ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2023, 14(38), e15053

https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n38.2023.15053

Formação e horizonte de expectativas

Nadja Hermann 1

1. Universidade Federal do Rio Grande do Sul

nadjamhermann@gmail.com

Resum0

O artigo, de natureza ensaística, contextualiza a crise contemporânea gerada tanto pela orientação neoliberal da educação, restrita aos interesses mercadológicos, como pela introdução de tecnologias da informação nos sistemas de ensino, que obliteram a capacidade deliberativa do sujeito, num abandono da tradição moderna da educação, cujo núcleo é a autonomia. Na sequência, adota os recursos teórico-metodológicos da hermenêutica filosófica de Gadamer e das categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa de Koselleck para avaliar criticamente a herança da experiência formativa ocidental e sopesar o que mantém validade. As críticas forçam o descentramento da autonomia e conduzem a uma reelaboração desse conceito que sustente sua validade, exigindo do sujeito a capacidade de explorar criativamente suas necessidades, refletir eticamente sobre a totalidade de sua vida e aplicar normas universalistas com sensibilidade. Tal reelaboração projeta no horizonte de expectativa uma criação de si, enquanto autodeterminação, ponto de clivagem de uma educação ético-estética, capaz de abrir-se às possibilidades inexploradas, não preconcebidas em modelos estruturados de comportamentos.

Palavras-chave: formação, experiência, horizonte de expectativa, autonomia, educação ético-estética

Formación y horizonte de expectativas

Resumen

Este artículo, de corte ensayístico, contextualiza la crisis contemporánea generada tanto por la orientación neoliberal de la educación, limitada a intereses del mercado, como por la introducción de tecnologías de la información en los sistemas educativos, que eliminan la capacidad deliberativa del sujeto, en medio de un abandono de la tradición moderna de la educación, cuyo núcleo es la autonomía. Luego, se adoptan los recursos teórico-metodológicos de la hermenéutica filosófica de Gadamer y de las categorías de espacio de experiencia y horizonte de expectativas de Koselleck para evaluar críticamente la herencia de la experiencia formativa occidental y revisar qué sigue siendo válido. Las críticas obligan a descentrar la autonomía y llevan a una reelaboración de este concepto que sustente su validez, lo cual exige que el sujeto sea capaz de explorar creativamente sus necesidades, reflexionar éticamente sobre la totalidad de su vida y aplicar normas universalistas con sensibilidad. Esta reelaboración proyecta en el horizonte de expectativas una creación de sí mismo, como autodeterminación, punto de inflexión de una educación ético-estética capaz de abrirse a las posibilidades inexploradas, no preconcebidas en modelos estructurados de comportamiento.

Palabras clave: formación, experiencia, horizonte de expectativas, autonomía, educación ético-estética

Training and horizon of expectations

Abstract

This article, of an essayistic character, contextualizes the contemporary crisis caused by both the neoliberal orientation of education, limited to market interests, and by the introduction of information technologies in educational systems, which eliminate the deliberative capacity of the subject, amidst an abandonment of the modern tradition of education, whose core is autonomy. Then, the theoretical-methodological resources of Gadamer’s philosophical hermeneutics and Koselleck’s categories of space of experience and horizon of expectations are adopted to critically evaluate the inheritance of Western formative experience and to assess what remains valid. The critiques force the decentering of autonomy and lead to a reworking of this concept that sustains its validity, requiring from the subject the ability to creatively explore his needs, to ethically reflect on the totality of his life, and to apply universalistic norms with sensitivity. Such re-elaboration projects onto the horizon of expectations a creation of the self, as self-determination, the cleavage point of an ethical-aesthetic education, capable of opening up to unexplored possibilities, not preconceived in structured models of behavior.

Keywords: training, experience, horizon of expectation, autonomy, ethical-aesthetic education

A palavra do poeta

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

—João Cabral de Mello Neto

Com versos amargos e objetivos que dispensam qualquer sentimentalismo, o poema Educação pela pedra (Neto, 2008) utiliza a força da imagem poética de algo muito concreto — a pedra — para explorar a dinâmica oculta da educação, uma metáfora da dureza que “entranha a alma” nas sofridas lições da vida no sertão. A crítica, contudo, estende-se a qualquer educação que não alcança nenhuma autonomia interior, nenhuma transformação liberadora, que tropeça no próprio enclausuramento. Afinal, enquanto metáfora, a imagem da pedra condensa múltiplos significados.

Enraizado na concretude da vida, o poema expressa uma intuição profunda, uma sensação lancinante do poeta que o leva a pensar o mundo pela imagem poética, trazendo uma singular experiência da condição humana. A poesia, disse Gadamer (2000) “é isso que, através de seu modo de dizer algo, é convincente” (p. 20).

O ato de pensar o mundo aproxima poesia e filosofia, sendo mister do discurso filosófico expressá-lo por meio de argumentos. Problematizar a educação diante da crise contemporânea, discutindo alguns de seus pressupostos à luz do pensamento filosófico e recolocando-os em outro horizonte interpretativo, é como este texto pretende contribuir à proposição dos organizadores deste dossiê de educación y crisis contemporáneas.

Lançar um olhar mais atento à educação no Brasil traz tanta inquietude quanto às perplexidades geradas pela “resistência fria” da pedra, especialmente porque a crise da sociedade contemporânea torna visível um movimento autoritário, profundamente enraizado na estrutura escravista e patrimonialista, que desfaz conquistas históricas, oblitera compromissos éticos e esvazia o conceito de formação, operando em favor de um embrutecimento dos espíritos. Esse movimento busca invalidar conquistas democráticas importantes: uma delas se refere à relevância da escola pública na ampliação do horizonte cultural das crianças, agora ameaçada pela homeschooling, que retira o que Arendt (2000) considera uma exigência da educação, ou seja, a responsabilidade “pela continuidade do mundo” (p. 235), pela apresentação das criações culturais aos “recém-chegados” para que possam renovar o mundo comum. Inclui também o ensino de ciências restringido pelas ameaças de substituição de teorias científicas, como o evolucionismo de Darwin, pelo criacionismo religioso que borra fronteiras ao fazer da ciência uma questão de fé, num desprezo à orientação republicana e laica. Há também o avanço de temas conservadores que distorcem princípios éticos de universalidade, autonomia, liberdade e igualdade por meio de interpretações equivocadas.

Acrescentam-se, ainda, os resultados obtidos nas últimas décadas com as políticas públicas direcionadas pelo neoliberalismo, que delineiam um modelo educativo atrelado aos interesses do mercado, centrado no desenvolvimento das competências, que podem ser quantificáveis e geridas economicamente. As consequências para o processo formativo se referem, sobretudo, ao empobrecimento da proposta educacional, reduzida à mera oferta disciplinar necessária ao domínio de conhecimentos básicos, com o consequente abandono total ou parcial das disciplinas relativas às humanidades1, que permitem conhecer a complexidade e as sutilezas da condição humana e seu legado cultural, subtraindo as condições que favorecem o amadurecimento das próprias capacidades do sujeito numa biografia consistente. Além disso, os conhecimentos voltados para necessidades imediatistas deixam de servir como orientação de mundo, trazendo um utilitarismo prejudicial à compreensão do conhecimento e seus limites, à distinção entre argumentos válidos e falaciosos e à capacidade de criticar as fontes e distinguir cientificamente o que é válido de superstição (Bieri, 2012).

A crise instaurada altera os modos de vida e de produção do conhecimento, pondo em risco o pluralismo das diferentes perspectivas, especialmente pelo refluxo das ciências humanas, em favor de soluções meramente inovadoras, do ponto de vista mercadológico. Ainda nesse contexto situam-se as tecnologias da informação e de inteligência artificial, que, a despeito de suas potências, dependendo da forma como são apropriadas pela gestão educacional, insinuam uma solução fácil e rápida e, embora resolvam problemas específicos de circunstâncias determinadas como foi o caso do ensino remoto durante a pandemia da covid-19, desprezam a base interativa da educação e também afetam muitas de nossas capacidades, desde a memória, passando pela atenção até o pensamento2. Considerando que as rápidas soluções mercadológicas alienam as complexas questões envolvidas no processo de formação, somos forçados a constatar que velhos problemas ressurgem naquilo que se apresenta como novo, sendo, na verdade, expressão do desenvolvimento de uma dinâmica histórica que vem se fortalecendo através de sucessivas reformas educacionais — no caso da educação brasileira, esse movimento inclui desde a reforma de ensino no período da ditadura militar, Lei 5692 de 1971 até a atual reforma do Ensino Médio, Lei nº 13.415, de 2017 — que insistem em ceder a uma profissionalização ligeira para atender interesses do mercado, dissimuladas no aceno de garantir emprego, deixando a educação empobrecida, afastada dos genuínos interesses formativos quanto à promoção do desenvolvimento de uma personalidade livre, da curiosidade intelectual, do autoconhecimento; ou seja, sujeitos capazes de constituir-se a si mesmos e fazer suas próprias escolhas.

Esse contexto provoca profundos questionamentos a respeito do tipo de educação promovida, uma vez que a subjetividade lesada já se evidencia, não apenas na precarização das habilidades de leitura e escrita e da área científica e matemática, mas também na falta de condições dos sujeitos em pensar a dimensão humana, na perda de controle de seus próprios afetos, na facilidade em aderir ao dogmatismo e ao comportamento massivo.

A palavra da filosofia

Problematizar a educação é uma tarefa intelectual (Hermann, 2021) iniciada no mundo grego, com o Sócrates platônico, diante da insatisfação da educação aristocrática. Sua problematização revela uma refinada compreensão da complexidade das questões humanas e sociais necessárias para promover no jovem uma transformação psíquica e duradoura, pois se trata da busca não apenas da virtude moral, mas de toda a excelência técnica, intelectual, moral e política (Scolnicov, 2006), aquilo que está na origem da paideia. Sócrates defendeu sua crença na capacidade crítica da razão, na importância da honestidade intelectual e autocrítica e uma visão de justiça de alto alcance para a sociedade e a formação, segundo a qual é melhor sofrer uma injustiça do que praticá-la (Platão, 1983, 469a). Assim, os gregos inauguram a tradição de que para educar é preciso problematizar a condição humana e conhecer suas imperfeições para melhorá-la, orientada pelo interesse no bem comum. Mais tarde, essa reflexão sobre questões formativas seria chamada filosofia da educação, cuja tarefa é manter-se atenta, problematizar as questões de como educar, renovadas a cada tempo histórico, na medida em que o conteúdo das questões se altera diante das radicais transformações sociais e culturais e do desenvolvimento da ciência.

A questão do horizonte para a hermenêutica filosófica

Proponho problematizar a formação3, recorrendo ao conceito de horizonte da hermenêutica filosófica de Gadamer (1990), um modo de filosofar empenhado na contínua busca de saber, que reconhece os efeitos da história — Wirkungsgeschichte, história efeitual —, situando-nos num determinado horizonte, ou seja, “o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto” (p. 307). O horizonte amplia a visão sobre nossas experiências, impedindo de nos manter presos naquilo que está próximo, aos imediatismos técnicos. O distanciamento favorece uma atitude compreensiva, abrindo a possibilidade de reinterpretar, desconstruir e reelaborar um conceito de formação como autoconhecimento e consciência histórica.

Com pontos em comum com a hermenêutica de Gadamer, Koselleck (2006)4 propôs as categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativas, que entrelaçam passado e futuro, possibilitando recolher algo da experiência histórica e projetá-la num horizonte de expectativas. A experiência refere-se aos acontecimentos incorporados e que podem ser lembrados, enquanto a expectativa volta-se para o ainda-não, que acolhe o medo, a esperança e diferentes inquietudes, próprias às incertezas humanas. Horizonte, diz Koselleck (2006), “é aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado” (p. 311). A importância histórica de certas experiências na vida humana é responsável por fecundar nosso horizonte de expectativas, que serve de orientação no mundo para formar novas gerações.

A hermenêutica filosófica ensina que o horizonte de sentido de toda experiência se encontra num movimento de aprendizagem, de maturação. A tomada de consciência histórica é uma reflexividade que não deixa de produzir seus efeitos ao trazer a relatividade de diferentes perspectivas, das experiências vividas. Assim, a “consciência histórica não ouve mais belamente a voz do passado, senão que, refletindo sobre ela, a substitui no contexto em que se enraizou, para ver o significado e o valor relativo que lhe convém” (Gadamer, 1993, p. 43).

O alerta de Koselleck (2006) de que “uma expectativa jamais pode ser deduzida totalmente da experiência” (p. 310) refere-se ao fato que nosso presente está sempre sujeito a uma dinâmica entre conservação e inovação no que tange às experiências do passado, permitindo aprender com os erros e projetar um horizonte de expectativa aberto ao futuro, tributário da forma como nos apropriamos do passado. O processo formativo se articula entre o espaço da experiência e o horizonte de expectativas pelo seu caráter “genuinamente histórico”, que traz consigo a dinâmica entre renovar-se e ver tudo com outros olhos. Ou seja, a formação não é um preparo que usa determinados meios para um fim, como um manual, um roteiro de exercícios. Ao contrário, na formação é possível

apropriar-se totalmente daquilo no qual e através do qual alguém é instruído. Nesse sentido, tudo que ele [quem se educa] assimila nele se integra. Mas, na formação, o que foi assimilado não é como um meio que perdeu sua função. Na formação adquirida nada desaparece, tudo é preservado. (Gadamer, 1990, p. 17)

O que é preservado se refere ao movimento do sujeito no processo formativo, que vai além de questões de procedimento e comportamento; refere-se ao “ser que se tornou” (Gadamer, 1990, p. 17). Desse modo, a formação não pode ser reduzida apenas ao preparo profissional, ao domínio de determinadas competências.

Qual é nossa experiência formativa?

A experiência formativa no Ocidente foi forjada por profundas crises. Na sequência, esboço resumidamente os fundamentos da educação moderna para expor como tais fundamentos são afetados pela crítica ao sujeito racional e pelas peculiaridades do contexto atual.

A origem da experiência formativa se encontra na paideia grega, passando pela contribuição da humanitas latina que assimila os valores gregos da formação humana pela cultura, e chega na modernidade expressa pelo tema da subjetividade ou da constituição dos sujeitos a partir do princípio de autonomia5 ou autodeterminação. A despeito das singularidades de diferentes enfoques teóricos, a educação é concebida como a capacidade de autodeterminação racional, uma liberdade do sujeito na criação de si que influenciou diversas propostas pedagógicas nos séculos XIX e XX. O homem é formado no confronto de suas próprias experiências, não sendo determinado nem pela natureza nem pelo fundamento teológico, mas pela suas próprias ações e escolhas, por meio do pleno desenvolvimento de suas forças (Humboldt, 2010), envolvendo empenho espiritual e moral. Uma fundamentação desse tipo está em consonância com a visão prevalente no mundo secularizado, notadamente, com a visão iluminista, segundo a qual o homem é responsável pela criação de si em oposição à criação divina. É pelo esvanecer do fundamento teológico que a educação encontra novas formas de legitimação, sendo que o núcleo forte da problematização teórica — a autonomia —, de acordo com a filosofia prática de Kant, articula-se aos conceitos de dignidade e liberdade. O homem, enquanto ser racional, deve ter liberdade para desenvolver ao máximo as capacidades humanas, como anunciado por Rousseau, Kant, Herder, Schiller, Hegel, Humboldt, inclusive por poetas como Goethe, projetando uma educação não mais para a perfeição cristã — cujo modelo é Cristo —, mas para a perfectibilidade — a perfectibilité de Rousseau — e para o progresso. Não só o progresso, mas também conceitos como emancipação, crise e aperfeiçoamento são forjados na experiência histórica e passam a iluminar os problemas do mundo moderno e da educação. É importante destacar que a consciência histórica moderna cria suas próprias normas, não sendo possível recolher tais orientações de outro tempo histórico.

Com efeito, a educação também abandona os fundamentos externos para localizá-los no próprio homem, o que se torna inequívoco na formulação de Humboldt (2010): “O ponto mais alto da existência humana é seu florescimento (Blüthe)” (p. 66).

Apesar dessa alta ambição, a trajetória da formação (Bildung) é afetada pelas experiências culturais e sociais e pelos movimentos intelectuais que fragilizam suas bases de justificação. Passa, então, a enfrentar seus próprios problemas: tanto os práticos, segundo os quais os sujeitos mantêm formas variadas de dependência dos outros, das paixões e vícios e dos costumes; como os problemas teóricos, expressos nas críticas aos limites do sujeito racional, que embasam o conceito clássico de autonomia, no decorrer dos séculos XIX e XX, pelo movimento intelectual conduzido por Nietzsche, Freud, Foucault, Adorno e Horkheimer, Wittgenstein, entre outros, que denunciam as ilusões do sujeito autônomo. Ou seja, somos subjetivados numa rede de relações da qual não temos controle e não dispomos de plena autonomia para conduzir nossas escolhas, cujo epítome se encontra na afirmação de Freud (1988) de que “o ego não é o senhor de sua própria casa” (p. 153). Nosso comportamento tem motivações que escapam à consciência, não sendo transparente a si mesmo como pressupõe o conceito de autonomia. E há também o crescimento do poder, da vigilância e da violência, que gera o disciplinamento dos corpos e o processo de governamentabilidade, como analisa (Foucault, 1985,1991). Acrescenta-se a essa crítica, persistente há um século, os fenômenos contemporâneos de virtualização e algoritimização decorrentes do avanço das tecnologias digitais e de inteligência artificial que produzem um forte e singular impacto nos processos formativos, na medida em que atuam sobre desejos e vontades, constrangendo nossas escolhas e a autodeterminação para transferi-las à determinação dos algoritmos. Mas, de acordo com os pressupostos modernos, nossas escolhas deveriam ser transparentes para nós, porque são fruto da vontade racional.

Esses fenômenos contemporâneos ainda são difíceis de dimensionar porque, como indica a tradição hegeliana, a coruja de Minerva exige primeiramente que se recolham e sopesem os acontecimentos. Ou seja, impõe-se cautela. No entanto, o fervilhar contínuo de aparecimento de novas tecnologias dificulta o distanciamento necessário para avaliar as repercussões desses fenômenos na constituição da subjetividade.

De forma ampla, pode-se afirmar que, contrariamente ao que supôs a filosofia moderna, o homem que deveria dominar o mundo está mais próximo de se tornar objeto diante das forças da própria técnica que ele criou, pois são forças que o ultrapassam. A virtualização opera hoje com a possibilidade de ser incorporada, ou seja, em vez de se ter acesso apenas ao conteúdo na Internet, pode-se estar nela, por meio de personagens virtuais ou metaverso6. Segundo Carr (2020), o mundo virtual sinaliza que a identidade poderia e deveria ser separada da biologia, uma vez o metaverso cria um corpo virtual, o que é um oximoro. O metaverso propõe um ambiente de interações puramente virtuais, em que há decomposição da espacialidade e de nossos corpos em imagens digitais (Sibilia, 2021). O self torna-se um padrão de dados, sendo uma “construção infinitamente flexível” (Carr, 2020, para. 4), colocando o indivíduo em outro patamar narcísico, numa incansável subjetivação. “Tu podes” passa a ser o novo ordenamento, não havendo limites diante das inúmeras possibilidades de virtualização da própria imagem. Ao mesmo tempo, os sujeitos são manipulados em seus desejos, emoções e preferências pelas técnicas de marketing.

Em artigo recente, Ruiz (2021) investigou as formas de algoritmização que operam na fronteira entre a vida humana e as novas tecnologias, gerando um mundo governado por algoritmos digitais. Tais algoritmos agem por meios de complexos programas matemáticos que apreendem o comportamento dos indivíduos, capturados e direcionados por estratégias “para influenciar condutas, seduzir motivações, induzir comportamentos, dirigir preferências, orientar decisões e, em última instância, conseguir governar o máximo possível o comportamento dos indivíduos; o que Foucault denominou de governamentalização das condutas” (Ruiz, 2021, p. 7).

Esse contexto de digitalização, se não introduz um aspecto novo à crítica, ao menos evidencia as condições de agravamento identificadas pela crítica teórica, que já indicava o sujeito preso à uma rede de relações de poder, que o alienam da autonomia. A capacidade deliberativa e o domínio de si são obliterados virtualmente pela manipulação do desejo de um modo tal que compromete a formação.

O que nos ensina essa experiência?

Neste ponto da argumentação é preciso perguntar o que nos ensina a experiência histórica da formação. Quais expectativas não se cumpriram? O que podemos reter do conceito de autonomia? Diante das críticas à impotência do sujeito e da avassaladora realidade de virtualização, faz sentido projetar a autonomia no horizonte de expectativas da formação? Abdicando da autonomia, o processo formativo perderia uma orientação normativa válida? Há, ainda, um tipo de autonomia possível?

Parece ser incontornável reconhecer que a crítica nos confronta com expectativas inalcançáveis e com um emaranhamento entre autonomia e submissão, o que implica abandonar as fantasias produzidas pelo poder da razão e aprender a lidar com a desilusão da autonomia. Essas constatações, contudo, não impedem de retomar a observação de Gadamer (1993) na busca “pelo significado e o valor relativo” (p. 43) que convém à experiência formativa.

Com efeito, proponho retomar a inspiração hermenêutica de que não é possível educar sem sentido, mas isso não significa buscá-lo em bases transcendentais, cedendo ao endeusamento da razão, mas se dá na própria vida, nos limites gerados pela finitude, na consciência histórica, o que impõe sopesar os conceitos. A autonomia — e sua articulação com a dignidade humana — integra uma tradição normativa que não pode ser anulada por mais doloroso que seja reconhecer a onipotência ilusória do ser racional. Ela permanece como possibilidade de desenvolvimento de si mesmo, de uma personalidade integrada às exigências dos diversos contextos e situações, como também pode operar como um modo de autoproteção do sujeito diante dos danos causados pelas diferentes formas de ferimentos sociais.

Para compreender o significado e o valor relativo de nossa experiência formativa, de modo a projetá-la num horizonte de sentido e expectativa, valho-me do conceito de autonomia descentrada, de Honneth (2009), em substituição ao modelo clássico. Trata-se de uma autonomia reinterpretada que requer “capacidades especiais em relação ao manejo da natureza das pulsões, da organização da própria vida e das exigências morais do ambiente” (p. 286).

Se no modelo clássico, de inspiração kantiana, a autonomia não podia derivar de nenhuma pulsão e de nenhum motivo contingente, a autonomia descentrada opera com o reconhecimento do potencial criativo de impulsos que podem ser expressos na vida cotidiana, cujo acesso se dá por meio da linguagem indicada nas reações afetivas. Isso não significa que os sujeitos estão livres “dos motivos psíquicos que lhe impõem, de maneira inconsciente, reações comportamentais rígidas e forçadas” (Honneth, 2009, p. 287), mas significa que agora é possível “descobrir impulsos de ação sempre novos e inexplorados e convertê-los em material de decisões refletidas” (p. 287). Além disso, conduzir a vida de modo autônomo se caracteriza pela capacidade de integrar as decisões e escolhas numa narrativa, trabalhada reflexivamente e orientada por valores éticos. A herança intelectual do individualismo romântico defende que o indivíduo pode se considerar autônomo mesmo quando dá cumprimento radical às suas pulsões, independentemente de consideração moral dos seus parceiros de interação, como é o caso do hedonista. Certamente atitudes desse tipo geram questionamentos de se o isolacionismo não traria marcas negativas para a relação do sujeito consigo mesmo, pois os integrantes de uma sociedade devem possuir um superego internalizado que, ao ser constantemente lesado, resultaria em sentimento de culpa moral. Isso leva a supor, diz Honneth (2009), que, ao invés da desconsideração ao outro, seria plausível incluir entre as características da pessoa autônoma “a capacidade de referir-se de modo reflexivo às reivindicações morais de seu ambiente social” (p. 289). Na perspectiva kantiana de autonomia, uma pessoa considerada autônoma se guia por princípios morais racionais, isto é, que podem ser universalizáveis, sem deixar-se orientar por inclinações, paixões ou influências externas. Esse ideal moral clássico de autonomia se amplia quando os sujeitos aprendem a familiarizar-se com a multiplicidade de “opções de identidades não esgotadas dentro de si mesmo” (p. 290). Com isso, aprendem também a prestar atenção em situações de emergência de necessidades de outras pessoas na condução de suas vidas. Ou seja, elas devem ser capazes de lidar com algo que escapa a uma visão rígida de universalização. Desse modo,

a ideia normativa de articulação criativa de necessidades obriga também a ampliar o ideal de autonomia moral para uma dimensão de sensibilidade contextual rica em consequências em termos práticos: não pode ser considerado como moralmente autônomo aquele que em seu atuar comunicativo, se orienta estritamente por princípios universalistas, mas sim quem sabe apreciar com responsabilidade tais princípios com participação afetiva e sensibilidade pelas circunstâncias concretas do caso particular. (Honneth, 2009, p. 290)

As críticas que forçam o descentramento da autonomia — esse núcleo forte da problematização a respeito da formação — conduzem a uma reelaboração sustentada por meio de três eixos: a pessoa deve ter capacidade de explorar de modo criativo suas necessidades, apresentar de forma eticamente refletida a totalidade de sua vida e aplicar normas universalistas de modo sensível (Honneth, 2009).

No âmbito desta discussão, creio que o conceito de autonomia, conforme propõe Bieri (2013), traz algumas sutilezas que complementam sua relevância para a formação. Ele propõe a autonomia interior, resultado de uma interpretação da própria dignidade humana do ponto de vista ético e ontológico. A dignidade não é uma propriedade metafísica, mas “um modo determinado de viver a vida humana”, “um padrão de pensar, experimentar e fazer” (p. 12), que tem na autonomia uma de suas múltiplas dimensões. Ou seja, tornar-se autônomo implica em tornar-se digno, o que permite conduzir a vida mais plenamente.

A autonomia interior se refere à capacidade de pensar, querer e sentir — afetos. Enquanto atividade do pensamento, a autonomia busca uma vigilância constante sobre o que se pensa e se diz, pois muito daquilo que soa significativo carece de significado (Bieri, 2013, p. 68). Daí a necessidade de vigilância ao modo de relação com o conhecimento, evitando conteúdos simplificadores, que desconsideram as fontes críticas. Significa também ser cético diante das palavras vazias e discursos superficiais, orientar-se pelas suas convicções, colocá-las à prova e formar opinião própria. Esta dimensão da autonomia interior é o que favorece a confiança do sujeito no seu próprio entendimento contra os enganos das chamadas fake news, tão em voga no mundo virtual e que nos torna servis, facilmente capturados pelas redes sociais.

A autonomia interior refere-se também à capacidade de decidir pela própria vontade, o que pressupõe refletir e sopesar os desejos que orientam as ações. A liberdade de decisão significa, portanto, influenciar nosso próprio querer. Ao direcionarmos autonomamente o querer e o agir, temos “um futuro aberto”, porque mesmo diante de diferentes coerções e compulsões, pode-se continuar buscando a autonomia: “a dignidade da autonomia interior não se vincula ao êxito, mas à consciência da meta e do esforço para atingi-la” (Bieri, 2013, p.73).

Ainda, a autonomia interior se vincula aos afetos, na medida em que se pode questionar se estão adequados a cada situação, quais os motivos verdadeiros ou equivocados de tais afetos. Ou seja, traz a pergunta pelo modo como somos afetados. Posso me perguntar se tem sentido o medo, a raiva ou os ciúmes que sinto, ou se, por meio de uma observação mais atenta, ainda permanecem os motivos para tais emoções. A mudança de julgamento também muda os afetos, pois um medo pode desparecer ao reconhecer que o motivo causador era enganoso. Contudo, às vezes, de forma semelhante à debilidade da vontade, o entendimento desliza impotente pelos afetos, pela falta de controle de determinados medos. Há ainda momentos de explosões incontroláveis diante de certos afetos, que são compreensíveis, na medida em que revelam autenticidade. Entretanto, autenticidade não deve ser identificada com sobrecarga de tensão. O caráter autônomo de uma ação radica no fato de que apenas o próprio sujeito decide se entregar ou não a determinados afetos e apenas uma deliberação a respeito disso pode ser digna; ou seja, ninguém pode deliberar por outro pessoa.

Tanto em Honneth (2009) como em Bieri (2013) a autonomia depende da formação do sujeito como resultado de uma pluralidade de escolhas, de modo a prepará-lo para a exploração criativa de suas necessidades e manejo sensível da moralidade. Não cabe aqui um agir arrogante, mas refletir sobre o que se pensa e se sente a respeito da própria ação moral.

Horizonte de expectativas: uma formação para a sensibilidade ética

No início do texto referi o alerta de Koselleck (2006) de que não se pode deduzir expectativas apenas da experiência, pois é preciso aprender com os erros, não sendo possível uma repetição. Esse é o mesmo alerta de Derrida (1994) quanto à relevância de sopesar aquilo que herdamos:

É preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção... Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar. (Derrida, 1994, p. 33)

Assim, o legado da formação, desafiado pelo reconhecimento das ilusões e pela reformulação do conceito de autonomia, projeta no horizonte de expectativa uma autoeducação, uma criação de si, enquanto autodeterminação, articulada com o desenvolvimento da sensibilidade ética, capaz de atender as diferentes exigências da moralidade.

Uma formação dessa natureza acentua a dimensão ético-estética da educação. A estética, desde Baumgarten, se relaciona com conhecimento obtido pelos sentidos, envolve a imaginação, a sensibilidade, e possibilita, pela sua potência criadora, momentos privilegiados de confronto de nossas crenças, emoções e desejos, num convite para rever preconceitos e enclausuramentos e até a própria identidade.

Criar a si mesmo é uma atitude experimental desenvolvida a partir das contingências históricas, diante das quais não temos total independência, mas que leva em consideração possibilidades de escolhas. Isso nada tem a ver com o culto de si mesmo, com o egoísmo. Ao contrário, a autocriação, o cultivo de si, constitui um demorado processo de autoavaliação e autoconhecimento, que pressupõe levar adiante a luta entre os vícios e as virtudes, enfrentando com honestidade as convicções mais arraigadas, com capacidade de raciocínio crítico e consciência dos limites que a situação impõe.

A reinterpretação do conceito de autonomia projeta outro horizonte para a formação, que demanda a articulação entre sensibilidade e imaginação, a ser levada adiante pela experiência estética, que abre espaços formativos contra os processos de homogeneização e nivelamento. Ou seja, essa abertura criativa da estética é o ponto de clivagem que permite manter a autonomia no horizonte formativo.

A relevância da experiência estética para a formação repousa especialmente na sua capacidade de agenciar os sentidos, produzir novas modelagens e percepções a respeito de seu objeto, transformando-o e deixando transparecer seus aspectos indeterminados. Como observa Seel (2010), a estética “oferece um aporte irrenunciável, pois revela uma dimensão da realidade que se subtrai à determinação por meio do conhecimento, mas, ao mesmo tempo, é um aspecto da realidade que pode ser conhecido” (p. 37).

Desde Baumgarten, a estética volta-se para o caráter produtivo e criador da imaginação e do sensível, mitigando o que seria visto como meramente irracional e destrutivo. Uma ação ética ajustada às exigências de uma autonomia descentrada requer sensibilidade estética para avaliar os afetos e perceber as crenças envolvidos nas decisões. Nesse aspecto, a experiência estética faz aparecer as possibilidades desconhecidas, não aproveitadas pela sua invisibilidade (Seel, 2010). Assim, abre espaço para apresentar as múltiplas alternativas de ação existentes ou ainda inexistentes, as quais não teríamos acesso de outro modo. A consciência dessas possibilidades inexploradas, não preconcebidas em modelos estruturados de comportamentos, do radicalmente indeterminado, tem um efeito liberador, na medida em que ampliam o autoconhecimento e a consequente capacidade de escolha, favorecendo o manejo das próprias emoções e desejos diante das incertezas da vida, algo decisivo para formação de uma personalidade autônoma.

Exemplifico a possibilidade da experiência estética obtida pela obra literária, que tem condições especiais para narrar a complexidade e as dificuldades envolvidas na deliberação moral; “uma aventura da personalidade” (Nussbaum, 1992, p. 142), que a narrativa literária mostra com todas as “aterradoras expectativas e entre espantosos mistérios” (p. 142). Isso confere “beleza e riqueza” à ação narrada que o conhecimento filosófico tradicional não consegue transmitir, o que coincide com a constatação de Murdoch (2013), ao reconhecer que a literatura é “uma educação sobre como imaginar e entender ações humanas” (p. 51). A arte, prossegue a filósofa, “é a mais educativa de todas as atividades humanas e um lugar em que a natureza da moralidade pode ser vista” (p. 120). Por meio de seu conhecimento intuitivo, ela mobiliza intensamente emoções e sentimentos, conduzindo a um conhecimento mais profundo de nossa natureza, fazendo entender certas questões existenciais de modo mais efetivo do que conhecer princípios teóricos. Ela não ordena uma norma para a ação, mas oferece elementos para avaliar valores e crenças envolvidos no agir.

Pode-se exemplificar a força do texto literário para a compreensão da ação moral com a obra A taça de ouro (The Golden Bowl) (2009), último romance de Henry James, publicado nos Estados Unidos, em ١٩٠٤. É considerado por Nussbaum (1992) um romance filosófico, na medida em que permite apreciar como James trabalha “os problemas sobre a ambição moral, o moralismo e o caráter de nossa relação mundana com o valor” (p. 126), oferecendo assim “uma importante contribuição à filosofia moral” (p. 126).

O romance narra a história de dois casais e a trama se desenvolve sobre a queda de um mundo inocente e idealista, provocada pelo adultério e a tomada de consciência da perda da situação idílica. A taça de ouro, referida no título da obra, está trincada e, portanto, imperfeita, o que passa a se constituir numa metáfora da vida que contém imperfeições e fragilidades, mas a protagonista — Maggie — quer a taça perfeita, sem nenhuma rachadura, valiosa como a dureza do cristal. O romance trata do mundo decaído e da impossibilidade de permanecer na inocência, de manter a fidelidade perfeita aos ideais por toda vida, pois as próprias escolhas acarretam rupturas. A saída dessa inocência implica a tomada de consciência da realidade. A percepção da verdade, que conduz às decisões sobre como viver bem, é apresentada segundo o ponto de vista de cada personagem, que são muito distintos entre si. A experiência estética produzida pelo texto literário deixa aparecer as sutilezas e interferências que atuam na deliberação moral, para além de uma questão de vontade e, desse modo, auxiliam a explorar de modo criativo os questionamentos éticos.

É notável o modo como James (2003) faz a reflexão sobre os emaranhados e misteriosos caminhos da vida dos personagens e os sentimentos envolvidos, mostrando como cada personagem responde à confusão do mundo. A decisão ética se movimenta sob o conflito de diversos pontos de vista, evidenciando as ambiguidades que acompanham toda a decisão. James (2003) revela a concretude dos personagens como se fosse um pintor impressionista, onde tudo está ao serviço de “uma visão espiritual e estética” (p. 290).

A formação voltada para a autodeterminação deve possibilitar trabalhar as emoções, conhecer as razões do agir que alienam o sujeito de si mesmo ou conhecer aquelas razões que o fazem mais livre, mais autônomo. Nessa medida, aquele que se educa se constitui espiritualmente num “processo contínuo de autoavaliação e suporta a insegurança que esse processo provoca” (Bieri, 2012, p. 237). Uma educação ético-estética, especialmente pelas possibilidades contidas no estético, amplia os recursos simbólicos e a imaginação moral que nos capacitem a fazer conjeturas, abrir-se ao outro, manejar de forma sensível a moralidade e acolher formas de vida distintas, ampliando o horizonte interpretativo, numa infindável tarefa formativa.

Retomando a palavra do poeta

Na abertura deste texto, a aspereza poética das palavras de Neto (2008), que denuncia a educação pela pedra, foi um convite à interpretação. A força da metáfora evoca, contra qualquer ilusão idealista, qualquer consolo enganador, a verdade ética de que numa educação assim falta algo, há uma deficiência de ser que não chega à dignidade do homem, ao modo de ser próprio do homem. A metáfora libera o potencial de sentido que dimensiona o risco de uma educação petrificada ao afetar o pensar, o sentir e o agir — as expressões da autonomia e da dignidade. Até a realidade virtual, cuja fluidez e volatilidade encontram-se tão em oposição à concreta dureza da pedra, permanece à serviço de uma educação que petrifica as emoções, limita a inteligência criativa, não mais pela “carnadura concreta”, mas pelo excesso de estímulos, prejudicando a reflexão que sustenta um processo autônomo de autodeterminação. A denúncia do poeta desnuda a educação que fecha suas possibilidades. O que fazer para que a força esmagadora da pedra não bloqueie o caminho, não impeça a visão de um horizonte de expectativas, que mesmo confrontado com incertezas, pode recolher sentido da experiência, são os desafios da formação humana que se renovam a cada tempo histórico.

Referências

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1 No Brasil, houve a retirada da Filosofia e Sociologia, pela Reforma do Ensino Médio/ Lei nº 13.415 de 2017, justamente em atendimento às necessidades econômicas, que privilegiam áreas do conhecimento de aplicação imediata à profissionalização. Nos Estados Unidos, Nussbaum denunciou o perigo da retirada das humanidades para a Universidade, na obra Sin fines de lucro (2010). Stederoth (2020) indica que a sistemática investida das reformas educacionais na Alemanha “parte sempre de um princípio, o de que o ensino de competências imediatamente utilizáveis é o caminho mais apropriado para a satisfação das necessidades econômicas; este pressuposto está baseado em um modo de pensar mecânico” (p. 12). Ver também Oelkers (2018).

2 Carr, no livro A geração superficial: o que a Internet está fazendo com nosso cérebro (2011), destaca que, apesar dos benefícios promovidos pela Internet, há um preço a pagar, especificamente em relação às capacidades intelectuais: “As ferramentas da mente amplificam e por sua vez amortecem as mais íntimas, as mais humanas das nossas capacidades naturais — aquelas da razão, percepção, memória e emoção” (p. 225). Entre os estudos empíricos apresentados no livro, o estudo clínico na área de psicologia de Van Nimwegen indica que quanto mais dispensamos tarefas cognitivas simples e o uso da memória — pelo emprego de software — mais reduzimos a capacidade do cérebro para criar estruturas estáveis de comportamentos — esquemas — que possam vir a ser aplicadas em outras situações.

3 Neste texto usarei os termos educação e formação como sinônimos.

4 No âmbito desta argumentação, o interesse pelo conceito de horizonte de expectativa, proposto por Koselleck (2006), se relaciona à ideia de pertencimento a uma tradição, como a hermenêutica filosófica de Gadamer. Para compreender a ideia normativa de autonomia é preciso considerar seu enraizamento histórico, os equívocos e seu possível valor relativo.

5 A autonomia é um conceito moral baseado na vontade de sujeitos racionais, conforme Kant (1974) o apresenta da Fundamentação da metafísica dos costumes: “Autonomia da vontade é a qualidade da vontade, pela qual ela é uma lei para si mesma (independentemente de toda a qualidade dos objetos do querer)” (p. 74). Esse conceito e seu correlato de autodeterminação se constituem num importante ideal que orienta o projeto iluminista e o idealismo alemão, na perspectiva de libertar o homem de todas as determinações externas e é assumido como uma orientação fundamental do projeto educativo moderno. A autonomia tem relação recíproca com os conceitos de dignidade e de liberdade. A lei prática incondicionada é denominada por Kant imperativo categórico, a forma necessária que a lei assume para um ser racional. Sua origem procede da autonomia da vontade, não podendo derivar de nenhuma peculiaridade da natureza humana e de nenhum motivo contingente.

6 O metaverso é uma realidade virtual paralela, na qual uma pessoa pode ter uma experiência de imersão. Embora não seja real, busca oferecer uma sensação de realidade. O termo metaverso apareceu primeiramente no romance distópico Snow Crash de Neal Stephenson, em 1995, traduzido pela Editora Aleph em 2015. De acordo Sibilia (2021), a obra “apresentava um mundo cinza e violento, povoado por criaturas viciadas em seus brinquedos tecnológicos e dominado por corporações gigantescas que, na época, consideravam-se puramente fictícias. Por isso eu diria que se trata, sim, de algo novo” (p. 18). No metaverso, segundo Carr (2021),

nada acontece que não seja computável. Isso também significa que, supondo que os computadores que fazem a computação estejam em mãos privadas, nada acontece que não seja uma transação de mercado, um momento de monetização, seja diretamente por meio de troca de dinheiro ou indiretamente por meio de captura de dados. Com o metaverso, o capital subsume a realidade” (para. 3).