ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603
2023, 14(33), e15426
https://doi.org/10.19053/22160159.v14.n38.2023.15426
Educação pública em tempos pandêmico-neoliberais: O papel intelectual-formativo do diretor escolar
Claudio A. Dalbosco 1
Gislene Garcia 2
Luciana Maria Schmidt Rizzi 3
1. Universidade de Passo Fundo
vcdalbosco@hotmail.com
2. Universidade de Passo Fundo
3. Universidade de Passo Fundo
lm-schmidt@hotmail.com
Resum0
O artigo trata do quanto o nexo entre o avanço do empreendedorismo individualista e a irrupção da pandemia contribui decisivamente para acentuar o perfil burocrático-administrativo do diretor escolar, pressionando-o para abdicar de seu papel intelectual-formativo, em nome de funções burocrático-administrativas, esvaziadas de seu sentido cultural. Neste contexto, defende a hipótese de que o esclarecimento desse papel intelectual-formativo implica o diálogo crítico com a tradição pedagógica clássica, especialmente, com a noção de formação humana compreendida como preparação, oriunda do sentido greco-latino antigo. Também mostra como desse diálogo brota a dimensão ético-política indispensável para tornar democrático-participativo o modo de governo exercido pelo diretor escolar.
Palavras-chave: covid-19, educação pública, diretor escolar, formação, preparação
Educación pública en tiempos pandémico-neoliberales: el papel intelectual-formativo del director escolar
Resumen
El artículo aborda cómo el nexo entre el avance del espíritu individualista de emprendimiento y el estallido de la pandemia contribuye de manera decisiva a acentuar el perfil burocrático-administrativo del director escolar, al presionarlo para que renuncie a su rol intelectual-formativo, en nombre de funciones burocrático-administrativas, despojadas de su significado cultural. En este contexto, se defiende la hipótesis de que la aclaración de esta función intelectual-formativa implica un diálogo crítico con la tradición pedagógica clásica, especialmente con la noción de formación humana entendida como preparación, proveniente del antiguo sentido grecolatino. También muestra cómo emerge de este diálogo la dimensión ético-política que es indispensable para hacer democrática y participativa la forma de gobierno que ejerce el director de la escuela.
Palabras clave: covid-19, educación pública, director escolar, formación, preparación
Public education in pandemic-neoliberal times: the intellectual-formative role of the school principal
Abstract
The article addresses how much the connection between the advance of individualistic entrepreneurship and the outbreak of the pandemic contributes decisively to intensify the bureaucratic-administrative profile of the school principal, by pushing them to withdraw from their intellectual-formative role, in the name of bureaucratic-administrative functions, deprived of their cultural meaning. In this context, the article supports the hypothesis that the clarification of this intellectual-formative role implies a critical dialogue with the classical pedagogical tradition, especially by understanding the concept of human formation as preparation, which is originated from the ancient Graeco-Latin meaning. It also shows how the ethical-political dimension emerges from this dialogue, which is indispensable to make the form of governance exercised by the school principal democratic and participative.
Keywords: COVID-19, public education, school principal, training, preparation
Devido ao avanço mundial da privatização da educação, levado adiante pelo neoliberalismo contemporâneo, torna-se mais difícil sustentar a educação pública. Neste contexto, a escola pública e o trabalho intelectual-formativo de gestores e professores parecem inviabilizar-se cada vez mais. O desaparecimento progressivo da dimensão ético-política da formação humana em nome da mercantilização financeira da escola coloca em risco o espírito democrático alicerçado nas experiências solidárias e cooperativas que ainda transversalizam a estrutura curricular, chamando para o diálogo as mais diferentes perspectivas curriculares. O avanço do empreendedorismo individualista desaquece tais experiências, atomizando a comunidade escolar e jogando seus membros uns contra os outros numa luta concorrencial desagregadora e destrutiva. Esta tendência individualista acentua-se consideravelmente com a irrupção inesperada da covid-19, mostrando as fragilidades internas da escola e o abandono ao que o poder público a submete.
Neste ensaio pretendemos tratar do quanto o nexo entre o avanço do empreendedorismo individualista e a irrupção da pandemia contribui decisivamente para acentuar o perfil burocrático-administrativo do diretor escolar, pressionando-o a ter que abdicar de seu papel intelectual-formativo em nome de funções burocrático-administrativas esvaziadas de sentido cultural. Neste contexto, defendemos a hipótese de que o esclarecimento desse papel intelectual-formativo implica o diálogo crítico com a tradição pedagógica clássica, especialmente com a noção de formação humana compreendida como preparação, oriunda do sentido greco-latino antigo. Desse diálogo brota a dimensão ético-política indispensável para tornar democrático-participativo o modo de governo exercido pelo diretor escolar.
Dividimos o ensaio em três partes. Na primeira investigamos alguns efeitos que a irrupção da pandemia provocou no interior da escola. Na segunda parte expomos quatro problemas do neoliberalismo educacional contemporâneo que auxiliaram no agravamento dos efeitos pandêmicos, dificultando consideravelmente o trabalho do diretor escolar. Na última parte argumentamos a favor do papel intelectual-formativo do diretor, procurando alicerçá-lo no conceito de formação cultural ampla. Concluímos oferecendo uma breve visão de alguns resultados obtidos.
O cotidiano escolar em tempos pandêmicos: relato de algumas impressões
Ao observar atentamente o cotidiano da escola pública, neste período de retorno pós-pandêmico, buscamos, a partir do olhar da gestão escolar, elementos para a elaboração de um diagnóstico de época que seja capaz de desvelar, a partir da própria escola, a sua precarização, mas também mostrar que possibilidades de resistência encontram um caminho possível na formação dos professores. O planejamento, execução e avaliação de tal formação depende muito do modo de governo do diretor escolar. Deixando-se orientar pela postura dialógico-participativa — democrática —, ele pode contribuir para a formação cidadã na perspectiva aberta e plural, voltada para a busca da justiça social.
A relação formativa do ser humano com a vida também se dá ao contar uma história, na possibilidade de transformar em experiência a reflexão das vivências da própria trajetória. Na primeira parte do ensaio, queremos nos ocupar da tarefa de narrar a existência e de historicizar a vida. Portanto, trata-se de contar as experiências vividas no cotidiano escolar, que é o lugar primeiro da socialização coletiva, da partilha, como espaço verdadeiramente público, de todos. Desta forma, objetivamos problematizar a escola, olhá-la de dentro, a partir do exercício de gestão, num momento de extrema fragilidade provocada por uma crise de legitimidade acentuada, em grande medida, pelo neoliberalismo e potencializada pela pandemia da covid-19.
O dia 17 de março de 2020 desestruturou nossos planejamentos, partiu nossa história e paralisou nossas ações comuns. Ficamos à deriva de um tempo sem trajetória definida, ocupados em compreender o que estava acontecendo no mundo, numa paralisia que pensávamos durar algumas poucas semanas. Nossa primeira impressão do momento vivido era de que “será por pouco tempo”, “logo voltaremos para a escola”, “serão apenas 15 dias”, “ficaremos em casa um pouco”. Não tínhamos a mínima noção do que enfrentaríamos nem do quanto, não só nós, mas principalmente o poder público estava completamente despreparado para enfrentar esta nova e cruel realidade. Na verdade, a pandemia trouxe as claras as fragilidades educacionais, mostrando o quanto a educação pública não é prioridade no Brasil, em nosso estado e em nossa região.
Com o passar dos dias e o agravamento da pandemia no Brasil e no mundo, começamos a entender que não seria fácil e nem rápido retomar nossa rotina escolar. A escola, um ambiente de trabalho coletivo e de vida pulsante em seus corredores, tornava-se uma ameaça à saúde de seus estudantes e professores. Como compreender que aquele espaço físico de “junção” e de encontro de muitas vidas num único lugar não era possível de existir naquele momento? Como pensar uma escola, um espaço escolar diferente daquele que havíamos conhecido como alunos e agora como profissionais da educação? Por muito tempo acreditamos que a escola precisava ir para além dos seus muros, mas pensar uma escola sem um espaço físico determinado, sem o encontro, sem a presença, era possível? Isso nos levou a pensar sobre o tipo de escola que tínhamos tido até então e sobre o tipo de escola que precisaríamos ter a partir de agora, durante e depois da pandemia. Neste sentido, a irrupção pandêmica também nos colocou em crise, enquanto gestores e professores, levando-nos a refletir sobre o modo inapropriado com o qual o Governo Federal buscou tratá-la, negando-a num primeiro momento e, posteriormente, fazendo apenas enfrentamentos paliativos, sem alcançar os problemas reais da escola pública.
No Brasil, onde muitas vezes a escola pública é o espaço da proteção, do cuidado, da alimentação, antes mesmo de ser o espaço do ensino e da aprendizagem, as preocupações tornaram-se ainda maiores. De que estão se alimentando as crianças que estão sem acesso a merenda escolar? Quem está “olhando” para as crianças que estão em casa sozinhas, pois seus pais continuam a trabalhar? Como as famílias estão lidando com as dificuldades impostas pela pandemia que trancou a todos dentro de casa e fez surgir conflitos e dificuldades nunca antes vividos? Como estão os professores? O que pensam sobre essa situação inusitada? Estão preparados para atuar em meio a tantos e novos desafios? Esses e tantos outros questionamentos passaram a fazer parte do cotidiano dos gestores escolares enquanto o país e o mundo contavam seus mortos. O fato é que a pandemia tornou ainda mais evidente as enormes desigualdades sociais e educacionais que separam classes e grupos no país, revelando o quanto a sociedade, o governo e o próprio Estado estão distantes de oferecer oportunidades iguais para os cidadãos e cidadãs que habitam o solo brasileiro.
Num instante, o mundo tornou-se tecnológico. Empresas, comércios, todos adaptaram-se rapidamente às novas exigências impostas pelo vírus. E a escola, em especial a escola pública, via-se paralisada, sem possibilidades de reação, pois equipamentos tecnológicos, acesso à internet e o domínio das noções mínimas para acesso a um mundo virtual não faziam parte da vida de alguns professores, quanto mais do cotidiano dos alunos. A pandemia estava tirando debaixo do tapete, trazendo à tona, uma histórica falta de investimento financeiro na educação, em equipamentos tecnológicos e em acesso qualificado à rede de internet. Assim, mostrou-se também a inexistência de um consistente projeto de formação continuada dos professores da educação básica, para que tivessem condições de atender de maneira eficaz as necessidades anunciadas a muito tempo pelo mundo virtual. Deste modo, a falta histórica da valorização do professor, manifestada na ausência de condições adequadas de trabalho, de remuneração financeira e de investimento na formação intelectual e pedagógica, tornaram-se ainda mais salientes pela crise pandêmica.
Num mundo que há bastante tempo se anunciava tecnológico, a escola foi ficando à mercê do investimento público em infraestrutura e em equipamentos tecnológicos que fossem capazes de dar conta do cenário que nos era imposto. Para além dos transtornos trazidos pela pandemia, era preciso lidar com a precariedade tecnológica dos espaços escolares, dos professores e, principalmente, das famílias dos estudantes. A escola, um espaço de relações pedagógicas e afetivas e de trabalho conjunto, precisava aprender a se relacionar por meio de uma tela virtual. Precisava encontrar uma forma de permanecer viva e presente na vida dos seus estudantes por intermédio de um aparelho tecnológico — quando este existia — que deixava cada um na sua casa, transformando um espaço criado para ser coletivo num lugar de estudo individual, sem poder contar mais com a companhia socializadora dos outros. Esta separação espacial entre professores e alunos talvez tenha sido o maior impacto inicial gerado pela pandemia. Ter que reorganizar repentina e apressadamente a escola numa situação na qual professores e alunos não poderiam mais se encontrar presencialmente, ao menos até que alunos e professores fossem vacinados contra o vírus, foi a maior exigência que a gestão escolar teve que enfrentar imediatamente, exigindo esforço, compreensão e participação tanto dos professores como dos próprios alunos.
Diante desse cenário preocupante, o sentido da escola, do trabalho formativo dos professores, dos alunos e dos gestores foram postos à prova. A nossa ação, a forma como planejamos e executamos as nossas aulas e as atividades escolares precisaram adequar-se a este novo formato. Era preciso encontrar soluções rápidas, eficazes e coletivas, para dar conta com urgência do nosso fazer pedagógico. Para nos libertarmos dessa pressão extra e até mesmo sobrevivermos enquanto instituição educacional, era necessário o “encontro” com o outro, pois nunca pensamos sozinhos e a pandemia nos mostrou isso de maneira inquestionável. Hoje, no meio desta tragédia pandêmica, sabemos, melhor do que nunca, que isoladamente pouco ou nada podemos. Embora já soubéssemos antes, a pandemia veio reforçar a perspectiva intersubjetiva, solidária e cooperativa, como modo mais adequado de enfrentar os problemas escolares e a própria vida, em sentido mais amplo. Contudo, como retomar a perspectiva da solidariedade humana, num contexto social neoliberal, que empurra as instituições cada vez mais para a concorrência individualista, orientada pela busca desenfreada da lucratividade? Como desenvolvermos experiências formativas solidárias num contexto econômico e cultural no qual a escola e as pessoas são empurradas para o empreendedorismo individualista, que corrompe a possibilidade de construção de modos de vida solidários e cooperativos? Em síntese, como tornar-se humano num contexto social e cultural que parece embrutecer cada vez mais as pessoas?
Este certamente foi o caminho que mais encontramos dificuldade para trilhar, a saber, o caminho da coletividade, do planejar, do agir e de avaliar juntos, no trabalho em grupo. Parece que, neste percurso da covid-19, mais do que nunca, a escola caminhou e caminha sozinha. A escola pública foi uma das instituições mais afetadas por essa nova situação e, em relação a outros setores da sociedade, mesmo sendo um espaço indispensável para a própria sociedade, continuou a receber duras críticas, muito excessivas em comparação com o apoio público recebido. Ou seja, as mudanças que ocorreram na escola provocadas pelo poder público foram tênues, possivelmente não serão duradouras e nem transformadoras e, pelo que podemos observar, deixaram a escola em condições ainda piores do que as que já existiam antes da pandemia. Neste sentido, como transformar a escola num espaço de formação solidária, que prepare seus alunos para o exercício cidadão, em sua futura atividade profissional, parece ser um dos grandes desafios. Isso pressupõe a capacidade de mobilização da própria comunidade escolar para exigir do poder público as condições econômico-pedagógico-culturais mínimas, asseguradas inclusive constitucionalmente, para que tal preparação possa ocorrer. Pois, educação pública tem a ver com as garantias constitucionais que obrigam o Estado republicano a formular políticas públicas de financiamento educacional. É precisamente no sentido republicano que a educação é um bem público, cujo dever de financiá-la é do Estado.
Portanto, no contexto de uma escola abandonada pelo poder público, o papel do diretor escolar torna-se ainda mais fundamental, pois na ação ele é quem conduz os outros — professores e estudantes — e atua como uma espécie de âncora que dá sustentação para o trabalho pedagógico, para a manutenção das atividades escolares e para a finalidade maior da escola, que é a formação humana e profissional dos sujeitos envolvidos. Sendo assim, no início da pandemia, quando as escolas tiveram que ser fechadas, tornou-se papel central do diretor a mobilização intelectual e pedagógica dos professores, chamando-os à reflexão sobre o momento histórico e sanitário que o mundo e a própria escola estavam vivendo. Pois, fez-se necessário amenizar os impactos do vírus sobre as condições básicas de sobrevivência das famílias vinculadas à escola pública, considerando que muitos de seus alunos estavam, mais do que nunca, literalmente passando fome. Neste contexto, pode-se observar que a realidade do trabalho do diretor escolar na escola pública infelizmente não pode concentrar-se tão somente na condução formativo-pedagógica da comunidade escolar, uma vez que precisava também se ocupar com algumas funções que são de responsabilidade do governo e do próprio Estado. Por isso, contribuir para que a escola pública avance na direção da formação cultural ampla é um dos principais desafios atuais, considerando o nível crescente de precarização do papel formativo da escola, que também é resultado de um Estado que enfraquece a noção de educação como bem público e de direito de todos.
Então, no contexto da pandemia, o diretor da escola pública que possui a função de garantir um mínimo de equidade e de manutenção de condições para o acesso a uma educação formal aos seus estudantes precisou buscar alternativas para sanar as necessidades básicas deles. Para isso, muitos mobilizaram-se na arrecadação e entrega de materiais de higiene e de cestas básicas para a alimentação de famílias carentes. Num segundo momento, para amenizar as necessidades pedagógicas, fizeram campanhas para conseguir aparelhos de celular e computadores e distribuir às famílias que não tinham acesso a essas ferramentas. Na sequência, fez-se necessário ensinar esses alunos e suas famílias a utilizar esses equipamentos como um recurso pedagógico para que pudessem acompanhar aulas síncronas e assíncronas. Para os alunos que, apesar de todos esses esforços, não conseguiram ter acesso a rede de internet ou a equipamentos tecnológicos, foi realizada a distribuição de materiais impressos com atividades pedagógicas que deveriam ser realizadas em casa. Outra grande empreitada foi a busca ativa dos alunos que se perderam neste caminho e não compareciam à escola, nem sequer para retirar os materiais impressos e realizar as atividades em casa.
A responsabilidade intelectual do diretor escolar de desencadear reflexões acerca da distância abissal das condições que existem entre as escolas públicas e as escolas privadas, das classes mais abastadas e as menos favorecidas, no que diz respeito à implementação de currículos, investimentos tecnológicos, metodologias, propostas pedagógicas e condições de atender alunos durante este período pandêmico, reforçam as palavras de Boaventura de Sousa Santos (2020), de que “as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga” Santos, 2020, (p. 23). Isto nos permite compreender que para além dos problemas de ordem educacional — defasagem de aprendizagem, como exemplo —, a escola pública é invadida por problemas sociais que afetam diretamente o processo de ensino e aprendizagem de alunos e professores. Sendo assim, podemos afirmar que a pandemia mostra a crueldade das desigualdades em nosso país, principalmente em termos educacionais. Por isso, é importante compreender a origem de tais desigualdades que foram acentuadas enormemente pela pandemia, pois é tal compreensão que auxilia tanto na investigação da precariedade da educação escolar pública como na busca de alternativas para tornar a escola fonte de formação para a cidadania democrática.
O agravamento da pandemia pelo neoliberalismo
Após atravessar todas as dificuldades e desafios enfrentados no período em que a escola permaneceu “fechada”, ao retornar a presencialidade, deparamo-nos com as tendências gerais do neoliberalismo educacional que se acentuam cada vez mais, como:
Ou seja, a pandemia acentuou o espírito neoliberal da concorrência individualista, centrada na busca pela lucratividade econômico-financeira como ideal exclusivo da vida bem-sucedida. Deste modo, torna-se urgente compreender que problemas afetam a relação do ensinar e do aprender, considerando a tríplice dimensão: gestão (direção escolar), docência (professor) e discente (aluno). O que está acontecendo à nossa volta e que seria importante problematizar do ponto de vista do processo de ensino e aprendizagem? Tal questão nos conduz a tomar o diagnóstico crítico de época como ponto de partida aconselhável para compreender quem somos e que modos de vida alternativos podemos formar, visando a fazer frente ao sujeito empreendedor individualista de si mesmo, próprio do neoliberalismo2.
Neste sentido, propomos trazer aqui brevemente alguns aspectos importantes que transformam a escola num espaço mercadológico, quase totalmente administrado, fazendo esquecer que sua tarefa essencial é a formação das novas gerações e dos próprios sujeitos que nela trabalham, na perspectiva humana, profissional e cidadã. Assim, destacamos quatro problemas vivenciados na escola e potencializados pela pandemia:
Como estes problemas estão na base da construção crítica do diagnóstico de época no campo educacional, cuja sua análise auxilia para perfilar a busca de possíveis formas de resistências, vamos analisá-los de maneira breve.
O processo de mercantilização da educação ganhou nova faceta com a fase financeira do neoliberalismo3, provocando a monetarização da educação e dos bens culturais mais amplos. Essa versão sujeitou todas as áreas sociais, sobretudo as áreas da educação, saúde e segurança pública ao modelo de negócio do capital financeiro. Tudo precisa ser eficiente e lucrativo, independentemente de ter outros objetivos e de se prestar a outras finalidades, que não a mercadológica. Este modelo põe de lado os princípios democráticos e cidadãos do serviço público, fazendo definhar as formas de vida cooperativas e solidárias, ainda existentes e que outrora se encontravam arraigadas no ideal do bem comum. Portanto, a monetarização invade a alma do sujeito contemporâneo, impregnando também as instituições educacionais, fazendo-as perder sua especificidade cultural e formativa. A escola é vista mais como uma empresa que deve se submeter ao gerenciamento empresarial do que como uma instituição ocupada com relações de ensino e aprendizagem voltadas para a formação humana e cidadã4.
Vista pela ótica empresarial do próprio governo, a escola pública encontra-se fortemente ameaçada pela demonização do trabalho do professor e pela degradação das políticas educacionais. Sob o pretexto de crise financeira e da falta de resultados positivos nas avaliações externas da educação pública, vivenciamos durante a pandemia uma enxurrada de propostas pedagógicas de cunho nitidamente burocrático-administrativo, provindas da iniciativa privada e, inclusive, financiadas pelo próprio setor público. Experienciamos um Estado que apresenta diferentes plataformas de avaliação e controle, através de uma vigilância tecnológica, com programas de gerência administrativa, financeira e pedagógica. Do papel clássico de orientação intelectual, política e formativa, o diretor passa a ser burocrata de planilhas e formulários, respondente de pesquisas e avaliações, utilizando a maior parte de seu tempo para tarefas burocráticas, de pouco sentido pedagógico-formativo. Neste processo, também caminha solitário, perdendo a capacidade coletiva de classe — luta por direitos e garantias — e suas fontes de inspiração para resistir ao embrutecimento neoliberal. É silenciado gradativamente e imobilizado por sentimentos de medo, impotência e insegurança, sendo controlado pelo tempo produtivo, que lhe impõe inúmeras tarefas diárias, como lives com administradores da educação e registro de planilhas de dados informativos no sistema, que mais servem para atender os burocratas do poder público do que as necessidades e interesses pedagógicos de professores e alunos. Experimenta, desse modo, formas mais sórdidas e sutis que lhe são impostas de fora, com o objetivo de domar a comunidade escolar.
Neste modelo imposto, não há interesse em tornar a educação um bem público e comum, porque ocorre um processo enorme de privatização e de represamento do potencial intelectual e formativo da comunidade escolar, ou seja, de gestores, professores e alunos. Por fim, a escola deixa de ser o espaço de liberdade, orientada pelo tempo livre voltado para o ócio estudioso, que está na base da formação profissional e cidadã, para se tornar o espaço regido pelo tempo produtivo, milimetricamente calculado para tornar os alunos futuros profissionais, aptos à concorrência, eficiência e lucratividade.
Saber gerenciado em detrimento do conhecimento formativo
A educação compreendida como bem comercializável e gerida empresarialmente provoca profundas reformas curriculares. Como se trata de formar indivíduos competentes e competitivos, esta nova exigência muda significativamente a formação nas escolas. Introduz-se, declaradamente, nos currículos a ética empreendedora, que conduz a um tipo de preparação que visa a busca pelo sucesso profissional baseado no desempenho individualista, eficientemente lucrativo. Assim, as bases da educação cooperativa e comum cedem lugar a ofertas de programas de formação da iniciativa privada, organizada por diferentes institutos privados, que se tornam responsáveis para oferecer a educação empreendedora exigida. A fonte da eficácia passa a encontrar-se no indivíduo — somos os únicos responsáveis por aquilo que acontece — e o professor passa a ser o grande vilão pelo insucesso do aluno, da carreira e da própria educação. Se não sair da escola um aluno empreendedor de si mesmo, o grande responsável por este fracasso é sua equipe de gestão, com seu respectivo corpo docente5.
Neste contexto, a escola precisa ser flexível para poder formar também um futuro trabalhador flexível, que possa se adaptar melhor às demandas do mercado. Esta nova “ordem educacional” apresenta-se por meio de inúmeros novos componentes curriculares, cujo exemplo paradigmático no Ensino Médio são os itinerários formativos, onde o saber historicamente acumulado por gerações anteriores perde seu valor. Como o que importa é a busca eficiente por emprego e renda, a noção de formação cultural ampla que prepara para o exercício da cidadania democrática perde sua validade e, quando ainda é tematizada por algumas disciplinas do currículo, reduz-se quase exclusivamente à ótica do gerenciamento empresarial. O saber gerenciado torna-se, então, o único saber útil à escola. Neste contexto, projetos e temas importantes no campo da cultura, do pensamento, do meio ambiente, dos direitos humanos, da arte e da literatura perdem seu valor e seu espaço no interior dos currículos escolares. No caso especificamente brasileiro, a instrumentalização do saber ocorre por meio da Base Nacional Comum Curricular, que com sua lógica baseada nas competências e habilidades conduz à padronização pedagógica.
Aprendizagem baseado no currículo de competências e habilidades
O mapa estratégico de gestão com foco na aprendizagem e na avaliação de resultados norteia as ações do Estado empreendedor e de seu controle educacional. Não falamos mais em formação humana, em projetos culturais e artísticos, mas somente na avaliação das aprendizagens que precisam ser construídas num período fixo, num tempo determinado e com resultados estabelecidos. Não há espaço para relações humanas genuínas, profundas e transformadoras do sujeito, uma vez que esse tipo de proposta é considerado como simples “perda de tempo”. Sendo a profissionalização a nova ideologia, a competitividade orientada pela eficiência e lucratividade passa a ser o axioma dominante. Os jovens ingressam no mercado de trabalho cada vez mais cedo, através de oferta de programas de inserção no mundo do trabalho, que dominam o espaço escolar com cursos curtos, voltados para a aprendizagem de conteúdos referentes ao “mundo da empresa”. A permanência na escola assegurada pela legislação é relativizada, pois o tempo para estar na escola precisa ser substituído pelo tempo produtivo da empresa.
O primado da linguagem das competências6 no âmbito do paradigma da aprendizagem justifica-se por estar de acordo com a noção do saber gerenciado que interessa à lógica empresarial. A noção de competência torna-se mais atrativa porque expressa o procedimento cognitivo próprio ao saber linguístico e matemático indispensável à racionalidade econômico-empresarial que se presta a atender as demandas profissionais postas pelo mercado, visando à formação da mentalidade concorrencial, eficiente e lucrativa. É neste contexto que também se compreende a prioridade concedida nos currículos escolares ao estudo de línguas, principalmente do português e do inglês, e da matemática, porque saber ler, escrever e contar são competências indispensáveis à adaptação mais rápida do futuro profissional ao mercado de trabalho. Não estamos querendo dizer que tais competências não são importantes, uma vez que sem o domínio delas as novas gerações ficam definitivamente excluídas de oportunidades sociais e econômicas. O problema é que a centralidade de tais competências ocorre em detrimento da formação cultural mais ampla, a qual exige a presença, no currículo escolar, de maneira livre e independente, e de forma alguma subordinada, de outras áreas do conhecimento humano. Ao excluir a presença das humanidades, da arte e da literatura, do currículo da educação básica e do próprio ensino superior, o risco é de formar gerações com mentes somente adaptadas, sem estarem mais em condições de pensar por conta própria e sem a capacidade de exercer o pensamento crítico e a capacidade imaginativa7.
Liessmann (2011) mostrou o quanto a sociedade do saber, orientada pelo modelo do gerenciamento empresarial, reduz a formação (Bildung) em deformação (Unbildung), fazendo com que a própria semi-formação (Halbbildung) desapareça. Isso significa que a educação se agrava ainda mais em nossa época, uma vez que não só nos distanciamos do ideal moderno de formação, como também da própria “formação pela metade”, sucumbindo assim na mais completa ausência de educação. Tamanho é, neste sentido, o processo de pauperização cultural levado adiante pela associação entre neoliberalismo e cultura digital, que há uma nova forma de barbarização sutil de nossa civilização. O estudo de Liessmann (2011) também se torna interessante e atual ao mostrar o quanto Pisa e Bolonha contribuem decisivamente para a precarização educacional, desencadeando no interior das escolas movimentos de bloqueio da formação cultural ampla e do pensamento crítico dela resultante. Ora, uma escola que se dobra ao processo avaliativo voltado para o ranqueamento só pode se tornar competente para alcançar os melhores postos, ou seja, o topo da pirâmide, na medida em que focar naquilo que o próprio ranqueamento exige, tendo que deixar de lado, normalmente, aquilo que de fato interessa ao processo formativo.
É precisamente neste contexto de profunda redução da formação à deformação que podemos compreender o perfil e a tarefa do diretor escolar que, sendo reduzido a gestor de negócios lucrativos, precisa desempenhar o papel de gerente empresarial. Assim, deixa de exercer sua função intelectual-formativa para executar o ofício de tarefeiro, com fins burocrático-lucrativos. Submete-se a processos e mecanismos de avaliação constantes através de diferentes técnicas refinadas de gestão, objetivando a competição entre as instituições. Deste modo, estabelece-se na escola a relação empresarial que a torna uma empresa voltada a ofertar serviços aos pais e seus filhos, os quais são tratados como clientes e nesta condição exigem da escola determinado retorno, correspondente ao investimento feito. O resultado disso tudo é que o cotidiano escolar pedagógico se torna cada vez mais invadido pelo saber gerenciado, orientado pela racionalidade empresarial, de cunho burocrático-administrativo. Ou seja, tal invasão provoca o esquecimento da dimensão formativa, que em princípio deveria orientar as ações escolares.
Em síntese, o quadro pandêmico descrito no primeiro tópico do ensaio tornou-se ainda mais grave pelo cenário educacional neoliberal contemporâneo, tratado brevemente neste segundo tópico do ensaio. Poderíamos imaginar que se a educação fosse concebida efetivamente como um bem público, tratada com políticas públicas adequadas, certamente a escola teria tido melhores condições de enfrentar mais rapidamente e de maneira mais organizada a própria pandemia. Contudo, como a educação pública foi sendo sucateada nestas últimas décadas, a própria comunidade escolar sentiu-se ainda mais fragilizada para enfrentar os problemas já existentes e os novos causados pela pandemia. Na sequência, na última parte do ensaio, vamos indicar alguns eixos que podem auxiliar no reposicionamento da educação pública e na redefinição do papel do diretor escolar. Temos consciência de que a construção da cultura formativa, de cunho ético-político, no interior da escola pública, embora não seja obviamente impossível, é uma tarefa eminentemente coletiva, vagarosa e cheia de idas e vindas. Ora, são precisamente estes grandes desafios que tornam ainda mais indispensável o trabalho intelectual-formativo do diretor escolar.
A formação cultural ampla e o papel intelectual-formativo do diretor escolar
Como vimos acima, por já estar profundamente danificada, a escola pública encontrou ainda mais dificuldades para enfrentar o agravamento de seus problemas, causados pela pandemia. Se a predominância do neoliberalismo econômico conduz à barbarização cultural crescente, embrutecendo cada vez mais o espírito humano e tolhendo às novas gerações das oportunidades sociais e culturais que poderiam ser proporcionadas pelo próprio desenvolvimento econômico, faz-se necessário problematizar o significado atualizado da formação cultural ampla e indicar alguns traços do perfil do diretor escolar, que o capacitam para se opor à referida barbarização cultural, oferecendo-lhe condições de liderar junto à comunidade escolar a construção de alternativas possíveis. Embora a tarefa não seja de maneira alguma simples e imediata, ela se torna mais factível quando ancorada numa ideia de formação cultural ampla, orientada pela postura democrático-participativa. Na sequência, vamos tratar de quatro aspectos que permitem entrelaçar a noção ampla de formação com a postura dialógico-participativa do diretor, tornando-o intelectual e pedagogicamente capaz de liderar o processo de resistência tanto à barbarização cultural crescente como ao reducionismo educacional — escolar — contemporâneo.
O primeiro aspecto refere-se à retomada da noção de público que é cara à tradição democrático-republicana ocidental. O sentido da rés-pública como fio condutor da ação humana e institucional precisa ser posta novamente na ordem do dia, para contrapor-se ao individualismo possessivo contemporâneo, em sua versão neoliberal financeiro-empresarial. Deste modo, a ideologia do sujeito empreendedor de si mesmo, tida como única forma de se alcançar uma vida bem-sucedida, precisa ser contestada pelo resgate crítico de traços indispensáveis da formação ética do sujeito, que tem sua âncora em diferentes práticas de si, ou seja, no modo ascético de vida que funda a singularidade humana na diversidade de sua própria existência social e cultural. O interessante deste modo ascético de vida é que ele pressupõe o cultivo exigente do sujeito que só pode ocorrer na companhia ética e, portanto, amiga e solidária dos outros.
A ideia do sujeito possuidor de si mesmo conduz à uniformidade de pensamento e à destruição simultânea das formas plurais de vida em comunidade, uma vez que tal ideia pressupõe que todos os sujeitos precisam ser empreendedores de si, nos mesmos termos e nas mesmas condições impostas pelo neoliberalismo social e econômico e, por isso, precisam ser a qualquer preço superiores e melhores uns em relação aos outros. Esta tendência conduz para a hierarquização e ao totalitarismo de procedimentos, coibindo a liberdade individual de poder iniciar por si mesma um novo estado, uma vez que todos estão assujeitados à teleologia fixa e fatalista do neoliberalismo empreendedor, de caráter concorrencial, eficaz e lucrativo. Tendo de seguir à risca o modo de vida individualista, imposto de fora, o sujeito perde a espontaneidade da livre escolha, para poder buscar outros modos de vida, como, por exemplo, o modo mais solidário e cooperativo. Em síntese, a ausência de tal espontaneidade bloqueia a possibilidade de que o próprio sujeito se questione eticamente e, com base neste questionamento, possa colocar a pergunta pelo sentido da vida bem-sucedida para além do empreendedorismo individualista. Contudo, a ausência de tal questionamento também conduz ao esquecimento da pergunta pelo que constitui o laço do viver juntos, ou seja, da pergunta pelo que constitui efetivamente a dimensão comum do viver juntos. Construir tal dimensão respeitando a pluralidade de formas de vida parece ser o grande desafio de uma educação cidadã e democrática.
Como se pode observar, a pergunta pela formação ética do sujeito contraposta à ética do empreendedorismo individualista torna-se tarefa educacional importante, visando a pensar novamente a difícil questão do comum, como forma de vida possível. Isso remete, então, para o segundo aspecto acima aludido, a saber, à ideia de formação humana. Esta ideia, embora seja tão difícil de ser pensada quanto à própria ideia do comum, tem uma longa história, lançando suas raízes no mundo antigo greco-romano e que pode ser rastreada aos moldes das investigações realizadas surpreendentemente pelo Foucault tardio, especialmente, por aquelas empreendidas por ele em A hermenêutica do sujeito Foucault (2004). Há, ao menos, duas dimensões importantes a serem consideradas aqui, que tornam a noção de formação humana referência crítica decisiva ao reducionismo educacional contemporâneo.
A primeira dimensão refere-se ao esforço foucaultiano em mostrar que a noção de formação inerente ao contexto greco-romano antigo relaciona-se à preparação que está diretamente vinculada no mundo grego com a noção de paraskeué e, no mundo romano, com a instructio. Como paraskeué, a formação diz respeito a um tipo especial e intenso de cuidado que o sujeito precisa ter consigo mesmo, como cuidado prévio e preparatório à sua missão de tornar-se humano e de poder governar humanamente os outros. Como instructio, a formação traduz-se nos exercícios de si que o próprio sujeito precisa lançar mão, como práticas preparatórias de si, visando ao bom governo de si e dos outros. Portanto, o decisivo desta primeira dimensão é que o bom governo dos outros depende do bom governo de si mesmo.
A segunda dimensão diz respeito à imensa possibilidade que abre esta dupla dimensão da preparação, enquanto paraskeué e instructio, para pensar o conceito amplo de formação humana, que vai muito além da preparação especializada, visando ao exercício futuro de determinado ofício. Pois, formação como preparação diz respeito ao amplo cultivo de si, que implica tomar o sujeito como um todo, contemplando todas as suas capacidades intelectuais, emocionais, éticas, políticas e estéticas. Ora, é precisamente esta amplitude da condição humana, manifestada pela pluralidade de suas capacidades, que é negada pelo modelo empresarial que governa a educação contemporânea, com seu respectivo paradigma da aprendizagem alicerçado na linguagem das competências.
O mais importante disso tudo é que esta noção ampla de formação pressupõe também a noção singular de tempo, que não se deixa reduzir à lógica do tempo produtivo, voltado exclusivamente à formação de determinadas profissões. Trata-se da noção de tempo livre, que tem a ver diretamente com a própria noção grega de escola, ou seja, com a skholé, indicando a ruptura com o cotidiano da vida humana e sua respectiva imersão na mecanicidade do funcionamento das coisas e acontecimentos. A skholé grega traduz-se no otium latino, preservando nele este momento de repouso necessário do pensamento dedicado à meditação, pressupondo, para que possa acontecer, o distanciamento da rotina costumeira do dia a dia. Ou seja, tanto a skholé como o otium referem-se à ruptura com aquilo que é costumeiro e que, por ter-se tornado naturalizado, põe-se acima de qualquer possibilidade de questionamento. Se o tempo produtivo se baseia no cronos que mede e calcula tudo, o tempo livre baseia-se no kairós formativo, que em vez de apressar os procedimentos, conduzindo os seres humanos à superficialidade dispersiva, possibilita-lhes a postura da meditação serena, vagarosa, que está na base da autorreflexão, da qual resulta a própria formação como autoformação. Deste modo, é o ócio estudioso — formativo8 — que impede a escola de ser reduzida apenas à preparação para o mundo do trabalho, isto é, que impede que ela seja concebida apenas como preparação para um ofício determinado. Com foco no ócio estudioso, a escola, além de não se deixar dobrar mais às exigências mercadológicas, pode redirecionar suas atividades curriculares com vistas a assegurar a ampla formação das capacidades humanas, considerando a condição humana em suas múltiplas dimensões do pensar, sentir e agir.
O trabalho intelectual-formativo do diretor escolar
O entrelaçamento conceitual entre educação pública, formação humana e escola como espaço do kairós formativo possibilita também repensar o perfil e o papel do diretor escolar. Lembremo-nos, novamente, de acordo com o diagnóstico acima, que o nexo destrutivo entre neoliberalismo econômico, paradigma da aprendizagem movido pela linguagem das competências, e a escola empresarial conduz ao desaparecimento da ideia de formação cultural ampla e do próprio sentido formativo do papel do diretor escolar. Se o sentido formativo repousa fundamentalmente na atuação intelectual e pedagógica do diretor, cabe perguntar agora em que consiste propriamente tal atuação. O contraponto com o papel exclusivamente gerenciado, ou seja, burocrático-administrativo do diretor neoliberal, torna-se instrutivo para esclarecer o sentido formativo. Como vimos, o diretor baseado no procedimento do gerenciamento empresarial ocupa-se prioritariamente com o manuseio de números e planilhas visando ao melhor ranqueamento de sua escola e, para alcançá-lo, precisa mobilizar toda a comunidade escolar nesta direção, fazendo o pedagógico-formativo sucumbir diante da força métrica exercida pela atração da busca pelos primeiros postos do ranqueamento. Deste modo, a conquista de números cada vez mais elevados para engordar as planilhas só pode acontecer na medida em que a escola for capaz de criar um ambiente interno de forte concorrência entre seus membros, tornando-a assim apta para competir e ganhar de outras escolas. Neste contexto, ao abdicar da formação e do estudo, o diretor torna-se um exímio tarefeiro num duplo sentido: como serviçal da mentalidade burocrático-empresarial e como facilitador didático das atividades pedagógicas já muito reduzidas, uma vez que a mentalidade da escola já se deslocou para o mundo mercadológico da concorrência lucrativa. Ao vestir a camisa neoliberal do gerenciamento empresarial, o diretor escolar enfraquece extraordinariamente seu perfil intelectual-formativo, deixando de contribuir, em última instância, com a formação humana em sua comunidade escolar.
Contudo, em que consiste o papel intelectual-formativo do diretor e que condições há efetivamente de colocá-lo em prática? Há duas diretrizes de fundo que são importantes para problematizar o papel do diretor na perspectiva intelectual-formativa. A primeira diretriz é ética, e pode ser retomada do diálogo crítico com a tradição greco-romana, ancorada na forma ascética de vida. Este modo ascético de vida pode subsidiar provocativamente o trabalho de gestão nos moldes metafóricos de uma estilística da existência. Como estilística, a pergunta pelo sentido da existência implica tomar a condição humana em todas as suas dimensões e capacidades, movendo-as por meio de diferentes práticas de si. Tais práticas podem ser organizadas e dinamizadas coletivamente, como, por exemplo, em grupos permanentes de estudo que possam assumir a perspectiva interdisciplinar aberta e transversal, capaz de dar voz a todas as disciplinas curriculares envolvidas. Por meio do trabalho intelectual-formativo, o diretor cultiva e conduz a pluralidade de vozes existente em sua comunidade escolar, assemelhando-se, metaforicamente, ao escultor que lapida cuidadosa e vagarosamente sua obra de arte. Ele a faz brotar da matéria bruta, sem agredi-la e, portanto, sem desfigurar sua forma originária. Contudo, para que o diretor possa alcançar este nível elevado de lapidação de sua obra, ele precisa sofrer o próprio processo doloroso e permanente de lapidação interna, confrontando-se com o amor excessivo de si, que o conduz ao falso e perigoso desejo de onipotência. Portanto, a base ética do trabalho intelectual-formativo do diretor é o cultivo de si no sentido do autoexame crítico de si mesmo que conduz a sua própria autoformação, pois é o autoexame permanente que oferece ao diretor a firmeza das virtudes morais necessárias para dirigir, de maneira franca e serena, a si mesmo e aos outros.
A diretriz política está intrinsicamente vinculada com a diretriz ética, sendo em certo sentido resultante dela. Por isso, o político remete imediatamente à postura problematizadora do espaço do viver juntos, ocupando-se com a difícil questão do que efetivamente constitui o laço social e humano da comunidade. Não compete obviamente ao diretor definir o que é o comum que enlaça a pluralidade do viver juntos, mas assegurar o espaço livre e dialógico, para que uma possível e provisória definição do comum brote de tal pluralidade. Neste contexto, sua postura não pode ser nem desinteressada e nem partidária, no sentido de tomar posição passional e imediata por um só dos lados. Na figura exemplar do intérprete mediador de conflitos e movido pelo diálogo parresiástico, o diretor precisa desenvolver a capacidade de escuta e, ao tomar a palavra, orientar-se pela coragem do franco falar. Esta raiz parresiástica do franco falar e da escuta silenciosa ativa embasa a postura democrático-participativa do diretor, transformando-o numa liderança intelectual-formativa respeitada pela comunidade escolar. Compreendida assim, a gestão democrática significa a forma de governo ético que se traduz simultaneamente na postura político-formativa, pois tem a ver com a exigência do cultivo intenso de si como condição primeira de sua possível contribuição ao bom cultivo dos outros.
Neste ensaio refletimos sobre o modo como a crise pandêmica agravou ainda mais a situação da educação escolar, desnudando inúmeros problemas educacionais já existentes. Partindo de um diagnóstico do tempo presente, chegamos à conclusão de que a crise pandêmica jogou a favor de tendências educacionais neoliberais e, ao invés de livrar a comunidade escolar do espírito mercantil de aguda competição monetarizada, também dos bens culturais, acentuou-os ainda mais. Deste modo, ao fortalecer o empreendedorismo individualista, o neoliberalismo educacional jogou a escola na batalha concorrencial consigo mesma e com as outras escolas, destruindo experiências solidárias e cooperativas existentes. Neste contexto, o diretor foi obrigado a abdicar progressivamente de seu papel formativo para simplesmente estimular a concorrência, visando ao posicionamento de sua escola no nível mais alto do ranqueamento. Como a concorrência neoliberal não possui compromisso com a ideia do comum e se descola intencionalmente do processo formativo em sua dimensão ético-política, e como nem todos conseguem alcançar o topo da pirâmide na concorrência educacional escolar, o que sobra, em última instância, é o sentimento de profunda frustração que gera a desunião e o vazio formativo-cultural da comunidade escolar.
Como contraponto normativo a este cenário angustiante e destrutivo, buscamos recuperar alguns aspectos da dimensão ético-política inerente à ideia de formação humana, colocando-os na base da postura intelectual do diretor. Torna-se possível concluir agora que o sentido ampliado de formação tem muitos efeitos pedagógicos práticos no contexto escolar, os quais permitem que a condução organizada da dinâmica cotidiana do processo de ensino e aprendizagem possa ser pensada de outra maneira, tornando-se inclusive resistente à lógica do paradigma da aprendizagem e à noção de tempo produtivo a ela correspondente. A postura alicerçada no ócio estudioso desperta — e este é o núcleo de todas as alternativas possíveis — o espírito investigativo e questionador e o gosto refinado pela cultura, pela formação do pensamento crítico, pela cidadania universal e pela capacidade imaginativa (Dalbosco, 2021). O ócio estudioso permite transformar o gosto cultural diversificado no núcleo central da formação para a cidadania democrática e da própria formação do sentimento de responsabilidade para consigo mesmo, com os outros e com o mundo-ambiente mais amplo.
Podemos ver, em síntese, que a principal e mais difícil tarefa intelectual-formativa do diretor é sua contribuição para transformar a escola em espaço do tempo livre, ou seja, em lugar majestoso do ócio estudioso. Pois, é o diretor inflamado pela formação cultural mais ampla que consegue compreender o quanto o ócio estudioso torna-se a principal forma de resistência à barbárie cultural e ao embrutecimento humano que dela resulta. Em síntese, por sua aposta na formação cultural mais ampla, alicerçada nas experiências individuais e coletivas que ocorrem no interior da escola, o diretor contribui decisivamente para a humanização ético-política da comunidade escolar em sua interação permanente com a sociedade. Cabe lembrar que a referida humanização começa e precisa começar com a atitude corajosa do sujeito mesmo, de adquirir a coerência e a franqueza necessárias para contribuir com a transformação de outros sujeitos.
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Dalbosco, C., Filho, F., & Cezar, L. (2022). Desamparo humano e solidariedade formativa: crítica à perversidade neoliberal. Educação & Sociedade, (43), e244449. https://doi.org/10.1590/ES.244449
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1 Para uma defesa da escola pública, mostrado o que é o especificamente formativo-educacional nesta perspectiva, ver o estudo de Masschelein e Simons (2018).
2 Considerando a vastidão e a pluralidade teórica das investigações sobre o neoliberalismo, cabe mencionar o estudo pioneiro de Foucault (2022) e, posteriormente, diretamente a ele vinculado, o estudo de Dardot e Laval (2004).
5 Para uma crítica psicanalítica ao neoliberalismo e aos efeitos perversos que ele provoca no sujeito contemporâneo, ver Dalbosco et al. (2022).