucault (2013) começa dizendo que dará seguimento ao tema da semana anterior, isto é, “como formou-se em nossas sociedades isso que eu chamaria de análise interpretativa de si; ou, como se formou a hermenêutica de si nas sociedades modernas ou, pelo menos, nas sociedades cristãs e modernas?” (p. 65).

O que parece apropriado para as sociedades construídas sob o cristianismo, porém, talvez não o seja para as sociedades antigas. As técnicas de si cristãs, como a confissão, a exomologese e a exagoreusis, estudadas tanto no curso do Collège de France como nas conferências estadunidenses de 1980, partem do princípio de que há um si oculto no sujeito, que precisa ser conhecido pela interpretação — hermenêutica. Precisa ser conhecido para que a ele se renuncie, visando à salvação da alma. Porém, quando examina as técnicas de si nas sociedades da antiguidade greco-romana, são outros tipos que Foucault encontra, como ele evidencia no final da conferência Sexualidade e Verdade (2013):

Em resumo, o si deve constituir-se através da força da verdade. Tal força reside na capacidade mnemônica do indivíduo e na qualidade retórica do discurso do mestre e estas dependem em parte da arte da memória e da arte da persuasão, de modo que as tecnologias de si no mundo antigo não estão ligadas a uma arte da interpretação, mas a artes como a mnemotécnica e a retórica. A observação de si, o exame de si, a interpretação de si, não intervirão na tecnologia de si antes do cristianismo. (p. 52)

O si, pensado como a relação consigo mesmo, tornada possível pelos processos de produção do sujeito — assujeitamento — nas relações de poder, pode e precisa ser perscrutado. Tal constituição se faz na relação com a verdade, mas as verdades, seus regimes e as formas de como elas se relacionam mudam historicamente, de forma que não há nem pode haver uma universalidade do sujeito. Se no cristianismo e nas sociedades cristãs modernas cabe uma hermenêutica do sujeito, nas sociedades antigas a relação consigo mesmo se constituía sobre outras bases. Por isso, as técnicas de si estudadas no curso de 1982, notadamente o cuidado de si e a parresía, estão longe de constituir uma hermenêutica do sujeito, isto é, uma interpretação de si mesmo, estando mais direcionadas para uma construção de si mesmo, uma “escultura de si”.

O que importa destacar, porém, é que se as técnicas de si mudam historicamente, impõe-se a nós pensarmos nosso próprio presente. Vejamos a conclusão de Foucault (2013) na segunda conferência no Dartmouth College, Cristianismo e Confissão:

Mas é chegado, talvez, o momento de nos colocarmos uma outra questão: vale a pena salvarmos esta hermenêutica de si? Teremos ainda necessidade desta hermenêutica de si que herdamos dos primeiros séculos do cristianismo? Teremos necessidade de um homem, de um homem positivo, para servir de fundamento a esta hermenêutica de si? Talvez o problema do si não seja o de descobrir o que se é, mas de descobrir que o si não é nada mais que o correlato da tecnologia construída em nossa história. E então o problema não é, talvez, o de encontrar um fundamento positivo para estas tecnologias interpretativas, mas o de mudar as tecnologias ou se livrar dessas tecnologias e, então, se livrar do sacrifício ligado a estas tecnologias. Neste caso, um dos problemas políticos principais, no sentido estrito da palavra “político”, o problema principal, seria a política de nós mesmos. (p. ٩٣)

Logo, mais do que nos ocuparmos com uma hermenêutica do sujeito, a questão seria nos ocuparmos com uma política de nós mesmos, com aquilo que é feito de nós, como somos constituídos sujeitos — ou como somos assujeitados — e como podemos “recusar o que somos” (Foucault, 2014, p. 128), para nos referirmos a outro texto de Foucault, e, assim, inventar outras formas de ser. Voltaremos a isso na parte final deste artigo.

Entre pedagogia e psicagogia: diferenças formativas para a condução de si mesmo

Situemos agora as questões propriamente educativas, ainda que seja uma tarefa delicada, como assinala Audureau (2003), uma vez que as práticas de si abordadas por Foucault parecem ser essencialmente relações adultas. Ainda assim, ao longo do curso de 1982, Foucault evidencia dimensões pedagógicas em vários momentos, quando fala do “déficit pedagógico” na sociedade ateniense na análise do diálogo Alcebíades de Platão (Foucault, 2004, p. 48) ou quando trata da relação mestre-discípulo nas escolas filosóficas helenísticas e romanas. Mas queremos partir de um ponto em especial, uma provocação interessante, lançada na aula do dia 10 de março de 1982, não desenvolvida a fundo em A Hermenêutica do Sujeito (2004), porém, presente com maior visibilidade no curso do ano posterior, O Governo de Si e dos Outros (2011b). Estamos nos referindo à psicagogia.

Contudo, antes mesmo de buscarmos compreender o sentido da psicagogia, é importante considerar o contexto no qual ela emerge. A partir dele, é possível perspectivar as condições indissociáveis da psicagogia com a constituição de si mesmo através da “força da verdade” e, por extensão, do impacto que as escolhas em torno da verdade suscitam para a constituição do sujeito, notadamente em termos de demandas de estratégias para a sua formação.

Se notarmos com atenção, veremos que a questão-guia que Foucault vem desenvolvendo na aula de 10 de março de 1982 é a da parresía, o franco-falar com toda a sua demanda de coragem de enfrentamento aos discursos aduladores e falsificadores da verdade, sobretudo quando se trata de se contrapor ao demos, ou seja, ao povo que buscava ouvir o que lhe agradava nas assembleias da polis. Já no curso O Governo de Si e dos Outros Vivos, em que Foucault explora mais detidamente o alcance da psicagogia, há estreita ligação com a verdade quando concebida pela filosofia ou pela retórica. Em ambos os casos, o tema recorrente são as implicações de como formas diferentes de conduzir a conduta repõem ênfases distintas acerca do que é a verdade.

Não podemos nos esquecer, porém, que a própria parresía é uma das formas possíveis de relação com a verdade. O problema a surgir daí recai nas consequências distintas que opções acerca da verdade são capazes de provocar para a conduta dos sujeitos. Assim, quando em uma entrevista de 1983 Foucault (1994) argumentou que o seu “problema é a relação de si a si e do dizer verdadeiro” (p. 444), o que vemos é uma extensa projeção de uma problemática que não se cansa de aparecer com tons distintos, porém, com um enfoque guia: quais as consequências para a constituição dos sujeitos, na longa história ocidental, quando possibilidades outras de experiências com o dizer verdadeiro foram postas de lado em detrimento de experiências reinantes? Em termos outros, por que a psicagogia não continuou sendo uma possibilidade de dizer verdadeiro e cedeu lugar a uma pedagogia que se firmou como função formativa para se conduzir as condutas de modo impositivo?

Ora, o dizer-verdadeiro é efeito da veridicção, isto é, do que se interpõe à constituição do sujeito como possibilidade de enunciação e de experiência, no sentido de viver a própria escolha da enunciação, entre escolhas do que se atribui por falso ou verdadeiro. É lógico que, assim, falso e verdadeiro possuem contornos absolutamente distintos na retórica e na filosofia; no platonismo socrático, no estoicismo, no epicurismo, no cinismo, no cristianismo, no cartesianismo etc. É como se Foucault, ao modo de Nietzsche, nos dissesse: não se é impunimente filho da veridicção. Tanto é que ele assim situou a questão:

A história crítica do pensamento não é nem uma história das aquisições nem uma história das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a história das “veridicções”, entendidas como as formas segundo as quais se articulam sobre um domínio de coisas e os discursos suscetíveis de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço em que, de toda forma, ela [a veridicção] pagou, seus efeitos sobre o real e a maneira em que, ligando um certo tipo de objeto a certas modalidades do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma atmosfera e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível. (Foucault, 1994, p. 632)

Poderíamos entrever nessas palavras que o que se supõe verdadeiro para as experiências educativas não passa de um horizonte possível, em boa dose, determinado pelas opções realizadas como articulação sobre “um domínio de coisas e os discursos suscetíveis de serem ditos verdadeiros ou falsos”. Portanto, quando Foucault defronta a pedagogia com a psicagogia, dá-nos condições de questionarmos as modalidades de verdades para as quais nos destinamos quando, na outra ponta, existem outros verdades e experiências possíveis.

Na aula de 2 de março de 1983 de O Governo de Si e dos Outros, Foucault (2011b) exemplifica as consequências de entradas distintas nas veridicções e, por efeito, as consequências distintas dessas entradas. Tomando a diferença entre retórica e filosofia, lemos que “a filosofia vai se apresentar, por oposição à retórica, como a única capaz de distinguir entre o verdadeiro e o falso” (p. 276). Até aí tudo bem. Do ponto de vista da história da filosofia, sabemos que Sócrates acabou morrendo por combater os retóricos, pois a força de seu pensamento demandava outra experiência com as verdades, sobretudo em nome da coerência política. Mas o que é absolutamente novo na oposição destacada por Foucault encontra-se na relação da defesa da verdade filosófica como síntese qualificativa psicagógica: “a filosofia vai se apresentar como detentora do monopólio da parresía, na medida em que vai se apresentar como operação sobre as almas, como psicagogia” (Foucault, 2011b, p. 276). Entretanto, do que se trata quando se menciona operação sobre as almas? Por que a filosofia se apresenta como detentora do monopólio da parresía? Por que a psicagogia é o que alinha ambos os aspectos: coragem de dizer a verdade — parresía — e atuar sobre as almas?

O que está em jogo é um complexo cenário de múltiplas experiências filosóficas que, apesar de suas particularidades e diferenças, conforme Foucault investigou na extensa cultura do cuidado de si, implicam seus sujeitos em um preço determinado a se pagar por não dissociar forma de pensar e de viver. E a força necessária para se viver conforme a verdade exigirá de seus sujeitos uma condução coerente, em modalidades de cuidados e de práticas de si, constantemente observados e executados. Em outros termos, enquanto na retórica não se precisava viver o que se enunciava, na filosofia é preciso se praticar o que se diz e se enuncia:

Outra série de problemas, que vemos nascer a partir dessa questão da parresía, é o problema do governo da alma, da psicagogia. Para se conduzir e conduzir os outros, e para poder conduzir os outros, conduzir bem a si mesmo, de que verdades necessitamos? Que práticas e que técnicas são necessárias? Que conhecimentos, que exercícios etc.? (Foucault, 2011b, p. 278).

Nos deparamos, assim, com um fundo problematizador no qual emerge a psicagogia supondo duas esferas de situações comunicantes: relação com a verdade e governar as condutas. Se situarmos essa questão ao que Foucault denominou na conferência de 31 de outubro de 1983, na série sobre Discusos e Verdade, ministrada em Berkley, de crise da parresía, descobriremos a interconexão entre liberdade, poder, democracia, educação e verdade. E aí, precisamente no arcabouço desse cenário, a psicagogia será interposta, ao ser definida, na referida aula de A Hermenêutica do Sujeito (2004), como outra possibilidade de educação formativa diferentemente da estritamente pedagógica.

No mesmo instante em que Foucault (2004) definia a psicagogia, ressaltava que na parresía se demandava “uma palavra que, do lado de quem a pronuncia, vale como comprometimento, vale como elo, constitui um certo pacto entre o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta. O sujeito que fala se compromete” (p. 492). Sem considerar essa dimensão, a definição da psicagogia se esvazia, em primeiro lugar, porque se trata de saber que a experiência demandada na psicagogia com a verdade implica, forçosamente, a modificação de si mesmo; em segundo lugar, porque não há como modificar-se a si mesmo, aspecto crucial do si constituindo-se através da força da verdade, sem se pagar um preço pela verdade que se vive: “não pode haver ensinamento da verdade sem um exemplum”(Foucault, 2004, p. 492), exemplo tanto figurado pelo mestre e por que o discípulo terá de viver, pois o mestre diz e vive o que diz; em terceiro lugar, porque deve haver comprometimento ou empenho voluntário: “ninguém era obrigado a obedecer alguém como a um pastor ou padre”, nos termos de Foucault (2017a, p. 276) nas conferência acerca do Dizer Verdadeiro sobre Si-Mesmo, de 1982.

É na conjuntura desse horizonte que Foucault (2004), fazendo uma espécie de balanço da evolução das técnicas de si na filosofia greco-romana e de sua completa cisão no cristianismo, define a psicagogia, não porém sem diferenciá-la da pedagogia:

Chamemos, se quisermos, “pedagógica” a transmissão de uma verdade que tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades, saberes, etc., que ele antes não possuía e que deverá possuir no final desta relação pedagógica. Se chamamos “pedagógica”, portanto, esta relação que consiste em dotar um sujeito qualquer de uma série de aptidões previamente definidas, podemos, creio, chamar “psicagógica” a transmissão de uma verdade que não tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, etc., mas modificar o modo de ser do sujeito a quem nos endereçamos. (p. 493)

Apesar da distinção que Foucault (2004) estabelece para experiências pedagógica e psicagógica, no mesmo contexto afirmou que “a relação psicagógica está, na Antiguidade, muito próxima, ou relativamente próxima, da relação de pedagogia” (p. 493). Tal associação é possível quando consideramos o lugar da filosofia como condição parresiasta, isto é, uma implicação com a verdade cuja formulação investia seus sujeitos para transformá-los, conforme se dispunham voluntariamente ao rigor de uma série de observâncias para as quais se viam implicados para modificar seus modos de ser; donde Foucault (2017b) também ter observado que “o papel parresiástico às vezes também se reencontra ligado ou associado ao papel pedagógico” (p. 107).

Não obstante, tal proximidade começou a se distanciar quando, no lugar da ênfase filosófica, a pedagogia deixou-se capturar pela retórica. Com todo cuidado que isso exige, chamamos a atenção para o fato de que, no caso, ambas estariam implicadas em dar condições — ou em termos contemporâneos das tendências educacionais neoliberais, capacitar com competências e habilidades para — no que é previamente definido como necessário: equipar os sujeitos com condições formativas para atingir determinadas finalidades. No entanto, tais condições estão longe de envolvê-los na modificação dos seus modos de ser, quer dizer, o que se aprende não suscita implicações para as quais se pagará um preço por existir desta ou daquela maneira. No lugar do papel ativo do sujeito, suposição elementar da psicagogia, algo que a condução de sua própria psiqué exige, cede-se lugar à passividade ou à subserviência de verdades que conduzem sob efeitos de mando. E será a partir do cristianismo que veremos se processar um distanciamento entre pedagogia e psicagogia. Vamos, a seguir, analisar algumas implicações desse cenário para a educação e, ao mesmo tempo, indagar se é possível pensarmos uma psicagogia hoje e quais implicações tal disposição traria para a “condução” pedagógica, ou melhor, para o governo pedagógico das condutas.

Problematização do presente: que psicagogia é possível hoje?

O rompimento decisivo da psicagogia com os efeitos pedagógicos, tal como era possível na cultura do cuidado de si, a partir do cristianismo, marcou de modo decisivo a prevalência da pastororalização educacional (Carvalho, 2014). No final da aula de 10 de março de 1982, Foucault destacava a inversão processada pelo cristianismo nos valores da psicagogia. Enquanto nas experiências da Antiguidade sempre se demandava “a adequação do sujeito que fala ou do sujeito da enunciação com o sujeito da conduta” (Foucault, 2004, p. 491), espécie de isonomia entre logos e práxis ou exigência ascética da verdade modificadora de si, porém, sempre de modo livre, em compensação, com o cristianismo, a experiência com a verdade conduziu a conduta de modo externo ao sujeito e à sua revelia. A verdade não vem mais das provas do que se fala e das condutas emergentes de viver o que se enuncia, mas da “Revelação, Texto, Livro, etc.” (p. 494). O que se imprime desde o sujeito cristão é uma verdade anterior a toda possiblidade de sua vivência:

E na psicagogia de tipo cristão veremos que, se é verdade que aquele que guia a consciência deve obedecer a algumas regras, que ele tem alguns encargos e obrigações, o custo mais fundamental, o custo essencial da verdade e do “dizer-verdadeiro” pesará sobre aquele cuja alma deve ser guiada... [N]a espiritualidade cristã é o sujeito guiado que deve estar presente no interior do discurso verdadeiro como objeto de seu próprio discurso verdadeiro. No discurso daquele que é guiado, o sujeito da enunciação deve ser o referente do enunciado: é a definição da confissão. (Foucault, 2004, p. 495)

Algumas consequências para se problematizar a educação contemporânea podem ser extraídas desse cenário. Em primeiro lugar, é preciso notar que Foucault não abole o horizonte da psicagogia a partir do cristianismo. Todavia, ao ressaltar a sua descontinuidade com os modos pelos quais os sujeitos nas experiências constitutivas de si mesmo greco-romana se psicagogizavam, assinala para o lugar passivo de quem precisa ser conduzido. Seguramente, a psicagogia cristã inaugurou uma demanda pelo lugar do pretenso saber instaurada pela autoridade, hierarquia institucionalizada e, claro está, demanda vigilante de observâncias de condutas não necessariamente associadas entre o que se fala e o que se faz. Educar passou a ser seguir regras para se atingir uma virtualidade subjetiva, porém, sempre deficitária às regras que se avolumam como novas demandas de “referente do enunciado”.

Não obstante, em segundo lugar, não estaremos mais face a face com experiências de sujeitos para sujeitos. Se “na filosofia grego-romana, ao contrário, quem deve estar presente no discurso verdadeiro é aquele que dirige” (Foucault, 2004, p. 495), suposição elementar da figura do mestre como exemplo de política de vida — bíos —, desde do que se fala e se ensina, no cristianismo a materialidade psicagógica não está no mestre, mas na letra. A psicagogia cristã haverá, assim, de ser sempre legalista e reduplicada. Mas a lei não demanda de si mesma relação isonômica, um dos efeitos mais contundentes da dimensão hierárquica instituída. Com efeito, temos uma modificação em profundidade na história das formas possíveis de se conduzir as condutas dos sujeitos e, daí, uma marca decisiva na constituição de subjetividade que passa a se distanciar de possiblidades de modificar o modo de ser do sujeito a partir de escolhas livres e investidas de vontade de se vivenciá-las. Estamos, doravante, precisando com Foucault (2017a), diante do

fato de haver na sociedade cristã pessoas detentoras do privilégio, do dever, da obrigação de controlar a conduta dos outros, não apenas de controlar suas condutas todos os dias, mas de saber quem eles são, bem como de conhecer a vida, o conhecimento, a intimidade, a alma etc. deles, o que é muito importante, de todo modo crucial e particular em nossa sociedade, porque na Grécia e em Roma, por exemplo, o cuidado de si tinha grande importância, mas todas as relações eram inteiramente voluntárias, enquanto que no cristianismo tudo se torna obrigatório com uma estrutura autoritária, o que caracteriza a pastoral na sociedade cristã. (p. 276)

Se muito já foi dito acerca do peso das relações vigilância e de punição na educação, não nos custa a entender que as condições precípuas de tais formas foram fundamentadas por uma cultura de condução calcada na normalização das obrigações impositivas e seu autoritarismo. Aliás, poderíamos enxergar na centralidade da presença do livro na educação ocidental a maquete reduplicada do conhecimento que precisa ser revelado a quem aprende, mas distanciado das potencialidades de transformação dos modos de ser de quem aprende. É como se a educação se reduzisse a uma busca por terra prometida, enquanto a vida tangível, circunscrita no aqui e agora, fosse impedida de ser justamente para que não sejam sequer pensadas formas de sua transformação. Em outras palavras, é toda uma dimensão de política de nós mesmos que está em jogo.

Em terceiro lugar, entre dissolução da psicagogia voltada para a constituição de si e a prevalência da psicagogia autoritária, vemos também desaparecer as possiblidades singulares de se considerar as constituições subjetivas como multiplicidades. Quando Foucault definiu a psicagogia como experiência com uma verdade que não tinha por função dotar de aptidão ou capacidades seus sujeitos, senão a de modificar o modo de ser a quem a verdade era endereçada, precisamos recordar a multiplicidade possível de experiências psicagógicas que se delineavam no horizonte. Diferentemente do que sucedeu no cristianismo, não havia uma instituição majoritária e dominadora que criava a identidade a priori para seus sujeitos. As interfaces distintas com a psykhagogía dià tôn logôn — ou seja, psicagogia pelos discursos —, além de variáveis, jamais conheceram algum tipo de imposição de convergência para uma mesma verdade, no sentido de sua universalização distante de uma prática singular. A razão óbvia: “todo discurso de verdade, toda veridicção, [era] considerado essencialmente uma prática” (Foucault, 2011b, p. 281). Todavia, com o cristianismo, o que era experimentado na psicagogia como “um princípio de liberdade, em que a liberdade é definida, não como um direito de ser, mas como uma capacidade de fazer” (p. 281) desaparece, dando lugar à constrição obediente e homogênea.

Pensar as consequências para a educação contemporânea a partir de tal cenário nos faz suscitar algumas questões:

Tais indagações estão em um arcabouço só, a nosso ver. Pois na medida que caminhamos na direção de suas problematizações, tensionamos uma rede complexa pela qual são tecidas as condições da própria educação contemporânea. De todo modo, assim como Foucault indagava no cenário da psicagogia acerca de quem mantém o discurso verdadeiro e pagando que preço, para pensarmos as condições de uma psicagogia hoje, também precisamos indagar acerca dos discursos verdadeiros que imprimem para a educação formas unificadoras e maciças com as experiências de verdade. Vamos partir desta perspectiva lançada por Foucault (2017a):

Na nossa sociedade, quando alguém é levado a dizer a verdade, é aceito como alguém que diz a verdade, quando o que ele diz circula como verdade, qual é a pragmática que está aí enraizada ou a sua condição histórica? (p. 278)

Se o cristianismo solidificou uma pragmática de verdade a partir da institucionalização qualificadora de certas pessoas para se dizer a verdade, não necessariamente vivendo-as, e, ao mesmo tempo, fazendo-as circular de modo obrigatório e universal, poderíamos dizer que as condições de uma psicagogia contrária a esta herança haverá de se situar no encontro entre fuga ao universalismo impositivo, recusa da hierarquia dominante e negação do distanciamento entre enunciação e pragmática. O novo cristianismo pode ser enxergado no neoliberalismo. Os tentáculos das instituições que ressoam seu pedagogismo sujeitante manejam, com destreza, uma série de intervenções pastoralizantes nas políticas públicas de educação.

No Brasil, por exemplo, saltam aos olhos a presença das diretrizes do Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e do Banco Interamericano de Desenvolvimento na fundamentação dos conhecimentos, das competências e das habilidades padronizadamente exigidos pela Base Nacional Comum Curricular — BNCC. Aliás, a própria inserção de competências e habilidades como demanda funcional da educação prefigura justamente a aceleração daquele pedagogismo que se difere da psicagogia. No caso, trata-se apenas mesmo de demandar certas aptidões, capacidades e saberes para que educandos se adaptem às necessidades impositivas do papa que a tudo determina: o mercado neoliberal.

Desse ponto de vista, a psicagogia pode ser encontrada em toda forma de experiência com a educação a vislumbrar estratégias de outras pragmáticas formativas, porém, distantes daquelas impostas pela mesma condição histórica unificadora e autoritária. A qualificação visada aqui não se volta para as competências e habilidades adaptativas e sujeitantes. Ao contrário, qualificação, se ainda quisermos manter esta nomenclatura, se aproxima da modificação do modo de ser, uma vez que é de uma singularidade de experiência, e seguramente por ela se pagando com certa coragem de verdade, que outras possibilidades de se viver a formação se encontra. As formas pelas quais a educação quilombola, ribeirinha, mas também aquela vivenciada pelos povos originários e por coletivos que ousam não repetir a história como um mesmo vocábulo — educação zapatista, educação no Movimento dos Sem Terra, educação quíchua, educação libertária em todas as suas formas etc. — emergem como possiblidades psicagógicas.

É lógico que o sistema universalizante da educação neoliberal dota tais experiências com identificadores representacionais voltados para enxergar nelas uma ameaça à sua estabilidade. Ao modo da pastoral cristã, o pedagogismo que parasita a educação contemporânea também é dotado do poder omnes et singulatim. Todos e cada um devem seguir a mesma cartilha. Imediatamente compreendemos que as possibilidades psicagógicas forçosamente estarão circunscritas às experiências também de contracondutas. Se desde a psicagogia na Antiguidade havia a relação imanente com a condução da conduta, decerto tal condução não era para ser decalcada a partir de modelos sobredeterminantes e universais. Ao contrário, cada experiência do governo de si gerava a singularidade de uma conduta cuja finalidade era a própria modificação do sujeito. Ora, ironicamente, modificar a si mesmo na educação majoritária contemporânea só é possível quando se trata de aprender a se adaptar à precariedade do próprio sistema neoliberal.

Nessas proporções, o fetiche do ensino-aprendizagem que assola a educação vem a calhar. Com a temporalidade toda esquadrinhada, com a vida dragada pela força adaptativa custe o que custar e com a homogeneização das competências, a cultura de estudo foi suprimida em detrimento da aprendizagem. Estudar demanda tempo, assim como demanda tempo o governo de si mesmo, voltado para a modificação do modo de ser. Entretanto, é mais fácil sustentar que o aluno não aprende porque o ensino não está sendo executado como se deve e, assim, culpabilizar individualmente cada professor de um pretenso fracasso que está, a bem da verdade, na crença miraculosa de que é possível aprender sem se viver o que se aprende. É preciso, assim, modificarmos os polos. Defender a cultura de estudo é investir a formação de outra temporalidade. Mas isso também aporta implicações para a instituição escolar, demandando dela uma modificação de si mesma: ter bibliotecas adequadas, desmassificar a relação número de alunos por professor, equipar-se apropriadamente etc. Nada disso, porém, é suposto nos documentos oficiais, quando não oficiosos, cuja pressa em eximir a condição história da qual eles são cúmplices não vem ao caso.

Quando Foucault (2013) mencionou que “o poder tal qual é, as relações de poder tais como elas existem em tal ou tal sociedade, não são senão cristalização de força” (p. 150), precisamos pensar que a psicagogia, nesse caso, se destina às experiências que tendem a se distanciar de qualquer cristalização de força. Se há uma psicagogia possível, suas condições estão em formas de conduzir os ensaios com a formação dos sujeitos fora dos circuitos hegemônicos de educação. O centro de gravidade da dimensão função modificadora do modo de ser, na psicagogia, recai, de um lado, no deslocamento estatutário do sujeito, dissolvendo “as identidades estruturadas e estruturalizantes a partir dos dispositivos escolarizadores que solidificam as expectativas voltadas para um tipo determinado de formação, disciplinarizando-as” (Carvalho, 2014, p. 94). De outro lado, e como consequência, o modo de ser “pode dar lugar a relações intensas que não pareçam em nada com as que são institucionalizadas” (Foucault, 1994, p. 165).

Vale ainda lembrar o caráter democrático suposto na psicagogia. A variação das experiências ao redor da psicagogia pelos discursos — psykhagogía dià tôn logôn — depositava na confiança das singularizações não uma demanda de conformidade à maioria ou aos consensos quantificáveis. A dimensão democrática da psicagogia encontra-se justamente na potência das multiplicidades de tecnologias transformadoras de si mesmo. Em tempos de dissolução das experiências democráticas na sociedade contemporânea, educar para a democracia faz-nos pensar em modos de ser que ampliem experiências de heterogeneidade subjetiva.

Conquanto o pedagogismo visa a adequação subjetivante em função das aptidões, capacidades, saberes, competências, atitudes e habilidades em uma educação demandante de funcionalidades esquadrinhadas, a psicagogia, por modificar o modo de ser, deflagra o que Carvalho et al. (2021) denominaram de subjetividade geradora, “concebida como uma forma de trânsito para outras condições existenciais, devires possíveis de vida e de mundos outros” (p. 7). Não prescindido da figura do mestre, a subjetividade geradora dispõe a relação de si mesmo com a alteridade sempre em pontos variáveis. Logo, a produção de verdades na psicagogia emerge

para além daquelas prefiguradas nos cenários condicionantes do pensamento e do agir dos educadores, no caso, para propiciar outras subjetividades geradoras, distintas daquelas do cenário das forças de poder de opressão, das relações antidemocráticas e desumanizadoras, da desvalorização e do demérito da res publica na educação (p. 7).

Se a psicagogia hoje pode ser uma possibilidade de contraposição às experiências de educação institucionalizada, é pelo fato de nos levar a pensar em outros modos de educar; por permitir suscitar que o pensamento problematize formas múltiplas de singularização subjetivas, sem desconsiderar modos de ser que jamais serão equivalentes; ensaios abertos por intermédio de estratégias de contracondutas, tensionadoras das forças cristalizadas; e, não menos importante, a defesa de formas variáveis e democráticas de se educar.

Considerações finais

Se inicialmente destacamos neste artigo o interesse de Foucault em perscrutar no si —entendido como o tipo de relação que o ser humano enquanto sujeito pode ter e nutrir consigo mesmo experiências que, apesar de terem sido perdidas historicamente, existiram e, sendo conhecidas, nos mobilizam a repensar a história crítica de nós mesmos —, chegamos a mostrar que a psicagogia foi uma das formas ricas e potentes para observarmos tais possiblidades.

Não há como duvidar que a educação é campo privilegiado por onde os modos de ser são minorados ou potencializados para se permitir a constituição de modos de ser enriquecedores de si mesmo. Apesar de que jamais faremos reposição histórica do vivido — e é bom que assim seja —, contudo, a história das formas psicagógicas abrem para a nossa contemporaneidade uma possibilidade política de intervirmos nos destinos que supomos obrigações incontornáveis. A psicagogia sempre foi uma experiência micropolítica para formação humana, entendendo formação como a própria modificação do modo de ser de cada um, visando à própria política de uma subjetividade singular e plena de sentidos para aquele que a vive.

Por isso mesmo, mostramos que a psicagogia pode alcançar lugar nas possibilidades e nas experiências da e com a educação. Todavia, não podemos nos furtar de sublinhar que isso se alcança apenas por intermédio da intimidade vivencial da própria psicagogia, o que abole por completo o desejo de reprodução pedagógica, didática, curricular, hierárquica e de relação ensino-aprendizagem universalizantes e homogêneos.

Os lugares mutantes, variáveis, singulares e de multiplicidades experimentais, ao mesmo tempo que compõem as exigências da psicagogia, são consequências das relações de possibilidades de guiar os modos de ser para uma produção de verdade igualmente mutante, variável, singular e experimental. A psicagogia, assim, pode ser enriquecedora das constituições das subjetividades, cujo colapso se dá quando somos apenas provisionados das mesmas condições e projeções de modos de ser, sobretudo no âmbito educacional.

Finalmente, vale lembrar que é todo um conjunto de novas afluências como caminhos à vista aberta que a psicagogia permite na relação entre mestres e educandos. Primeiramente, podemos acompanhar a longa consideração de Foucault (2004) na A Hermenêutica do Sujeito:

Não é para um saber que substituirá a sua ignorância que o sujeito deve tender. O indivíduo deve tender para um status de sujeito que ele jamais conheceu em momento algum de sua existência. Há que substituir o não-sujeito pelo status do sujeito, definido pela plenitude da relação de si para consigo. Há que constituir-se como sujeito e é nisto que o outro [o mestre] deve intervir... Doravante, o mestre não é mais o mestre de memória. Não é mais aquele que, sabendo o que o outro não sabe, lhe transmite. Nem mesmo é aquele que, sabendo que o outro não sabe, sabe mostrar-lhe como, na realidade, ele sabe que não sabe. Não é mais nesse jogo que o mestre vai inscrever-se. Doravante, o mestre é um operador na reforma do indivíduo e na formação do indivíduo como sujeito. É o mediador na relação do indivíduo como sua constituição de sujeito. (p. 160)

Como se vê, a psicagogia afirma o lugar do sujeito como estatuto de subjetividade que se vive, ao passo que podemos dizer que a educação pedagogizada afirma o lugar do não-sujeito, pois em tal situação, educar é assumir uma identidade não requerida pelo sujeito, mas a ele imposta. É por isso que a prática de si vincula-se à psicagogia, dando lugar à constituição de uma relação de si consigo mesmo, mas cuja mediação pela presença do mestre não é impositiva, e sim convidativa ao governo de si mesmo, à condução de si.

O aspecto a ser acentuado nessa dimensão convidativa não abole, contudo, a coerência entre a verdade enunciada e a pragmática da verdade. A psicagogia, então, abrange experiências formativas vivas, ou melhor, encarnadas. A sua veridicção coloca de lado o que não é verdadeiramente assumido como potência transformadora do modo de ser que, por sua vez, está longe de ser adesão por conveniência a qualquer tipo de saber. Em tal situação, não podemos ignorar o seguinte:

É preciso que, do lado do mestre, o discurso apresentado não seja um discurso artificial, fingido, um discurso que obedece às leis da retórica e que vise na alma do discípulo somente efeitos patéticos. É preciso que não seja um discurso de sedução. É preciso que seja um discurso tal que a subjetividade do discípulo possa dele apropriar-se e que, apropriando-se dele, o discípulo possa alcançar o objetivo que é o seu, a saber, ele próprio. (Foucault, 2004, p. 442)

Referências

Audureau, J-P. (2003), Assujettissement et subjectivation : réflexions sur l’usage de Foucault en éducation. Revue Française de Pédagogie, (143), 17-29. https://www.persee.fr/doc/rfp_0556-7807_2003_num_143_1_2948

Carvalho de, A. (2014). Foucault e a função-educador. Editora Unijuí.

Carvalho de, A., Kohan, W., & Gallo, S. (2021). Paulo Freire e as subjetividades geradoras: um modo de vida filosófico para a educação contemporânea. Revista Proposições, 23. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-2021-0076

Castro, E. (2009). Vocabulário de Foucault. Autêntica.

Foucault, M. (1991). Vigiar e Punir – história da violência nas prisões (8ª ed.). Vozes.

Foucault, M. (1994). Dits et Écrits IV – 1980-1988. Gallimard.

Foucault, M. (2004). A Hermenêutica do Sujeito. Martins Fontes.

Foucault, M. (2008). Segurança, Território, População. Martins Fontes.

Foucault, M. (2011a). A Coragem da Verdade. WMF Martins Fontes.

Foucault, M. (2011b). O Governo de Si e dos Outros. WMF Martins Fontes.

Foucault, M. (2013). L’origine de l’herméneutique de soi – conférences prononcés à Dartmouth College, 1980. Vrin.

Foucault, M. (2014). Ditos e Escritos. Vol. 9. Forense Universitária.

Foucault, M. (2017a). Dire vrai sur soi-même. Vrin.

Foucault, M. (2017b). Discours et vérité. Vrin.

Kambouchner, D. (2013). L’École, question philosophique. Fayard.

Malabou, C. (2022). Au voleur ! Anarchisme et philosophie. PUF.


1 Este é um dos poucos textos que exploram o tema da educação na obra de Foucault em língua francesa. O autor baseia-se, sobretudo, nos estudos foucaultianos em língua inglesa. Seria interessante alargar essa análise para as publicações em português e espanhol.

2 A afirmação de Foucault (2011a) é a seguinte:

Todo o mundo sabe, e eu em primeiro lugar, que ninguém precisa ser corajoso para ensinar. Ao contrário, quem ensina estabelece, ou ao menos espera, ou às vezes deseja estabelecer entre si e aquele ou aqueles que o escutam um vínculo, vínculo esse que é o do saber comum, da herança, da tradição, vínculo que pode ser também o do reconhecimento pessoal ou da amizade. (p. 24)

3 Ver, de modo especial, a aula de 1º de fevereiro de 1978, na qual é introduzida a noção de governamentalidade (Foucault, 2008).

4 Ver, por exemplo, a aula de 8 de março de 1980 — especialmente o trecho que aparece em Foucault (2008), pp. 309-311.

5 Importante lembrar que nos primeiros meses de 1980 o curso de Foucault no Collège de France, Do Governo dos Vivos, teve por tema as técnicas de si desenvolvidas pelo cristianismo nascente, com centralidade para a confissão; e que o curso seguinte, de janeiro a abril de 1981, teria por título Subjetividade e Verdade, tendo sido destinado ao estudo da moral sexual e das técnicas de vida na antiguidade greco-romana. As conferências nos Estados Unidos fazem a ponte, de modo sintético, entre os temas dos dois cursos.

6 Malabou (2022) assim define a anarqueologia foucaultiana: “A anarqueologia é uma atitude crítica que estima que ‘nenhum poder é um dado de fato, que nenhum poder, qualquer que seja, é inconteste ou inevitável’ e procede a uma gênese paradoxal das hierarquias sem termo fundador nem teleologia” (p. 209). A autora está também citando a aula de 30 de janeiro de 1980, no curso Do Governo dos Vivos.