ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2023, 14(38), e15188

https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n38.2023.15188

A crise escolar e a análise antropotécnica: o olhar de Sloterdijk sobre a educação

José Pedro Matos Fernandes 1

1. Instituto Politécnico de Beja

jpfernandes@ipbeja.pt

Resum0

Não sendo Sloterdijk propriamente um filósofo da educação, as suas obras deixam um conjunto de reptos para a análise crítica da escola e dos modelos educativos que temos. O presente artigo pretende contribuir para essa reflexão. As questões que dão que pensar e que servem de motivo ao presente texto partem da crítica ao formato educacional atual e histórico, que está associado ao processo de “domesticação” como propósito escolar, ao seu significado enquanto tecnologia de produção do humano — antropotecnologias —, à associação educação-humanismo e à sua falência, ao que pode significar a dimensão prática da aprendizagem como técnica de exercício e ao impasse em que a escolarização hoje se encontra. Recorre-se fundamentalmente a dois dos textos de Sloterdijk com maior impacto no universo da educação e da pedagogia: Regras para o Parque Humano e Tens de Mudar de Vida, embora outros textos de outros filósofos serão referidos. As ideias de uma vida de exercícios, com um pendor prático, mas sem perder a dimensão de progresso pessoal espiritual, podem ser algumas das saídas para a atual crise na educação.

Palavras-chave: Sloterdijk, filosofia da educação, crise na educação, antropotécnica, exercício

La crisis escolar y el análisis antropotécnico: la mirada de Sloterdijk sobre la educación

Resumen

Aunque Sloterdijk no es exactamente un filósofo de la educación, sus obras presentan una serie de retos para un análisis crítico de la escuela y de los modelos educativos que tenemos. Este artículo pretende contribuir a esta reflexión. Las cuestiones que nos invitan a la reflexión y que motivan el presente texto parten de la crítica al modelo educativo actual e histórico, que se asocia al proceso de “domesticación” como propósito de la escuela, a su significado como tecnología de producción de lo humano —antropotecnologías—, a la asociación educación-humanismo y su fracaso, a lo que puede significar la dimensión práctica del aprendizaje como técnica de ejercicio y al estancamiento en que se encuentra hoy la escolarización. Se recurre fundamentalmente a dos de los textos de Sloterdijk con mayor impacto en el universo de la educación y la pedagogía: Normas para el parque humano y Has de cambiar de vida, aunque se hará referencia a otros textos de otros filósofos. Las ideas de una vida de ejercicios, con un matiz práctico, pero sin perder la dimensión del progreso espiritual personal, pueden ser algunas de las salidas a la actual crisis de la educación.

Palabras clave: Sloterdijk, filosofía de la educación, crisis de la educación, antropotécnica, ejercicio

The school crisis and the anthropotechnical analysis: Sloterdijk’s perspective on education

Abstract

Although Sloterdijk is not exactly a philosopher of education, his works offer a series of challenges for a critical analysis of the school and the educational models we have. This article seeks to contribute to this reflection. The questions that invite us to reflect and that motivate the present text start from the critique of the current and historical educational model, which is associated with the process of “domestication” as the purpose of the school, with its meaning as a technology of production of the human (anthropotechnologies), with the connection education-humanism and its failure, with what the practical dimension of learning may mean as a technique of exercise, and with the impasse in which schooling is today. Mainly two of Sloterdijk’s texts with the greatest impact on the universe of education and pedagogy are considered: Rules for the Human Park and You Must Change Your Life, although other texts by other philosophers will also be referred to. The ideas of a life of exercises, with a practical nuance, but without losing the dimension of personal spiritual progress, may be some of the ways out of the current crisis of education.

Keywords: Sloterdijk, philosophy of education, crisis of education, anthropotechnics, exercise

Que pode amestrar o homem se, até aqui, em todas as experiências de educação da espécie humana, ficou pouco claro para quem e para quê educavam os educadores? Sloterdijk

(2007, pp. 48-49)

Corremos o risco de assistir a um destino, assaz suspeito, no que concerne às políticas educativas em geral. Tanto as escolhas educacionais como pedagógicas, as práticas escolares e os modelos pedagógicos estão em risco de caminhar sem se saber muito bem para onde, no pressuposto simpático de que não há uma intencionalidade por parte dos decisores políticos relativamente ao assunto, mas apenas uma “mão invisível” a operar em toda a extensão da aparente neutralidade do decurso do mundo liberal. Na presunção de uma intervenção menos simpática, talvez não seja bem assim. Talvez nos tenhamos acomodado ao conjunto de razões desencadeadas pelas crises ideológicas, do império do sucesso tecnológico, pelo cheiro inebriante da produção de riqueza, pela crença nas soluções tecnocientíficas, pela forma como valorizamos as métricas quantitativas da avaliação do sucesso educativo, pela crise das humanidades. Mas talvez caiba alguma parte de responsabilidade aos discursos da filosofia da educação.

É certo que os filósofos —exceto casos poucos—, nunca foram grandes influenciadores das políticas educativas. É certo que os clássicos antigos gregos e latinos tiveram uma certa importância aquando da elaboração de políticas educativas, mas na altura o ensino era um programa pouco inclusivo, familiar, escolar apenas no sentido de escolas de pensamento escolas de pensamento, como aconteceu com o platonismo, o epicurismo, o estoicismo ou doutrinas teológico-religiosas. Mas essas eram preocupações essencialmente pessoais e salvíficas. Depois consideramos Coménio, que teve algum impacto na organização escolar e didática, mas o seu magistério era bem mais do que técnico-pedagógico. Alguns iluministas — em particular a figura atípica de Rousseau — deixaram frutos positivos, positivos, mas também polémicos. Provavelmente o caso de John Dewey seja o de maior sucesso e impacto real, no que contem de reflexão filosófica sobre o sentido do fenómeno educativo nas suas escalas sociais, civilizacionais, antropológicas, pessoais, éticas e epistemológicas.

Contudo, sempre houve nos destinos políticos muitas zonas de sombras e de encobrimentos, mesmo naquelas que deveriam à partida ser mais esclarecidas, como é o caso das decisões sobre políticas educativas. Como sabemos, as ações e as reações políticas, as práticas sociais, os movimentos economicistas e os impulsos tecnológicos, caracterizam-se muito mais como acontecimentos trágicos — que não se dominam e quantas vezes nem se compreendem — do que como opções deliberadas e conscientes. No entanto, o território da educação, já que tem a ver com opções estratégicas, deveria ser imbuído de reflexão e análise crítica. No ponto de encruzilhada, deveria existir uma atitude de escolha esclarecida ou, pelo menos, deve haver uma reflexão filosófica sobre esses momentos. A crise é um desafio para a filosofia da educação.

A educação em si mesma e a escola como instrumento podem ser consideradas como estratégias de sobrevivência, de superação, de afirmação e de mudança. Vale a pena utilizar o conceito dado por Dewey (1958) a instrumento, mesmo não adotando o seu instrumentalismo.

Para esta abordagem, inspiremo-nos na obra Tens de Mudar de Vida de Sloterdijk (2018) a qual tem a vantagem de ser um texto posterior a Regras para o Parque Humano (2007) e contem um desenvolvimento mais pormenorizado e extenso, além de ter um elevado número de capítulos dedicados à problemática da educação, da escola, da aprendizagem e aos ideais educacionais que conduziram a filosofia da escola ao longo de praticamente 25 séculos, sobretudo se nos movimentarmos nas tradições decorrentes da herança clássica, de uma bonomia humanística.

Nas Regras para o Parque Humano (2007), Sloterdijk deixou à comunidade educativa um repto incómodo. Teve sobretudo a ver com a associação da escolarização a uma forma de domesticação. Claro que este ponto de vista deixou uma irritação, tanto no sentido de uma indignação nos crentes na academia e na escola, como no sentido pragmatista, ou seja, de um incómodo que atinge a pele do leitor, se quisermos, na circunferência da esfera imunológica que constitui a nossa ideologia de base, e que nos leva a pensar. Porventura não tinha sido exatamente o contrário o propósito da instituição escolar? Não teria a escolaridade a intenção inversa, a de libertar o ser humano das trevas, da ignorância, da conformidade com o destino inicial? Não confiámos gerações e gerações a essa instituição para contribuir para o progresso social, o advento da verdade, o movimento ascendente para uma superação da imperfeita condição inicial? A esta questão, poderíamos responder sim e não, tomando como base o percurso histórico situado no enquadramento civilizacional de cada momento e geografia, e também as críticas feitas ao longo desse período.

A escola foi criada com um certo idealismo, ainda que, nos seus moldes modernos, seja fruto do Iluminismo, que ambicionava uma melhoria efetiva, um progresso moral, da civilização. O processo educativo iluminista visava mais do que um melhoramento do destino pessoal, seria uma espécie de programa, um desafio do aprimoramento na excelência íntima. Queria uma verdadeira transformação social, na concretização do ideal civilizacional. A questão não era só um propósito individual de se ultrapassar a si mesmo, da descoberta da verdade, do alcance individual do conhecimento e da evolução espiritual. O propósito republicano tinha inscrito este rótulo moralista: a escola deve ser o motor da transformação social.

O texto colocado em epígrafe deste artigo vem colocar em questão a aceitação pacífica deste mote iluminista. A posição de Sloterdijk não é apenas de discordar da inspiração iluminista da educação. De algum modo percebe-se aqui um reflexo da interpretação civilizacional que os mentores da Escola de Frankfurt — Adorno e Horkheimer — tinham defendido, ou seja, de que o propósito iluminista trazia dentro de si, em gérmen, uma estratégia de totalitarização, de uma tomada de poder. Mas na leitura de Sloterdijk, todo o historial da humanização a que a institucionalização do ensino pretendeu está imbuída de um espírito de apaziguamento, de conforto de intelectuais, de moldagem das novas gerações pela leitura dos clássicos, de criação de um ambiente cálido onde os letrados se podem entender, um clima de moderação, de bons princípios e de uma gestão sossegada da vida dos indivíduos. Mais do que inspirado nos mestres da dialética do esclarecimento, é com Nietzsche que ele se faz acompanhar nesta leitura que realiza sobre o que aconteceu ao humanismo. Daí o uso de expressões radicais e provocativas tais como amestramento, amansamento, criação, - no sentido zoológico do termo -, entre outras. <,amestramento, , amansamento, criaçãono sentido zoológico do termo —, entre outras.

Todo o discurso do livro-conferência Regras para o Parque Humano (2007) é conduzido nesta perspetiva de análise, que de certa maneira Heidegger (1973) tinha usado na Carta sobre o Humanismo: o humanismo tinha uma carga ideológica pastoril, mantendo os seres humanos num redil de uma suposta clareira, salvando-os do mundo das trevas. Significava isto que de certa maneira o papel da educação era o de tornar os indivíduos mais esclarecidos, mais seguros, mais protegidos. Se quisermos, mais imunizados contra a barbárie, a confusão, as sombras da ignorância — imunidade é uma palavra-chave no pensamento de Sloterdijk. O substrato seria uma espécie de conversa de amigos, de base epistolar, da troca de palavras engalanadas por uma retórica algo pomposa e edificante. Esta importância de pensar as práticas educativas como estratégias imunológicas aparece referido por Espinel e Pulido-Cortés (2021):

Nessa região intermediária tomam forma algumas práticas imunológicas como a escrita e a leitura, numa sociedade letrada ou onde o aparato escolar assume corporalidade dentro de uma era educacional, pedagogizada e instruída. Uma época que encontra na educação o seu mecanismo mais eficaz de instituição e subjetivação. (p. 19)

O humanismo construiu-se como uma plataforma de entendimento de cultura de uma elite literária. Mas esse modelo esgotou-se. Não se compadece com a história do progresso social, científico, tecnológico, até chegarmos à sociedade da informação que nos caracteriza, em que os moldes de comunicação e de partilha do conhecimento não estão formatados— diríamos hoje— segundo este caminho percorrido. Este modelo tinha por base a leitura, sobretudo de texto canónicos, de leituras partilhadas. Mas já não funciona mais. Por isso, Sloterdijk (2007) afirma que “a era do humanismo moderno como modelo escolar e educativo foi ultrapassada porque se tornou insustentável a ilusão de que as estruturas políticas e económicas de massas podem ser organizadas segundo o modelo amigável da sociedade literária” (p. 29), tanto por termos construído um mundo globalizado, tecnologicamente sofisticado, acessível em memórias coletivas assentes em bases de dados universalmente partilhadas, o que faz de nós consumidores de informação, embora em modo de fast-informação, como porque há algo de errado no modelo antropológico redutor deste modelo de sociedade — ocidental — em que já deixámos de evoluir por exercitação1.

Há alguma coisa de muito inquietante na proposta de interpretação do mundo cultural e educacional de Sloterdijk —se quisermos situar a sua leitura a partir do terreno da filosofia da educação. Por um lado, há uma ideia de contextualizar o nascimento e história da instituição escolar muito preciso. O espírito que presidiu à criação da Academia, do Liceu, dos jardins e das escolas iniciais e iniciáticas caraterizava-se por ser um espaço à parte, à margem, uma espécie de lugar excecional. “A Academia original não é outra coisa, apreciada como uma inovação em matéria de criação de espaço” Sloterdijk (2014, pp. 46-47). A academia funda-se num espaço reservado, um espaço diferente na sua vivência, nas suas práticas, nos seus valores, nos seus propósitos; um espaço dentro de outro espaço, talvez um espaço recuado— imunizado e imunizador2 —, dentro do qual o tempo vivido por quem lá andava era dedicado por completo à rotina dos exercícios, espirituais/intelectuais e corporais. Traduzia-se na ideia de retiro. Foi isso que aconteceu, segundo Sloterdijk (2014): “Platão transpôs a retirada para fora da cidade novamente para a cidade e, com esse gesto, estabeleceu uma diferença político-topológica que iria produzir um forte efeito na história mundial” (p. 47). Isto quer dizer que em vez de se caracterizar como um espaço público, a escola situava-se num mundo à parte, para posteriormente regressar à ágora, o território da gente comum. O próprio Sloterdijk (2014) utiliza uma ideia formalizada por Foucault da visão do espaço da Academia como uma “heterotopia” (p. 47), fazendo dela uma “diferença académica” (p. 48). É interessante que só depois da aprendizagem nesse espaço se partiria, renovado, a viver em qualquer lado do mundo, pois a ideia cosmopolitista estava a formar-se: “em vida de Platão formava-se já a nova palavra-chave parapolítica «cosmopolitismo», que proclamava abertamente que os pensadores já não estavam obrigados a esta ou aquela comunidade local, mas se consideravam cidadãos do universo” (p. 62).

Podemos considerar que este ponto de partida para novos mundos se adequa muito bem à vida de grande mobilidade que vivemos hoje em dia. A globalização não significa apenas o novo mundo do capitalismo; significa também a deambulação livre, apoiada no conhecimento que se adquiriu naquele espaço de recolhimento, e depois se projeta na nobre “«capacidade de exílio» da alma” (p. 62)3. É uma ideia de uma soberania conquistada pelo esforço da aprendizagem. É necessário, para usar a expressão utilizada por Foucault, praticar um cuidado de si e, neste aspeto particular, a conceção sloterdijkiana está muito próxima da visão de Pierre Hadot, ao procurar recuperar uma herança da filosofia antiga como uma lição de vida, uma prática de exercícios espirituais, um caminho de conversão, de encontro consigo mesmo, adotando a figura pedagógica de Sócrates como modelo. Diz Hadot (2014):

A filosofia era um método de progresso espiritual que exigia uma conversão pessoal, uma transformação radical da maneira de ser. Maneira de viver, a filosofia o era então o esforço, no seu exercício, para alcançar a sabedoria, mas também era um objetivo, a própria sabedoria, pois a sabedoria não faz somente que possamos conhecer, mas faz “ser” diferentemente. (pp. 262-263)

O próprio Sloterdijk (2018) comenta a leitura de Hadot relativamente ao projeto de reabilitação do modelo antigo como algo que implica uma versão totalmente diferente do modelo escolar que temos: “Pierre Hadot exprime tranquilamente a natureza da revolta radical: “toda a educação é conversão’’ (p. 372).

Aqui a importância da conversão é decisiva, pois, no entender de Hadot e da sabedoria das antigas escolas de filosofia, são os exercícios espirituais práticos que desencadeariam uma boa sabedoria e não o seu sentido lógico e temporal inverso. Assim preparados por uma série de exercícios, as pessoas poderiam estar preparadas para a vida. Em sentido querido por Sloterdijk, assim treinados na vida interior, partiríamos em movimento para nos inserirmos na espuma que nos rodeia.

Esta conceção de educação e de escolarização, no entanto, já não espelha o estado atual que temos. Bem cedo Sloterdijk denuncia a insuficiência do modelo escolar que se foi desenvolvendo no mundo. Na sua obra inicial Crítica da Razão Cínica (2011) afirma: “No fundo, já ninguém acredita que a aprendizagem de hoje resolve os “problemas’’ de amanhã; é quase certo, pelo contrário, que os desencadeia” (p. 15). Esta ideia é hoje quase um lugar-comum, como bem expressa Harari (2018): “o mais certo é que muito do que os miúdos aprendem atualmente seja irrelevante em 2050” (p. 300). Isto porque se constata a existência de uma inversão na lógica da formação, da escolarização.

O modo pedagógico praticado é quase sempre fruto de um desfasamento, em que o primado por uma aprendizagem desvinculada da vida torna os conteúdos aprendidos e as competências exigidas para tal, um tempo perdido; daí assistirmos, segundo Sloterdijk (2011), no contexto do cenário educacional no seu país, um “embrutecimento a priori… A reconversão da relação entre o viver e o aprender anda no ar: o fim da fé na educação, o fim da escolástica europeia” (p. 15)4. Mas a estrutura de análise tem como ponto de partida algo que ultrapassa a visão tradicional, ao tornar claro que todo o processo de aprendizagem reflete a natureza antropotécnica do ser humano. Quer isto dizer que não se trata apenas de pensar um lugar, e um tempo, onde se absorvem algumas informações acerca do mundo. Trata-se, como sempre foi, de um processo de construção do humano. O ser humano é um produto, e esse é o ponto que permite ver a realidade de um ponto de vista mais geral. Isso foi percebido muito precocemente por Sloterdijk na Crítica da Razão Cínica (2011) “o eu é o resultado de programações. Ele forma-se por amestramentos emocionais, práticos, morais e políticos. ‘No princípio era a educação’” (p. 96). Essa consciência já teria Kant (2003), ao defender na sua obra sobre pedagogia que o homem depende, na sua própria natureza, da ação educativa, que o homem só é homem por causa da educação, sendo um seu efeito, portanto, e que “por detrás da educação, aloja-se o grande segredo da perfeição da natureza humana” (p. 13).

A educação é o grande projeto de construção do humano. Mas mais ainda do que um projeto — pelo menos no seu sentido iluminista —, é um programa de formação. O ser humano é um programa em aberto. E, como diz Agamben (2011) “o aberto não é senão um aprender do não-aberto animal” (p. 210). Quer isto dizer uma coisa que já desde a antiguidade clássica grega se tematizava: aprender não é uma questão de adquirir conhecimentos, mas uma ação de construção de personalidades. A educação é um processo de habitus construtivo. Noguera (2017) expressa bem esta relação na análise da obra de Sloterdijk:

O homem é um produto, é o resultado de certas operações técnicas para as quais Sloterdijk cunha o termo antropotécnicas. Trata-se de técnicas de domesticação sem as quais o processo de hominização — e de humanização — não teriam dado o seu fruto5. (p. 27)

Chegamos assim ao cerne da questão. O formato tradicional da pedagogia não resultou, ou resultou de forma enviesada por não atender àquilo que no fundo são as próprias pessoas, sobretudo no seu período de escolarização. O modo institucionalizado e estatizante como a escola se formou não corresponde à intenção primária. Por isso, Vasquez (2011) tem razão quando denuncia a causa da falência da escola e aquilo que a instituição esqueceu:

Que os alunos são, antes de tudo, atletas iniciantes, senão acrobatas, a quem se trata de formar nunca ficou claro com a explicitação que se deve a uma coisa tão importante, por causa da mistificação moralista e política da pedagogia. (parágrafo 27)

Sloterdijk (2018) entende por antropotécnicas um vasto programa de aplicação de práticas que formam e transformam o ser humano naquilo que ele é e naquilo que pode ser, uma vez que tudo para ele está em aberto, em primeiro lugar porque todos nós somos constituídos por um conjunto de hábitos, de regras, de exercícios: “é tempo de mostrar que o homem é o ser que resulta da repetição” (p. 17). Mais explicita e resumida está a definição na sua expressão, nesta mesma obra: “por antropotécnicas entendo os procedimentos de exercitação mentais e psíquicos com que os homens das mais diversas culturas tentaram otimizar o seu estatuto imunitário cósmico e social face aos vagos riscos da vida e às agudas certezas da morte” (p. 23).

Chamamos a atenção para umas subtilezas de linguagem — e este filósofo é mesmo um exímio escritor, muito cuidadoso com as suas palavras. Tratase de uma forma de exercitação e isso dá logo a conotação de uma prática contínua e da aplicação de protocolos. Além disso, faz a distinção entre o nível mental e psíquico, o que no quadro de uma antropologia filosófica e psicológica é muito importante, pois não se trata apenas de fenómenos cognitivos, mas de dimensão espiritual, diríamos nós, da dimensão integral da vida humana. O Homo Immunologicus constrói-se através de práticas repetitivas, o que faz dele um Homo Repetitivus, o tal acrobata. Através dessas práticas vamos construindo o nosso modo de ser. Esta ideia vem já de longe: “É possível, de facto, ler já a teoria clássica do habitus como uma teoria do treino” (Sloterdijk, 2018, p. 231).

A repetição de que o homem se faz é fruto de uma rotina, mas de um certo modo criativo, como ilustra com acerto Rocha (2020): “A nossa práxis tem um pé no Pragmatismo. Não devemos pensar que significa repetição sem objetivo. ” (p. 168). Não pense que o acrobata repete sem objetivo. Na verdade, ele busca por meio da repetição “algo maior”. O exercício como forma de habitus não nos vai enclausurar numa mesmidade, num rumo sem direção, fechados sobre nós mesmos. Pelo contrário, é possível tornar o exercício uma forma dinâmica e isso pode ser a solução para uma outra forma de aprender e de ensinar. No fundo, é uma porta para algo superior.

A identificação do homo acrobata como atleta está bem elucidada por Castro e Pérez (2021): “o artista acrobata desperta as possibilidades do homem, que para Sloterdijk, são o seu acesso e vida ao impossível” (p. 33). Por isso diz Sloterdijk (2018) que o ensino pode ser uma forma de atacar as inércias e permitir dar um salto para a frente e que “enquanto esse bloco se mantém imóvel, o novo ensino não poderá começar” (p. 235). Por isso a escola terá de de deixar de ser um campo de “reprodução social” ao modo definido por Bourdieu. É possível, diz Sloterdijk (2018), aplicar o “poder da repetição contra a repetição” (p. 247), a partir de uma distinção entre a repetição ativa e passiva, entre o hábito exercitado e o hábito exercitante. Uma interessante reflexão sobre as possibilidades do exercício como forma de libertação dos vínculos de uma repetição passiva foi apresentada por Cárdenas e Díaz (2021): “com o exercício, o sujeito participa na despassivação de si e evita os moldes sociais ou práticas de domesticação, com o qual poderia converter-se num acrobata da vida” (p. 60).

Há aqui um princípio físico que se aplica, pois “qualquer abordagem técnica dos seres humanos — e a pedagogia não é outra coisa inicialmente — assenta na ideia primordial da mecânica clássica: pôr formas de inércia ao serviço da superação da inércia” (Sloterdijk, 2018, p. 249). Como pode isso acontecer? Bem, fazendo uso da sua formação inicial na Escola de Frankfurt, diríamos que através do processo dialético da autodescoberta. A tomada de consciência dessa condição permite a sua superação. Já anteriormente, Sloterdijk (2007) escrevia que “a domesticação dos humanos é o maior impensado, aquilo de que o humanismo desviou os olhos desde a antiguidade até ao presente…, compreender isso basta para nos encontrarmos de chofre em águas profundas” (p. 61).

O que pode ser o alcance do modelo do treino aplicado ao sistema de aprendizagem é algo essencialmente ativo: “o teorema supremo das teorias explícitas do treino é o seguinte: a capacidade, sujeita à tensão dum estímulo prolongado, produz de certo modo ‘por si mesma’ uma capacidade aumentada” (Sloterdijk, 2018, p. 397). Voltemos ao espaço escola, onde se tem, modernamente, que reservar o lugar da aprendizagem, com um monopólio que se constituiu a partir do século XVI, com a modernidade:

A ideia mais poderosa do último meio milénio: a noção de melhoria do mundo surgiu quando a escola barroca aceitou a missão de deter a catástrofe humana que o Estado protomoderno desencadeara com a sua produção humana desenfreada. Melhorar o mundo significa, nesta situação: melhorar os homens en masse. (Sloterdijk, 2018, p. 428)

Esta ideia traduz o olhar sobre a história da pedagogia e da educação, sobretudo a partir de Coménio, como o processo que revolucionou a ideia de progresso social, através de uma escola que abranja todos os indivíduos, que domine a “metodologia certa” para ensinar tudo a todos.

A escola da época moderna, contudo, tornou-se muito autorreferencial, mas com uma opção que contradizia o esperado pelo estado. Se este pretendia uma preparação para mais eficácia nas profissões, maior pendor económico, os movimentos pedagógicos envolveram-se em propósitos de uma espiral que roda em torno de si mesma. Isso explica uma dissonância entre a sociedade e a escola, em que os estudantes deixam claramente de se posicionar como aprendizes de si mesmos e passam a ser formatados pelo próprio sistema escolar. E na época contemporânea acentua-se essa disfunção entre os objetivos do Estado e os objetivos da escola para a educação:

Se a exigência clássica do Estado à escola — fornecer cidadãos utilizáveis — é por esta traduzida como instrução para formar personalidades autónomas, programa-se com isso de antemão um atrito permanente — por um lado, sob a forma de um disfuncionamento permanente, por outro, como fonte de deceções crónicas. (Sloterdijk, 2018, p. 527)

Não são os professores ou os alunos os “culpados” individualmente por esta dissonância, no entender de Sloterdijk. O que se passa na realidade é que atravessamos um período de desorientação, forçados por uma dinâmica que ultrapassa as capacidades dos indivíduos em si mesmos. A pedagogia continua a ser a mais importante face da antropotecnologia, pelo que não deixámos de participar, a nível escolar, da instrumentalização que atravessa as várias épocas. Nota-se uma enorme preocupação com o que está a acontecer à escola. Como afirmam muito pertinentemente Castro e Pérez (2021) “as deceções a que Sloterdijk alude referem-se à incapacidade da escola contemporânea de produzir tanto cidadãos como em formar personalidades” (p. 54). A “erosão da escola”, como designou Sloterdijk (2018, p. 526), prolonga a “cooperação antagonista entre o Estado moderno e a escola moderna” (p. 527), tornando-se a escola cada vez mais um subsistema burocratizado, sem um propósito exterior a si mesma, pois “a escola transformou-se, nas últimas décadas, num selfish system vazio, cujos pontos de referência são as normas do seu próprio funcionamento” (p. 530), aparentando a vida escolar ao sistema burocrático anónimo e despropositado, pelo menos do ponto de vista dos alunos e professores, com um cenário kafkiano, em que os senhores K., que somos todos nós, não fizessemm a mínima ideia de por que razão cumpremm aquelas ordens. A escola continua a ser parte essencial do programa de antropotecnologia, da fabricação de um certo tipo de seres humanos pois

a antropotecnologia deve significar simples pedagogia. No entanto, a pedagogia é, e continua a ser, uma atividade que, pelo menos, quando se exerce com exigência, dignifica o ser humano como uma criatura que se pode ultrapassar a si mesma, e não apenas a um nível virtual. (Sloterdijk, 2021, p. 193)

Ou seja, o potencial antropológico, a construção do homem, a ponte de que Nietzsche falava orientada para o futuro, para a realização de si mesmo, está lá, como elemento potencial. Mas não temos a certeza de se a vida quotidiana — num sentido heideggeriano — se compadece de um propósito de uma vida artística e acrobática, no sentido sloterdijkiano. Mas a vida de exercícios tem de ter um sentido elevatório, um sentido de melhoria conseguida através das práticas de autoexigência. É esse o sentido da linha vertical que deve comandar o progresso. O problema pode surgir com uma tendência marcante na cultura contemporânea de privilegiar, quer por comodismo pessoal, quer por políticas públicas, a horizontalidade, a forma de vida de manutenção do status quo, se quisermos da vida fácil e programada pelo sistema. Por isso tem razão Weber (2017) em alertar para essa preocupação do filósofo com as rotinas dos estados totalitários ou de estados adormecidos: “Sloterdijk alude, ainda a outra reação, mais catastrófica, à horizontalização: o desassossego anímico” (p. 13).

Uma questão elementar que se coloca é a de se pensar se o que é pedido aos estudantes das nossas escolas é uma praxis exercitante, como um exercício que os sujeitos fazem de si mesmos ou, pelo contrário, se espera que os estudantes, futuros profissionais, aprendam as ferramentas — em sentido deweyano — tanto teóricas como práticas, que irão necessitar no futuro mercado de trabalho, que ninguém neste momento sabe muito bem quais serão. Neste contexto nos perguntamos se a vocação essencial da escola que criámos e a que corresponde a expectativa da sociedade proporciona aos educandos oportunidades de desenvolvimento de competências meramente encomendadas, ou se lhes oferecemos a hipótese de treinar o que pode ser uma forma de ser mais pessoal, mais auto-exigente. Mas quererão mesmo as novas gerações esse tipo de configuração da aprendizagem, exigente e esforçada, como se de um treino de alto rendimento se tratasse?

É certo que a mensagem “tens de mudar de vida!” se dirige a cada um de nós. É como se Sloterdijk nos interpelasse diretamente e formulasse um imperativo: tu ainda não vives, mas podes vir a fazê-lo. Por que Sloterdijk Sloterdijk se serve dos versos de Rilke? O que há neles que tanto tocaram, que tanto motivaram a pensar neste exercício de transformação pessoal? Já em obras anteriores Sloterdijk afirmara existir um erro estratégico civilizacional na constituição da escola pública, estatal, burocrática e profissionalizante. Numa entrevista (Antón, 2019) Sloterdijk declarava que os tempos atuais não são propícios ao exercício do pensamento. Há uma outra dimensão associada a esta dificuldade de promover um pensamento crítico num mundo demasiado envolvido em estratégias individualistas, privadas, de carácter muito superficial e de fuga ao processo exigente do pensar: “o fundamental está acontecendo na antropotécnicas onde um ser humano compulsivamente concentrado em si — fitness, consumismo, tecnologia de si —, força cada vez mais ao desenvolvimento de uma “filosofia privada” em atraso de uma “filosofia pública” (Tilleria, 2020, p. 73).

O cenário não é muito promissor. Mas há uma porta entreaberta deixada na frase que se segue àquela que colocámos em epigrafe do Regras para o Parque Humano (2007): “não haverá que pôr de lado definitivamente a ideia de uma formulação competente da pergunta sobre o cuidado e a formação do homem no quadro do mero amestramento?” (p. 49). Lemos nesta pergunta uma abertura. A questão inicial contém uma provocação aos autores envolvidos na temática da escola e da pedagogia. Permitia colocar em causa os modelos adotados na deriva da história da educação no sentido de existir uma dissonância entre o propósito humanista e as práticas efetivas desligadas da vocação do homo acrobaticus. Esta última questão, no fundo, provoca-nos e deixa-nos com a derradeira interrogação: não será tempo de um outro modelo de escolaridade, que assente na estratégia de trabalhar fundamentalmente para um mundo aberto, tanto interior como exterior?

Referências

Agamben, G. (2011). O Aberto. O Homem e o Animal (Trad. A. Dias & A. Bigotte). Edições 70.

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1 Esta crítica demolidora aos propósitos humanistas da cultura ocidental, que se globalizou, não nos deve levar a interpretações mais superficiais sobre a teoria de Sloterdijk sobre o valor da cultura, aliás porque os seus textos deixam bem nítida a evidência da sua enorme erudição. Pode parecer, à primeira vista, que o autor desacredita a tradição literária e o culto das bibliotecas. Mas essa não deve ser a visão que temos de Sloterdijk. Os seus textos são obras de um espantoso trabalho de investigação literária. Aliás, num texto relativamente recente, Reflexos Primitivos (2022), refere-se ao impacto da conferência Regras para o Parque Humano, e de certo modo lamentava que essa tivesse sido a interpretação que fizeram. Diz ele: “Desta meditação contida e com uma atmosfera de meia-noite, intitulada Regras para o Parque Humano, na qual manifestava uma ligeira mágoa com a desagregação da ideia de educação literária da Europa Antiga” a” (pp. 60-61). Esta alusão ao seu próprio sentimento, algo melancólico, pela perda progressiva da importância da boa literatura deixa claro que precisamos de ser bastante cuidadosos com a leitura— por vezes nada fácil, sabemos disso - — dos seus textos e conferências. Também numa entrevista concedida a Pavón (2021), Sloterdijk se refere de algum modo ao que pretendeu no livro Regras para o Parque Humano:

Em 1999, dei essa conferência que estranhamente se tornou famosa. Uma espécie de noite filosófica no qual refletia sobre como pensar a educação e os sistemas de formação do ser humano no rescaldo da galáxia Gutenberg. Minha hipótese era que os procedimentos humanistas para a formação cultural das pessoas — também poderia se falar da domesticação através de disciplinas linguísticas e artísticas — logo deixarão de ser suficientes. (parágrafo 20)

2 A ideia de um espaço de aprendizagem, um espaço de exercícios, ser considerado uma estratégia de imunização é importante na perspetiva de Sloterdijk, já que tanto representa um esforço de conquistas pessoais e sociais que capacitam os indivíduos para resistir às adversidades do mundo e à nossa capacidade de intervir, modificando-o, como traduz a ideia de um retiro de algum modo higienizado, descontaminado dos “negócios” mundanos. Pulido-Cortes e Espinel (2021) assinalam que “estes sistemas imunológicos derivam em sistemas de exercitação através dos quais o ser humano se põe em forma, para se jogar no mundo e fazê-lo seu” (p. 18).

3 O autor utiliza a expressão de Odo Marquard.

4 O que faz pensar que Dewey tinha razão ao defender que a escola não deveria ser uma preparação para a vida futura, mas uma forma de vida já, na prática.

5 O percurso feito por este autor atravessa as obras de Foucault e Sloterdijk, mas evoca também outros autores, como Dewey e Hadot. No caso de Dewey, em particular, muito haveria por explorar, sobretudo na sua conceção de uma filosofia da educação aplicada e consequente — era um pragmatista —, e, porque não, poder-se-ia chamar também uma obra inspirada de Gusdorf, Professores, para quê? (1968), com a ideia de uma aprendizagem — mesmo a escolar — como uma aprendizagem de si mesmo.