ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603
2023, 14(38), e15070
https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n38.2023.15070
Neoliberalismo e governamentalidade de crises no pós-fascismo: que pode a educação?
Alexandre Filordi de Carvalho 1
Universidade Federal de Lavras.
afilordi@gmail.com
Resum0
O objetivo do artigo é analisar a dupla relação entre neoliberalismo — concebido no registro de uma governamentalidade gestora de crises funcionais no âmbito socioeconômico-político — e a emersão do pós-fascismo como resposta à desorientação neoliberal. A hipótese da análise sustenta que, na atualidade, o pós-fascismo tornou-se um dos principais modos de produção de subjetividade contemporâneos. Para tanto, privilegia-se a revisão bibliográfica que fundamenta a crise como meio de funcionamento da governamentalidade neoliberal, evidenciando que o pós-fascismo agencia a própria manutenção de sucessivas crises. Como resultado, processa-se a seguinte problematização: que tipos de estratégias são requeridas, minimamente, para se fazer da educação um laboratório de ensaio contra a conjuntura pós-fascista e, por extensão, neoliberal?
Palavras-chave: neoliberalismo, crise, pós-fascismo, governamentalidade, educação
Neoliberalismo y gubernamentalidad de crisis en el posfascismo: ¿qué puede hacer la educación?
Resumen
El objetivo del artículo es analizar la doble relación entre el neoliberalismo ―concebido en el registro de una gubernamentalidad que gestiona crisis funcionales en el ámbito socioeconómico-político― y el surgimiento del posfascismo como respuesta a la desorientación neoliberal. La hipótesis de análisis sostiene que, en la actualidad, el posfascismo se ha convertido en uno de los principales modos de producción de subjetividad contemporáneos. Para lograrlo, se privilegia una revisión bibliográfica que fundamenta la crisis como forma de funcionamiento de la gubernamentalidad neoliberal, la cual evidencia que el posfascismo promueve el mantenimiento mismo de las sucesivas crisis. Como resultado, se desarrolla la siguiente problematización: ¿qué tipos de estrategias se requieren mínimamente para hacer de la educación un laboratorio de experimentaciones frente a la coyuntura posfascista y, por extensión, neoliberal?
Palabras clave: neoliberalismo, crisis, posfascismo, gubernamentalidad, educación
Neoliberalism and crisis governmentality under post-fascism: what can education do?
Abstract
The aim of this article is to analyze the double relationship between neoliberalism—conceived in the register of a governmentality that manages functional crises in the socio-economic-political scope—and the emergence of post-fascism as a response to neoliberal disorientation. The hypothesis to analyze states that, nowadays, post-fascism has become one of the contemporary main modes of production of subjectivity. For this purpose, a bibliographic review that proposes the crisis as a way of functioning of neoliberal governmentality is privileged, showing that post-fascism promotes the very maintenance of successive crises. As a result, the following problematization is developed: what types of strategies are minimally required to make education an experiment laboratory against the post-fascist and, by extension, neoliberal conjuncture?
Keywords: neoliberalism, crisis, post-fascism, governmentality, education
A crise... a crise. Tudo vem dela (Guattari, 2009, p. 33)1.
O objetivo deste artigo é analisar a dupla relação entre neoliberalismo — concebido no registro de uma governamentalidade gestora de crises funcionais no âmbito socioeconômico-político — e a emersão do pós-fascismo como resposta à desorientação neoliberal.
A hipótese da análise sustenta que, na atualidade, o pós-fascismo, com suas complexas estratégias e conexões políticas de valores conservadores, justificados por discursividades e ações, inclusive violentas, da extrema direita, tornou-se um dos principais modos de produção de subjetividade contemporâneos. Como será mostrado, a normalização macro e micropolítica de princípios da extrema direita são correlatos da produção de subjetividades. Supomos estar no entendimento desta dimensão a compreensão dos ataques às orientações e às sustentações políticas, ademais também cotidianas, voltadas para a alteridade e os sujeitos atravessados por demandas precisas e singulares: povos originários, afrodescendentes, imigrantes, corpos LGBT, mulheres, moradores de comunidades, povos ribeirinhos; mas também ativistas, partidos de esquerda, intelectuais, acadêmicos, jornalistas etc.
Para tanto, partiremos da compreensão de crise, proposta por Guattari (2009; Guattari & Rolnik, 2005), para enxergar nela o próprio mecanismo de funcionamento do neoliberalismo. Em seguida, por intermédio das investigações do historiador italiano Enzo Traverso (2021), definiremos o que é o pós-fascismo, seu modo de atuar e as razões pelas quais se apresenta com credenciais úteis ao neoliberalismo.
Ao cabo, a questão de fundo a nos interessar deflagrar é esta: sem dúvida as experiências educativas são diretamente afetadas pela urdidura neoliberalismo e pós-fascismo. Que possibilidades, contudo, estariam ao alcance das experiências educativas para resistirem e intervirem na produção de subjetividades modelares e aderentes ao arcabouço do contexto pós-fascista? Que tipos de estratégias são requeridas, minimamente, para se fazer da educação um laboratório de ensaio contra a conjuntura pós-fascista e, por extensão, neoliberal?
O neoliberalismo: governamentalidade de crises
Recepcionada por intermédio do pensamento de Foucault (2004, 2013), a governamentalidade, de modo sintético, concerne às amplas e complexas maneiras pelas quais, no Ocidente, as condutas são conduzidas, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, ou seja, populacional. A ideia de conduzir as condutas reforça a virtualidade das estratégias de governamentalidade. Em outros termos, as condutas são presumidas por antecipação, conforme o alongamento dos objetivos deflagrados na busca por eficiência de respostas satisfatórias nas margens estabelecidas como políticas condutivas. Nesse nível, a governamentalidade se difunde em toda e qualquer experiência a visar condutas: “a função fundamental da governamentalidade é prevenir, neutralizar, desfazer a ‘revolução’; ela é, portanto, uma política do a-orgânico, isto é, uma política do possível e do impossível” (Lazzarato, 2019, p. 147).
Seria bastante exato afirmar que a governamentalidade atua reunindo feixes de relações de poderes e de saberes específicos para convergi-los ao objetivo de se decidir o plano de transformação do impossível em possível inescapável. Os possíveis não contemplados, os outros possíveis, são combatidos pelas próprias armaduras de relações de poder da governamentalidade e reduzidos às condições desqualificadoras pelas ordens do saber.
O neoliberalismo se delineia inconteste em tal cenário. Arrimado por instituições de alcance global e capazes de penetrar nas tomadas de decisões das políticas econômicas e de Estado, por elas, o neoliberalismo desenha os contornos funcionais das possiblidades que devem ser assumidas como retrato reduplicado do perfil de sua agenda. Do Banco Mundial ao Fundo Monetário Internacional, passando pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), até às think tanks de múltiplas instituições financeiras e empresas globais, o que temos são tentáculos com ventosas potentes, atuando nas concepções, gestações, decisões e execuções de projetos sociais, educacionais, culturais, partidários e dos próprios meandros da política partidária. A governamentalidade neoliberal, assim, se dispõe como religião monoteísta, dando combate àquilo que dela se desvia. Benjamin (2019) estaria certo, afinal, pois como usurpação do capitalismo, o neoliberalismo não aceita nada fora dos horizontes de seus dogmas, pressupostos e convergências de suas finalidades e veneração.
Mas qual estratégia a governamentalidade neoliberal privilegia para conduzir as condutas? O que estaria em questão como consequência, uma vez que, para se conduzir as condutas, são necessárias produções de subjetividades de respostas aderentes e imediatas às intenções e aos objetivos neoliberais? Nos ocuparemos desta última indagação na sessão subsequente.
Quanto a primeira indagação, a resposta é: a estratégia da governamentalidade neoliberal para conduzir as condutas está na deflagração, no uso e na gestão de crises. A animar a vida por crises está para o neoliberalismo assim como o ar está para nós. Klein (2007), Kinzer (2006) e Chamayou (2020) sustentam que as crises podem ser ovuladas com especificidades próprias, como golpes políticos; podem ser aproveitadas propiciamente, a partir de calamidades naturais ou pandêmicas; ou, até mesmo, podem ser planificadas artificialmente, visando à maximização de lucros, à concessão de terras, à exploração de capital humano e sucessivamente. Nesse arcabouço, a governamentalidade neoliberal pode ser definida como a arte de conduzir as condutas por intermédio da gestação, administração e aplicação de crises. No mundo economicamente codependente das políticas neoliberais, as crises funcionam como doença autoimune. E sua eficácia está no fato de se fazer crer que a crise poderia ser pior sem o neoliberalismo, ou melhor, que não há alternativa ao neoliberalismo.
Proteger a vida, a propriedade, a liberdade e a competição são os mantras benevolentes do neoliberalismo, porém, sob a ocultação do preço que a vida tem de pagar para tanto. Inverter a lógica entre benefícios e benificiários é importante, justamente para se fazer acreditar que a crise engendra as condições as mais propícias para se fazer de si mesmo um autoempreendedor. Focalizar as energias da vida em si mesmo, nesse plano, é, de saída, lançar o outro para fora dos circuitos de convivência e de mutualidade política e relacional. A autorreferencialidade é disfarce funcional da precarização dos laços sociais e, por extensão, das possibilidades de associação humana em planos coletivos e não obstinados com lucros e divisas.
Ora, quando Guattari (2009) afirmou que tudo vem da crise, salientava a transversalidade do seu caráter. Não há crise econômica que não aporte, por exemplo, impacto na vida psíquica, afetiva, emocional, sexual e nos vínculos humanos. Tampouco existe crise meramente individual, ilhada na experiência singular, sem que se transborde para o trabalho, os círculos de convivência, as maneiras de perspectivar a vida etc. Quando mencionamos a crise ambiental, uma série de componentes das condições existenciais também é afetada (Guattari, 2015). Assim, a crise pode ser considerada um paradigma de intrusão nos horizontes dos possíveis, em todos os termos. Mas como a governamentalidade neoliberal “decide o que é possível e o que é impossível” (Lazzarato, 2019, p. 147), a crise é despotencializada como invenção, criação e intervenção na busca de constituição de territórios existenciais singulares. Planificar a crise é bloquear tudo o que se pode dela advir, ou seja, anunciação de devires, insurreições, questionamentos e derivas contra os arranjos do establishment.
O neoliberalismo privilegia a maximização de lucros e rendimentos altamente especulativos, por sua vez, concentrado nas mãos de uma parcela ínfima de corporações globais, com perfis de monopólio de circulação de riqueza abstrata, isto é, não redundando necessariamente em forma produtiva. Porém, na valoração de valores abstratos em bolsas de mercado, suas estratégias para garantir tais mecanismos oscilam com grande velocidade. A crise, assim, é um sintoma da aceleração mutacional dos interesses concentrados nas forças de dominação de como o lucro é gestado. A precarização das condições de trabalho globais (Standing, 2017) emana daí, uma vez ser necessário reduzir a rede de proteção social e custos pela ordem discursiva da governança empresarial, garantindo sempre a imagem da empresa lucrativa, cujo parâmetro é a valorização de sua ação nas bolsas de valores. O Estado mínimo exigido pelo neoliberalismo demanda, de um lado, assegurar condições microscópicas para que as pessoas se mantenham no precariado e, de outro lado, reduzir-se a um mediador lucrativo para os parâmetros exigentes das empresas. O Estado contemporâneo neoliberal é, portanto, um espelhamento funcional e servil: reduz-se para permitir a concentração do capital. Em tal contexto, faz sentido a forma pela qual Guattari (2009) definiu crise:
Ela resulta, por uma grande parte, de um desequilíbrio exponencial de relações de forças entre os exploradores e os explorados, que a induz, em escala planetária, a um espetacular crescimento de poder dos conjuntos de formações capitalísticas, tanto privados quanto estatais, paraestatais ou transnacionais, resultando em uma colossal acumulação do capital, escapando aos árbitros políticos anteriores, aos compromissos com a economia social dos países desenvolvidos e obliterando dramaticamente as possibilidades de sobrevivência dos países mais pobres daqueles em desenvolvimento (p. 33).
Ora, é acelerando a dissolução dos referenciais políticos de direito e da democracria, em função do imediatismo da acumulação do capital, que a crise é gestada pelo neoliberalismo. A consequência imediata é a dissolução dos referenciais jurídicos e legais em torno da aplicação de recursos públicos na saúde, educação, segurança e seguridade sociais. A retirada dos parâmetros sociais de segurança faz parte do enervamento do dispositivo de seguridade neoliberal, quer dizer, gerar insegurança social é fundamental para a orquestração de subjetividades maleáveis à adaptação imposta. Na civilização do rendimento, como presume Lazzarato (2019), uma produção de subjetividade para o mercado precisa ser produzida. Mas na mesma proporção da dissolução dos parâmetros políticos, também se dissolvem os territórios subjetivos. Logo, “o ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Seus territórios existenciais originários — corpos, espaço doméstico, clã, culto — não são mais arrimados a um solo permanente, mas se ligam doravante a um mundo de representações precárias e em perpétuo movimento” (Guattari, 2013, p. 31).
A dimensão mais perversa da governamentalidade — perversa pois desvirtua a possibilidade das condições de segurança dos territórios existenciais e suas finalidades planejadas — encontra-se no fato de dissolver condições psíquicas, afetivas, emotivas, racionais, políticas, relacionais e, não menos importante, de subsistência seguras das pessoas, em detrimento das crises que gera. A crise como condição lucrativa no neoliberalismo — com seu “fanatismo de economia de mercado, mercado unívoco, mercado das redundâncias de poder capitalísticas” (Guattari, 1992, p. 147) — fratura decisivamente os referenciais políticos dos pressupostos democráticos e consolidados constitucionalmente. Para tanto, a intervenção da governamentalidade neoliberal no Estado de Direito se insinua a partir de mecanismos de exceção dos mais variados níveis e ordens. São comuns o uso de medidas provisórias, decretos, suspensão de direitos, arbitrariedades dos poderes de Estado — causando desequilíbrio na balança das funções do executivo, legislativo e judiciário —, a criação de projetos de leis para beneficiar oligopólios empresariais, sucateando as riquezas dos territórios nacionais etc. Em uma ideia: “crises são, em uma via, como zonas-lacunares de políticas de democracias-livres quando se é necessário consentir e se ter consenso quando não parecia ser possível se aplicar algo” (Klein, 2007, p. 175).
Não há medidas nem parâmetros éticos nas crises da governamentalidade neoliberal. É inegável que o impacto causado por elas atinge frontalmente os territórios existenciais. E modificando-os em profundidade, sempre de modo imediato, uma série de desorientação se deflagra. Acrescente-se que, nesse caso, “a crise mundial em que estamos mergulhados é uma crise dos modos de semiotização do capitalismo, não só em nível das semióticas econômicas, mas de todas as semióticas de controle e de modelização da produção de subjetividade” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 218). Em outras palavras, é todo um conjunto de rupturas e fragmentação de modelos de vida, de sensibilidade, de relações sociais, de trabalho, de crenças, de julgamentos, de valorização ética, de imaginação política e sucessivamente que são impactados.
Os embriões das crises da governamentalidade neoliberal são capazes de fazer do zoon politikón um animal à deriva, sem horizontes constituídos por princípios teleológicos capazes de lhe permitir a chegar em algum lugar. Carvalho (2020a) chegou a denominar de Homo friabilis esse ser fragmentado, interposto entre si mesmo: o outro e o mundo como caco incapaz de reconstituir uma subjetividade singular e potencialmente segura de um projeto existencial. Em tal contexto, destituído de segurança, o outro precisa ser situado como o responsável imediato e a ameaça mais próxima a ser combatida, pois atravessado pela ilusão meritocrática, tomando sobre si mesmo sua subjetividade como matéria prima unilateral, é vedado ao sujeito reconhecer seus limites, falhas e impossibilidades de sucesso. Não é à toa que tais aspectos coincidem com a cultura da pós-verdade, da manipulação das informações, da descrença na ciência, da assunção da política de extrema direita e da invenção de inimigos de toda ordem.
Em cena entram as “ilusões partilhadas”, conforme sustenta Ab’Sáber (2019), dando lugar à busca por
Restauração do mito perdido de um tempo melhor, em que o sofrimento social pessoal era bem compensado por ligações sociais mágicas e protetoras, no registro das pulsões básicas de garantia da vida, no caso brasileiro, o da agregação ao senhorio originário, de concentração total de poder (p. 136).
Entende-se, assim, por que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, de extrema direita, precisa ser aclamado como “mito”; ou por que a autoilusão passa a ser moeda garantidora de uma realidade inexistente; ou ainda, por que “o mercado mundial, especialmente com o neoliberalismo, só integra diferenciando através de técnicas racistas, segregacionistas, sexistas; só homogeneíza aprofundando as desigualdades; só uniformiza acentuando as ‘guerras’ entre Estados, as guerras de classe, de sexo e de raça” (Lazzarato, 2019, p. 63). Daí o lugar privilegiado que os nacionalismos populistas, alimentando a xenofobia e os identitarismos fóbicos, ocupam no neoliberalismo. E é precisamente nesse plano que o pós-fascismo emerge como avalista da governamentalidade neoliberal de crises, porque, nele, a crise se especializa e se dissemina injetando, como veremos a seguir, o que gostaria de denominar por subjetividades endireitadas, isto é, extremas, do ponto de vista de estarem preparadas para ser incensadas no altar das ilusões partilhadas das próprias crises.
Funções do pós-fascismo nas crises neoliberais
Em 1936, Guérin (2021) publicou Fascismo e grande capital, destrinchando a emersão do fascismo que se disseminava em formas políticas organizadas na Itália, Espanha e na conjuntura nazista alemã. Paralelamente, buscava definir o próprio fascismo, defendendo a tese de que o fascismo foi uma resposta pequeno-burguesa e de classe média, ambas concertadas, naquela conjuntura, pela grande burguesia e os detentores do capital. Tratava-se de se contrapor ao medo da expansão socialista e, assim, assegurar a hegemonia política na defesa do médio e do grande capital.
Entretanto, para Guérin (2021), enquanto houver hegemonia do capital, “o antifascismo é ilusório e frágil” (p. 320). A sombra do fascismo continuaria a ser, então, projetada, conquanto “seus tapeadores agarram-se à canoa furada da democracia burguesa e dão sorrisinhos aos grupos capitalistas ‘menos reacionários’, para se precaver contra os ‘mais reacionários’” (p. 320).
Enquanto o fascismo se organizava para ser uma alternativa totalizante ao socialismo e marcadamente circunscrita a um modo de produção clássico nos moldes do capitalismo —sobretudo em uma “época de forte intervencionismo estatal na economia” e de “capitalismo fordista, da linha de produção e da cultura de massa” (Traverso, 2021, p. 41) —, em tempos presentes, contudo, a dinâmica demanda outra análise, pois as relações com o capitalismo são de ordens distintas. Na atualidade, situamo-nos na “era do neoliberalismo, do capitalismo financeiro, do individualismo competitivo e da precariedade endêmica. Em vez de mobilizar massas, atrai(se) uma massa de indivíduos atomizados, de consumidores empobrecidos e isolados” (Traverso, 2021, p. 41).
Apesar disso, duas lições emergem do fascismo histórico e são persistentes no que vem a ser o pós-fascismo. Em primeiro lugar, a democracia e as orientações coletivas pautadas por respeito à condição humana podem ser facilmente destruídas a partir de dentro da democracia. Em segundo lugar, os “sorrisinhos aos grupos capitalistas” jamais cessaram de ocorrer como fascinação projetada sobre o apelo do fetiche das riquezas e, por extensão, reduzindo a experiência democrática aos interesses dos especuladores financistas do neoliberalismo, uma vez que a concentração da riqueza se tornou mais aviltante. Os financistas são os novos “tapeadores” da hegemonia do capital, incensando o ideário da meritocracia e do individualismo competitivo. Com efeito, qualquer recurso é válido para se criar cortinas de fumaça em relação às distorções do neoliberalismo. E o autoengano se realiza na fantasia da autopromoção de si mesmo, donde ninguém pode falhar. Para tanto, como veremos, as pautas da extrema-direita são de grande valia. Ademais, os financistas também são os responsáveis por parasitar a governamentalidade neoliberal com intenções de desvirtuar os propósitos democráticos de larga escala, pautados pela inclusão e a segurança social.
A essa altura, “o governo foi substituído por governança, o resultado de uma financeirização da política que transformou o Estado em uma ferramenta que incorpora e dissemina a razão neoliberal” (Traverso, 2021, p. 23). Não obstante, a governança é o fiel da balança das crises instaladas na governamentalidade neoliberal, donde a suposição de contínuo aprimoramento na eficiência, previsibilidade e calculabilidade da gestão, seguramente, tendo por parâmetro a gestão financeira. Por exemplo, a redução das experiências educativas coladas às demandas de índices de avaliações internacionais como o PISA — orquestrado pela OCDE — converge para a governança pautada por pressões da financeirização especulativa. Conforme as respostas esperadas se distanciam da planificação dos índices demandados pela governança neoliberal, ataca-se a educação pública alegando a sua insuficiência. Assim, justificam-se reduções e cortes orçamentários pelos investimentos públicos de larga escala para se defender a privatização da própria educação. Não menos importante, criam-se enredos ideológicos extremos alegando desvio de função formativa da escola: o movimento Escola Sem Partido, o combate às educações de gênero, o acumpliciamento do poder militar na composição de Escolas Cívico-Militares e a Base Nacional Comum Curricular — planificando e impondo os mesmos circuitos de competências e habilidades em função da precarização do trabalho (Carvalho, 2020b) — são expressões marcantes desse cenário. Mas o essencial é que tudo isso é caudatário do contexto histórico pós-fascista que atravessa a contemporaneidade. Busquemos compreender tal aspecto.
Em setembro de 2022, Giorgia Meloni, do partido de extrema-direita Irmãos da Itália, com loas declaradas ao fascismo, foi eleita chefe do governo italiano. Com agenda declaradamente xenófoba, contra os direitos LGBT, o aborto e a imigração, e defendendo o lema “Deus, pátria, família”, herança das ditaduras de Salazar e de Franco, ela é espécie de estrela nova na constelação da onda de conservadorismo que atravessa o globo. Ela se soma a Bolsonaro, no Brasil; aos Le Pen, na França; ao Jobbik e a Viktor Orbán, na Hungria; ao trumpismo estadunidense; ao Partido Nacionalista na Eslováquia; enfim, a todos os partidos de extrema direita, nacionalistas e xenófobos que governam na União Europeia: Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Polônia e Suécia. Como afirma Traverso (2021), “o surgimento da direita radical é uma das mais evidentes características de nosso momento histórico”. Em todos esses casos, o que se pauta são:
Traverso (2021) reservou para esse amplo e complexo cenário a concepção de pós-fascismo, o qual se distancia do fascismo pelo fato de se imiscuir em várias frentes da governamentalidade neoliberal e não ser marcadamente totalizante, no sentido de querer apresentar uma totalidade política substituta de outra. Para o historiador italiano, as novas formas da extrema direita compõem fenômenos heterogêneos e ativados por múltiplas facetas conforme interesses privados peculiares. Ainda assim, “o pós-fascismo pertence a um regime particular de historicidade — começo do século XXI —, o que explica seu conteúdo ideológico errático, instável e contraditório, no qual se misturam filosofias políticas antinômicas” (p. 18).
O pós-fascismo emergiu como resposta dramática à desorientação neoliberal. A chave analítica de Deleuze e Guattari (2010) em O anti-Édipo é salutar nessa compreensão. A perda acelerada dos territórios existenciais pelo capitalismo, como já previam, deflagrou a busca por recodificações de subjetividades desejantes de segurança. Foi assim que puderem afirmar que o fascismo foi desejado e que, “dentro do capitalismo, o Estado fascista foi, sem dúvida, a mais fantástica tentativa de reterritorialização econômica e política” (p. 342).
Entretanto, o mesmo pode ser afirmado acerca do pós-fascismo. O importante é se ter ciência do funcionamento do mecanismo de captura que a reterritorialização capitalista empreende: “a produção social repressiva se faz substituir por crenças; aquela pela qual a produção desejante recalcada é substituída por representações” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 343). Crenças e representações são justamente os cavalos de Tróia do pós-fascismo na governamentalidade neoliberal. Ambos projetam, “numa suposta maldade que lhe estaria sendo endereçada de fora [ao sujeito], o que impregna sua angústia de sensações paranoides, ódio e ressentimento” (Rolnik, 2018, p. 70).
Nesse caldo de crenças e representações, o pós-fascismo abrange três patamares: (1) o identitarismo como representação majoritária a ser defendida; (2) a impolítica como estratégia de dissolução do lugar das ideias e das marcas democráticas republicanas, voltadas para o convívio com alteridade, cedendo lugar à parasitagem oportunista dos poderes públicos; e (3) crenças funcionando como mistificação ou “alucinose”, ou seja, “uma distorção efetiva da capacidade de pensar fundada na necessidade de saturar a realidade com a desejos que não suportam frustração” (Ab’Sáber, 2019, p. 129), elemento vital ao ódio e na criação de inimigos imaginários. Nesse arcabouço, sintetiza Traverso (2021):
O “povo mau” — os imigrantes, os mulçumanos, os negros dos subúrbios, as mulheres de véu, os viciados e os marginais — se juntou aos membros das classes que adotaram costumes liberais: feministas, gays, antirracistas, ambientalistas e defensores dos direitos dos imigrantes [ou diretos humanos]. Finalmente, as “boas” pessoas, na imaginação pós-fascista são nacionalistas, antifeministas, homofóbicas, xenofóbicas e nutrem uma clara hostilidade contra a ecologia, a arte moderna e o intelectualismo. (p. 81)
Salta aos olhos que o identitarismo é resposta sensível à majoração de valor estimado para ser aderente ao que a governamentalidade neoliberal vai imprimindo como “bom”. A invenção dos papéis de identificação, nesse nível, serve para controlar e reconhecer as subjetividades inclinadas à adesão ou não. Cooper (2019), ao analisar os “valores de família” interpostos entre neoliberalismo e conservadorismo, evidenciou que toda ditadura financeira exige uma ditadura moral. Os valores da “boa” família advieram, desde os anos de 1960, para amalgamar as estratégias de economia dos gastos públicos. O casamento monogâmico, por exemplo, servia como plataforma de higienização moral contra doenças sexualmente transmissíveis, vícios, jogatinas, comportamentos de riscos etc.; também era foco de ajuntamento de salários, cuidado mútuo, educação dos filhos, zelo dos espaços de convivência etc. A “boa” família era um investimento importante para a redução dos dispêndios do Estado. O neoliberalismo sempre foi conservador por concepção e familiar por finalidade. Soma-se a isso o fato de ser a fatia bilionária neoliberal os promotores ideológicos desses mesmos valores, conforme mostrou Mayer (2017) em A história oculta dos bilionários por trás do aumento da direita radical.
O neoliberalismo cunhou a imagem de “perverso” para todos os que não se enquadrassem na estabilidade familiar exigente à caução da estabilidade econômica (Cooper, 2019). Recentemente, Hosang e Lowdens (2019) mostraram que os patriotas passaram a ser associados aos cidadãos produtivos neoliberais e afins de todos os princípios regentes do pós-fascismo. Enquanto isso, os “parasitas” são todos aqueles considerados “dependentes” do Estado. Em outras palavras, é o conjunto de cidadãos excluídos social e economicamente da boa fortuna neoliberal e, portanto, demandadores das políticas públicas, isto é, geradores de despesas.
Levando isso em consideração, podemos compreender o pós-fascismo como convergência útil à governamentalidade neoliberal de crises. Apesar de as diversas correntes de ideologias, o pós-fascismos se orienta por ações pautadas por giros autoritários que, diferentemente do fascismo como feixe — fascio — organizado politicamente, atua de forma impolítica, isto é, nas lacunas geradas pela fragilização da participação democrática na própria vida política (Traverso, 2021). Impolítica não quer dizer ausência da maneira política de se agir. Sua estratégia é alucinar, conturbar e chocar as tratativas políticas pautadas por normas, regras, princípios constitucionais e democráticos. A impolítica agencia conluios à base de criação fantasiosa de inimigos e, assim, contribui caudalosamente para a manutenção das crises gestadas pelo neoliberalismo. Na impolítica, o Estado se transforma em um “clube” VIP de grileiros do poder econômico. Segundo Traverso (2021):
O pós-fascismo pretende preencher o vácuo deixado pela política reduzida ao impolítico. Suas receitas são politicamente reacionárias e socialmente regressivas: abrangem a restauração da soberania nacional, a adoção de formas de protecionismo econômico, assim como a defesa de “identidade nacionais” ameaçadas. Como a política caiu em descrédito [efeito da própria gestação de crises neoliberais], os pós-fascistas defendem um modelo plebiscitário da democracia que destrói qualquer processo de deliberação coletiva, favorecendo aquela relação que funde o povo e o líder, a nação e seu chefe. (p. 45)
O pós-fascismo é uma espécie de tênia autoritária que subiu para o cérebro da democracia. Aproveitando-se das crises de valores e das inseguranças sociais oriundas da concertação neoliberal, o pós-fascismo se inocula na governança e na distribuição concreta e simbólica do poder para desacreditar a autonomia dos poderes de Estado, as deliberações coletivas, o diálogo político, a razão científica, as redes de proteção social, as minorias etc.
A impolítica pós-fascista é seu próprio modo político. Por isso, no caso do Brasil, seus representantes não se acanham em usar o que seria impensado em qualquer ritual democrático:
Em dias correntes, o pós-fascismo brasileiro tem nos herdeiros do bolsonarismo o seu representante majoritário. No entanto, este extrapolou a identificação com um indivíduo e se dissipou em formas de viver e de desejar extremamente aviltantes e violentas. E, desde o instante que os poderes públicos passaram a ver com normalidade as discursividades de ameaças de morte, ignorando tal gravidade, sem imediatamente impedi-las, a fragilidade de demonstração da presença das regras e das leis de Estado favoreceram a tênia do pós-fascismo.
No pós-fascismo — com diversificação profícua em formas, modos e finalidades —, violência, intolerância, ameaça, linchamento moral e mortes compõem a vilania de seu modo de atuação. Isso vem se avolumando na rotina das incursões políticas da extrema direita, o avatar oficial do pós-fascismo, sem alterar o curso abominável de sua representatividade. E o mais grave: de ameaça a ameaça, de morte a morte, a tênia se agiganta e a desorientação democrática se vê bestializada, não sabendo mais como fazer para impedir a parasitose pós-fascista.
O sonho de um golpe consumado é a solução final ansiada para a consagração pós-fascista, performando o desejo de se aniquilar com todos aqueles que não ressoam o hino da adesão ao identitarismo, à impolítica ou ao ódio. Mas em forma de entreatos ordinários, o pós-fascismo se empenha — no lugar de uma limpeza étnica fascista — a produzir uma limpeza moral, política ou identitária. E em meio à banalização dessas limpezas, os divergentes do pós-fascismo também precisam ser extirpados. No imaginário pós-fascista, o outro-contestador não pode existir; “só devem existir pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem” (Deleuze & Guattari, 2012, p. 51).
O diagnóstico que Burity (2019) delineou, sob os escombros da política global pós 11 de setembro de 2001, para abordar a onda conservadora na política brasileira e sua correlação com o fundamentalismo no poder, sem grandes torções, pode ser utilizado para se evidenciar o que prevalece no pós-fascismo:
(i) a afirmação de crenças de modo mandatário e não conciliatório; (ii) a transposição do umbral do privado para realizar a defesa de implicações culturais e políticas dessas crenças que não se restringiriam àqueles que as esposam, ou seja, a tentativa de impor crenças particulares sobre o conjunto da sociedade a partir da ação estatal; (iii) o ambiente de contestação de valores de civilidade e respeito a posições adversárias produzido pelas duas situações anteriores, ou seja, produzindo polarizações e debates apaixonados; (iv) o potencial de recurso à violência que as três situações anteriores provocam, quando a intensificação dos embates e o acirramento das paixões extrapolam os limites do respeito ao outro e mesmo da lei (p. 57).
A partir da truncada composição do pós-fascismo, afinal, é possível conceber que sua emersão e fixação como tendência política geral no Ocidente, mas não apenas, é traçada paralelamente com a fixação da governamentalidade neoliberal de gestação e gestão de crises. O pós-fascismo, assim, compõe o éthos do que poderia ser chamado de populismo neoliberal. Aqui, nos auxilia Traverso (2021):
O populismo se transforma numa categoria abstrata formalizada por um conjunto de características gerais — autoritarismo, nacionalismo radical entendido como religião política, liderança carismática, rejeição ao pluralismo e ao controle da lei, visão monolítica e homogênea do povo, retórica demagógica, entre outras. (p. 31)2
Ao pós-fascismo valeria a indagação: quo buono? — a quem beneficia? A sua capacidade de instilar caos, desorientação, perturbação nos poderes públicos e democraticamente reconhecidos, além de produzir distorções na realidade política e nas concepções das diretrizes de seguridade social, por agenciamento de crenças e de identitarismos, por sua vez, ambos atravessando e sendo atravessados pela impolítica, permite-nos dizer com boa dose de convicção: o pós-fascismo é a racionalidade invertida aos interesses do neoliberalismo, consumando a gestação das crises com a criação latente de novas crises.
De um lado, porque o pós-fascismo é gérmen estruturante de crises constantes ao pulverizar nos territórios existenciais crenças e políticas identitárias, responsáveis por capturar as diferenças políticas, sociais, partidárias, religiosas, sexuais, científicas, étnicas, artísticas, corporais, de gênero e de nacionalidade às reduções exclusivas, lutando contra elas o tempo todo. Assim, a política reduzida à identidade é míope e perigosa, pois bloqueia um dos papeis fundamentais da política democrática: superar e ultrapassar o identitarismo de ódio ao estranho, ao estrangeiro, ao diferente e ao singular.
De outro lado, porque o pós-fascismo ao normalizar a impolítica como jogo de vale tudo, reforça decisivamente os interessantes do neoliberalismo. Nas regras do mercado, nada deve ser respeitado para se garantir lucros e dividendos: povos originários, natureza, reservas florestais, agroecologia, o ar, a água, a multiplicidade ecologia subjetiva, expressões singulares de pensamento, de arte, de prazer etc. Por conseguinte, “se é verdade que as leis do mercado governam o mundo, é verdade também que a vasta maioria do povo será sempre perdedora, o que continuará a alimentar o nacionalismo e a xenofobia” (Traverso, 2021, p. 59). Com efeito, o neoliberalismo nunca potencializa a face política democrática. Ele é a própria dissipação do modelo de guerra instaurado pelo capitalismo neoliberal (Alliez & Lazzarato, 2016), uma vez que a economia se tornou a política de guerra do capital. Emerge, por conseguinte, a seguinte perspectiva: “o capitalismo global integrado é a axiomática da máquina de guerra do Capital que foi capaz de submeter a desterritorialização do Estado à superior desterritorialização do Capital” (Alliez & Lazzarato, 2016, p. 20). Sob tais termos, o que temos é a normalização da guerra, porém, à guisa do modelo da guerra civil, sem data para término. Nesse nível, alertava Foucault (2015): “a guerra civil é a matriz de todas as lutas pelo poder, de todas as estratégias do poder e, por conseguinte, também a matriz de todas as lutas a propósito do poder e contra ele” (p. 13). Ainda que seja assim, quem segue vencendo esta guerra é o neoliberalismo, pois o “impolítico é uma amálgama de poderes econômicos, máquinas burocráticas e um exército de intermediários políticos” (Traverso, 2021, p. 44).
Não obstante, se o que prevalece na era pós-fascista da governamentalidade neoliberal de crises é o modelo da guerra civil, Foucault (2015) nos permite um manejo de esperança e de ação, pois é neste mesmo modelo que também se circunscrevem as lutas “contra o poder”. Sendo assim, de que modo poderíamos ensaiar experiências de intervenção modificadora nos modos produtivos da governamentalidade neoliberal pós-fascistizante? E mais, não seria a educação um foco de experiência privilegiado para ensaiarmos resistências e intervenções nos modelos de produção subjetivas neoliberais? E como poderíamos, minimamente, delinear maneiras micropolíticas de despontencializar, pela educação, o pós-fascismo e a modelização subjetiva neoliberal? Vejamos a seguir.
Considerações finais: que pode a educação entre crises neoliberais e pós-fascistas?
O neoliberalismo rege a educação por sua governamentalidade de crise para desorientá-la. A estratégia é enfraquecer por completo a possibilidade de a educação se afirmar como experiência crítica, transformadora da realidade social impositiva, aberta às multiplicidades singulares das subjetividades o que, por si só, é um modo de combater o pós-fascismo. As maneiras pelas quais políticas públicas de educação, parâmetros avaliativos globais e interferência tecnicista do lobby empresarial, com suas think thanks, delineiam e projetam para a educação suas finalidades canalizam-se suas potencialidades para melhor controlar a eficiência finalizadora às adaptações suscitadas justamente pelas crises neoliberais.
Na última aula de A sociedade punitiva, Foucault (2015) chegava à conclusão que o modo positivo de a sociedade punir é operando por intermédio da dissipação formalizada em instituições com saberes e relações de poderes específicos, visando se “fabricar disciplina, impor coerções, fazer contrair hábitos” (p. 215). O neoliberalismo instituiu a punição ao se compor com o pós-fascismo para rotular, perseguir e enxovalhar seus dissidentes. Sem sombra de dúvidas, o pós-fascismo opera como máquina de produção disciplinar, impondo coerções e contratação de hábitos, uma vez que instila planos subjetivos funcionais às crises neoliberais.
Seria ingênuo pressupor uma mudança abrupta do curso do umbral histórico no qual nos situamos atualmente, com os seus absurdos, sujeições, opressões, violência e demanda monolíticas de expressividades, afetos e perspectiva existencial. No entanto, sustentamos que é absolutamente possível interver e atuar, por intermédio da educação, produzindo efeitos disruptivos nos ciclos das crises da governamentalidade neoliberal, com seu pós-fascismo.
Para tanto, há uma regra de ouro: “não há possibilidade de uma transformação das estruturas de governo sem a modificação dos dispositivos micropolíticos de produção de subjetividade” (Rolnik, 2018, p. 18). Concretamente, a educação não é um bloco monolítico de ordens de saberes, conhecimentos, atitudes, comportamentos ou, como sonham os neoliberais, de competências e habilidades. Educação é dimensão-valise concebida a um conjunto de multiplicidades de experiências educativas a se firmar como acontecimento no dia a dia dos sujeitos nela envolvidos, para constitui-los como sujeitos ativos de suas vidas, relações e histórias. Desse modo, a educação é atravessada por possibilidades micropolíticas de encontros com tentativas de se experimentar suas próprias experiências. Aqui nos situaríamos muito próximos desta lição de Foucault (2013):
Eu creio que uma das tarefas, um dos sentidos da existência humana, no que concerne a liberdade do homem, é o de nada aceitar como definitivo, intocável, evidente e imóvel. Nada de real deve fazer para nós uma lei definitiva e não humana. (p. 143)
Sendo assim, o que pode a educação entre crises neoliberais e pós-fascistas? De maneira urgente, precisamos defender a escola como instituição não receptadora dos rolos compressores do neoliberalismo. Como fazer isto? Em primeiro lugar, defendendo a própria instituição escola no sentido que o pedagogo Fernand Oury (2001) cogitava, isto é, lugar de vínculos humanos que, ao redor de confluências de saberes múltiplos, não se furta a inventar a si mesmo como lugar de alteridade, de confronto ao autoritarismo, de experiência com a autonomia criativa, de movimentação livre e destituída de hábitos servis. Ele dizia que, nesse sentido, “a instituição é o que permite sair do caos” (p. 23).
Em segundo lugar, ao defendermos a instituição escola não é a institucionalização dos dispositivos pedagógicos que são protegidos. Esses, por sua vez, são justamente a argamassa adaptativa dos imperativos neoliberais e pós-fascistas. Foucault (2015) alertava que para se fabricar disciplina, impor coerções, fazer contrair hábitos era necessário a preconização da extração administrativa do saber, ou seja, da burocratização da educação. Estar do lado da escola envolve a circulação de tudo que é fora dos circuitos da extração administrativa do saber. É preciso garantir e estimular:
Ainda é preciso ter algo importante em mente: como vimos, neoliberalismo e pós-fascismo produzem desejos voltados para seus horizontes de crenças e de representações, bloqueando linhas de fuga e resistência. Desse ponto de vista, a educação precisa desejar a si mesma como outra consistência. Reparem: desejar é sempre algo possível. O desejo, contudo, não é vazio e sem corpo; ele é e está na vitalidade inventiva da vida. Por isso, também ele se alastra pelo desejo de conhecer, de investigar, de superar crenças e representações cristalizadas. Mas quando paramos de criar o desejo de desejar é porque já deixamos de querer nos mover, caminhar para além dos horizontes que foram traçados sem a nossa participação. A educação, todavia, pode e deve ser experiência de desejo. Nos termos de Carvalho e Gallo (2022):
Se formos capazes de desejar outros modos de educar, outras maneiras de nos relacionar com e na educação; se formos capazes de rascunhar intenções que se movem para arriscar a fazer o novo, a fazer-se de novo; se formos capazes de imaginar como remover o peso paquidérmico da burocracia de nossas instituições, então, grávidas e grávidos deste desejo futuro, acabamos sendo interpelados por um presente que não aceitamos mais (p. 145).
Enquanto neoliberalismo e pós-fascismo dizem “está tudo aí; a vida é esta; o futuro será este”; a educação diz: “tudo está por devir-aí; a vida pode ser outra e sempre plural; o futuro não está delineado”, ou seja, não precisa continuar a ser neoliberal, neocolonial e pós-fascista em todos os planos. Aqui, a educação recusa o futuro como “uma mentira sobre o tempo que nos impede de viver quando somos e nos adia para quando jamais haveremos de ser; o futuro [não será] ideia branca que abre por sobre todas as palavras para as adoecer” (Mãe, 2022, p. 197).
Resistir à gestão das crises da governamentalidade neoliberal, eivada permanentemente pelo pós-fascismo, demanda da educação a indagação irrequieta e contínua acerca do que ela pode. E ao fazer isso, ela se abre, e nós juntos, para outra aposta acerca do que é inocular crises na educação: produzir oportunidades de afirmação de saberes, de relações de poderes, de políticas de afetos, de relações humanas, de desenhos de horizontes, de afirmação de vidas não-xenófobas, não-racistas, não-lgbtfóbicas, não-autoritárias, não-servis nem funcionais, e muito mais, como oportunidade de outras destinações históricas.
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1 Este artigo compõe o conjunto de pesquisas sob o apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo 20/04174-7) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Processo 310429/2020-0)
2 Se é verdadeiro que Traverso (2021) na mesma passagem indica que tais características podem atingir tanto movimentos de esquerda e de extrema direita, no caso do populismo neoliberal as estratégias são caracterizadas “pela xenofobia e pelo racismo e têm por objetivo principal excluir as camadas mais baixas, mais precárias e marginais da população” (p. 33).