Criações com Alice no País das Maravilhas: Professoras de Matemática Pesquisam sobre Relações Étnico-Raciais

Resumo

Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla que aborda relações entre educação matemática e arte tanto na formação do professor como na escola1. O estudo se baseia em Experiências Formativas pautadas em perspectivas do filósofo francês Gilles Deleuze, entendendo a aprendizagem como experiência e sentido, transversal e imprevisível e a arte como um disparador de signos O livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, foi utilizado para movimentar a formação tradicional e excessivamente matemática das professoras Para tanto, professoras de matemática em formação inicial e continuada realizam pesquisas e propõem oficinas focalizando temáticas associadas à obra: lógica e nonsense, noção de tempo, revolução industrial, era vitoriana e relações étnico-raciais. O presente artigo se concentra nesta última, ou seja, em questões atinentes ao racismo e, para isso, também toma uma obra de arte, o quadro denominado A redenção de Cam. A Experiência permitiu vincular o estudo da matemática e da lógica com os paradoxos e o racismo emergente na época em que Carroll escreveu o livro.

Palabras-chave: lógica, nonsense, relações étnico-raciais, Alice no País das Maravilhas, aprendizagem como experiência, arte, matemática.


1Projeto Fapesp 2022/06901-9 Edital Fapesp /Seduc 15317. Pesquisadora responsável Denise Vilela.

1. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos (São Paulo) Brasil.

denisevilela@ufscar.br

Recibido: 19/Octubre/2023

Revisado: 05/Abril/2024

Aprobado: 19/Junio/2024

Publicado: 23/Julio/2024

Para citar este artículo: Vilela, D., Silva , D., Araújo , M., & Vicente , S. E. (2024). Creaciones de Alicia en el País de las Maravillas: los Profesores de Matemáticas Investigan las Relaciones Étnico-Raciales. Praxis & Saber, 15(42), 1–21.

https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n42.2024.16673

Denise Vilela 1

Deborah Silveira 1

Maiara Bernardini 1

Stefhani Pereira 1

Alices Creations in Wonderland: Mathematics Teachers Investigate Ethnic-Racial Relations

Abstract

This article is part of a broader research project that addresses the relationship between the teaching of mathematics and art, both in teacher training and in schools. Drawing from the viewpoints of French philosopher Gilles Deleuze, the study frames learning as experiential and meaningful, characterized by transversal and unpredictable pathways. Additionally, it highlights art’s role as a catalyst for meaningful signs. Lewis Carroll’s book Alice in Wonderland was used to shake up the traditional and overly mathematical teacher training. To achieve this, mathematics educators, in both initial and continuous training, engaged in research to design workshops centered around themes related to logic and nonsense, the concept of time, the Industrial Revolution, the Victorian era, and ethnic-racial relations. This article focuses on the latter, that is, on issues related to racism, and for this purpose, the painting titled Cam’s redemption was also incorporated into the study. The Experiment allowed linking the study of mathematics and logic with the paradoxes and racism that arose at the time Carroll wrote the book.

Keywords: logic, nonsense, ethnic-racial relations, Alice in Wonderland, learning as experience, art, mathematics.

Creaciones de Alicia en el País de las Maravillas: los Profesores de Matemáticas Investigan las Relaciones Étnico-Raciales

Resumen

Este artículo forma parte de un proyecto de investigación más amplio que aborda la relación entre la enseñanza de las matemáticas y el arte, tanto en la formación del profesorado como en la escuela. El estudio parte de Experiencias Formativas basadas en las perspectivas del filósofo francés Gilles Deleuze, entendiendo el aprendizaje como experiencia y significado, transversal e imprevisible, y el arte como desencadenante de signos El libro Alicia en el País de las Maravillas, de Lewis Carroll, se utilizó para sacudir la formación tradicional y excesivamente matemática de los profesores. Para ello, los profesores de matemáticas en formación inicial y continua realizan investigaciones y proponen talleres centrados en temas asociados a la obra: la lógica y el sinsentido, la noción del tiempo, la revolución industrial, la época victoriana y las relaciones étnico-raciales. Este artículo se centra en estas últimas, es decir, en las cuestiones relacionadas con el racismo, y para ello toma también una obra de arte, el cuadro titulado La redención de Cam. El Experimento permitió vincular el estudio de las matemáticas y la lógica con las paradojas y el racismo que surgían en la época en que Carroll escribió el libro.

Palabras clave: lógica, sinsentido, relaciones étnico-raciales, Alicia en el País de las Maravillas, aprendizaje como experiencia, arte, matemáticas.

Introdução

Este artigo faz parte de um Projeto mais amplo que aborda relações entre Educação, Ciências, Matemática e Arte na escola e na formação de professoras/es. O projeto foi denominado como Novas abordagens em Ciências e Matemática na escola: itinerários em Arte-Educação. Trabalhamos com Experiências Formativas, que também denominamos oficinas, como alternativa a uma formação conteudista, visando fomentar algo diferente nas aulas de matemática e, assim, escapar da repetição e da aula expositiva. A proposta é uma alternância ao ensino tradicional, ainda dominante nas aulas de matemática, em que se situa o docente ao centro e o aluno de forma passiva e periférica, prevalecendo uma ideia de aprender por transmissão de conhecimento (Oliveira, 2009).

As Experiências Formativas se associam, como uma opção ou variação, ao que frequentemente se denomina como “metodologias de ensino”. Isso porque tal expressão tem afinidade com as propostas tecnicistas da educação brasileira da década de 1970 em que, diante da reforma ampla do ensino instaurada logo após o golpe militar de 1964, as disciplinas do campo pedagógico são vistas como técnicas para ensinar conteúdos (Tacon, 2010). As experiências formativas propostas escapam da ideia de uma metodologia de ensino aplicada a um conteúdo ou à técnica para transmiti-lo. Não se guarda a dicotomia conteúdo-método e as aulas se desenvolvem, no caso em questão, com vivências ou experiências, sendo esta entendida como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (Larrosa, 2002, p. 21).

Neste artigo serão abordadas práticas realizadas junto às professoras, autoras do artigo e membros da equipe do Projeto as quais podem criar novas oportunidades de aprendizagem, como, por exemplo, visitas à museus, exposições, centros de ciências e astronomia, ter contato com as artes plásticas, literatura e com demais produções culturais. Essas experiências incentivam as/os docentes a proporcionar os mesmos tipos de vivências aos educandos e educandas. Associar, na formação docente, o estudo de matemática às artes não visa apenas a uma abordagem cultural e atraente, mas permite questionar o ensino pautado apenas com valores afins das ciências exatas, cujo pensamento é demonstrativo e objetivo. Nesse sentido, destaca Kessler (2002), o habitus do professor de matemática privilegia o racional, o quantificável e o que pode ser verificado. Em contrapartida, “desvaloriza elementos da ordem do sensível, como a emoção, a intuição, a imaginação” (Kessler, 2002, p.6) Concordamos com Fisher (2008) que as emoções e sentimentos – que parecem alheios à atividade do trabalho com amatemática e impertinentes às ciências exatas– são imprescindíveis à formação e atuação do/a professor/a.

Nossa proposta não considera a arte uma solução ou um domínio superior. Em vez disso, entende que sua presença no contexto educacional pode favorecer práticas que valorizem ações de criação que abram novos caminhos de pensamento. A arte, incluída nas oficinas, visa liberar signos, permitir acontecimentos, já que possibilita experimentar outros modos de estar na sala de aula. Constitui-se numa tentativa de libertar a educação de suas estruturas de pensamento e ação centradas em tendências hegemônicas.

Entre as Experiências desenvolvidas na pesquisa, neste artigo o foco será o estudo do livro Alice no País das Maravilhas, de Charles L. Dodgson (1832-1898), que atuou como professor de Matemática na Universidade de Oxford e usou o pseudônimo Lewis Carroll para assinar suas obras literárias. Esta obra de Carroll foi escolhida por explorar uma mundividência de lógica e nonsense, bastante relevante na formação do/a professor/a de matemática, em que se pode, assim, contemplar uma formação filosófica. Em Alice podemos explicitar os princípios e regras da Lógica Clássica e ter também o contato com elementos não lógicos e fantásticos, mesmo assim absolutamente compreensíveis (Vilela & Dorta, 2010). A obra de Carroll, em nosso trabalho que vem sendo realizado na formação inicial e continuada de professores, foi aberta às associações a transdisciplinaridade, como veremos ao longo do texto, considerando o contexto da época em que o livro foi escrito. Nesse livro Carroll retrata Alice como uma menina que, com curiosidade e estranhamentos típicos da idade, questiona os padrões impostos pela sociedade da sua época.

De fato, a obra de Carroll nos descortina múltiplos olhares, abrindo algumas de suas “camadas” possíveis quando abordada, conforme mencionado no folder da exposição do Farol Santander (2022). Nesse sentido, por intermédio de uma ampla revisão bibliográfica, os seguintes temas foram relacionados: lógica e nonsense, a noção de tempo, revolução industrial, era vitoriana e relações étnico-raciais.

A noção de tempo nos remete a “Proust e os signos” de Deleuze (1987) e mencionamos Eufrásio (2017) que discute noções de tempo na obra de Carroll. Pesquisando sobre o contexto da época, com base em Montoito e Garnica (2015), delineamos a proposta de estudo da História da Educação, da Era Vitoriana e da Revolução industrial inglesa (Mendes, n.d.). Aprofundando-nos a respeito desta última temática, percebemos um nexo entre ela e o tema da escravidão, que culminou, justo naquela ocasião, na invenção do conceito de raça. Dessa forma, incluímos a perspectiva etnico-racial na nossa pesquisa.

Este último será o caso considerado em virtude da atualidade e relevância das discussões étnico-raciais no Brasil, uma vez que pela Lei nº 10.639/03 é obrigatório o estudo da história e da cultura afro-brasileira e africana nas redes públicas e particulares de ensino. É importante vincular o estudo do racismo à formação de professores/as de matemática, visto que dessa forma se cria uma oportunidade de contemplar a discussão.

Considerando a parte teórica do projeto acima mencionado, a ênfase das Experiências Formativas está centrada na problematização de uma noção hegemônica de aprendizagem como aquisição de conhecimento. Nesta investigação alcançamos reflexões mais abrangentes, as quais entendem que o aprender não se restringe a entornos formais e, portanto, seria reducionismo considerar a aprendizagem de fenômenos complexos por meio de instrumentos tradicionais que claramente “minimizam essa complexidade” (Hernández. et al, 2020, p. 22). Para expandir a compreensão em torno do aprendizado utilizamos a filosofia de Gilles Deleuze (1925-1995), em que se encontra a afirmação de que “Jamais se sabe como alguém aprende” (1987, p.10). A formação docente, portanto, se coloca em diálogo com conceitos deleuzianos, tal como o de aprender em consonância com as experiências e a estética dos afetos, abrindo assim novas possibilidades de análises.

O objetivo é experimentar o referencial deleuziano tanto para estudar Alice como também para ser vir de base teórica mediante as realização de atividades com professoras e professores tanto em formação quando com aquelas e aqueles que estão em serviço na rede estadual de ensino. Em consonância com esta filosofia, fazemos o que se pretende ensinar realizando atividades e praticando matemática integrando-a com outras áreas de conhecimento de modo criativo. No limite, ensinar sendo uma dobra da dobra, pois, de fato, se trata de pensar e viver, diferentemente de transmitir conteúdos.

Iniciamos apresentando a Alice no país das maravilhas, obra que fez eclodir nossos pensamentos. Também vamos discorrer sobre aspectos da filosofia de Deleuze utilizados para discutir o livro, além de abordar a noção de aprendizagem. Em seguida, versando sobre o contexto da época em que o livro foi escrito, resgatamos uma das oficinas criadas, a que discute a teoria da eugenia e relações étnico-raciais. Em vista disso, cogitamos abordar o tema em aulas de matemática partindo de Alice, mas também, em direção a um ciclo sem fim, valendo-nos de outra obra de arte, pintura intitulada A Redenção de Cam, de 1895, de Modesto Brocos.

Na conclusão, apontaremos em que medida a experiência com Alice permitiu transitar pela matemática e pela arte, de forma rizomática, não sequencial e previsível.

Referencial teórico

Que tipo de experiências a leitura de um livro pode provocar em professoras em serviço e em estudantes da licenciatura em Matemática? Como aprender incluindo afetações, para além do óbvio, nas oficinas propostas? Observamos, inicialmente, que a experiência de formação caminha nas fronteiras da matemática, da filosofia, da história e da lógica. A experiência formativa, nessas fronteiras, propicia a perplexidade. Podem existir paradoxos, ambiguidades e contradições? Perguntam os estudantes após explicitarmos os aspectos lógicos e o nonsense na obra. O que faz sentido e o que é nonsense?. Como lidar com a existência deles em uma aula?, diz a professora com estranhamento e espanto. O que faz sentido e o que é nonsense?

O nonsense das obras de Carroll foi propulsor de experimentações filosóficas para Deleuze. No prólogo do livro Lógica do Sentido, Deleuze (2015), afirma que “o lugar privilegiado de Lewis Carroll provém do fato de que ele faz a primeira grande conta, a primeira grande encenação dos paradoxos do sentido, ora recolhendo-os, ora renovando-os, ora inventando-os, ora preparando-os”. Nesta obra, “Alice provoca uma rebelião contra uma visão racional do mundo, e as grades convencionais do desejo” (Farol Santander, 2022, p.86). Segundo Sanches (2022), Carroll permite compreender que o sentido tem uma relação necessária com o nonsense, a ponto de não existir sem ele:

Não se trata de uma relação dialética, como se só soubéssemos o que é absurdo por oposição ou comparação com o que faz sentido; trata-se de uma relação constitutiva, onde o nonsense é ele mesmo motor da produção de sentido. O sentido não está lá pronto, esperando para ser descoberto; ele deve ser produzido e sua criação reside nos paradoxos. (Sanches, 2022, p. 81)

No mundo das maravilhas ou em Alice através do espelho, o nonsense não é ausência de sentido, mas é a subversão da razão que permite inverter e multiplicar os sentidos (Sanches, 2022). O nonsense não é o contrário do sentido, e sim “a negação de um não sentido” (Malheiros & Meira, 2023, p. 188). “¿Es porque absolutamente nada tiene sentido en este universo que entonces somos capaces de comprenderlo mejor?” (Slobogin, 2015).

Se se pode falar de uma lógica em Deleuze, ela seria, segundo Souza (2018, p.150), “uma lógica generalizada”, seriam lógicas irracionais, mas “não ilógicas. O equívoco estaria em ver uma continuidade entre a lógica e a razão”. O autor prossegue citando Deleuze, os movimentos aberrantes de Lapoujade: “em Deleuze, irracional não é sinônimo de ilógico” (Souza, 2018, p. 150). Numa espécie de reelaboração dos três princípios da lógica clássica (da identidade, da não contradição e o terceiro excluído), Deleuze os subverte substituindo o princípio da identidade pelo princípio da diferença; o da não contradição pela contradição e o do terceiro excluído pela inclusão, gerando multiplicidade. Diante do princípio da identidade, destacamos o fundamento e a subordinação das conjunções ao verbo ser, aspectos negados por Deleuze e Guattari, citado por Souza (2018, p. 154):

Consequência do “princípio” de diferença é a recusa da predicação (S é P), uma vez que é a identidade do conceito que possibilita a predicação: não é mais possível dizer que A é A, ou ainda, A é B. A lógica deleuziana destroniza o verbo ser para “instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo”.

Rejeitar o princípio da identidade é afastar do fundamento, da fixidez, da causa primeira e, portanto, admitir o regresso ao infinito, o movimento, o “desabamento” (Souza, 2018, p.150). Sem o fundamento (raiz, origem), o modelo da árvore, do pensamento inflexível, é substituído pelo rizoma, sistema aberto, não hierárquico e que explode em todas as direções. Nossa proposta questiona a aprendizagem como aquisição ou apropriação de conteúdos pré-delimitados. Aderimos, sim, ao propiciar experiências, praticar a matemática numa perspectiva transdisciplinar, com curiosidade e criatividade. De tal forma que os estranhamentos gerem vida (Amaris-Ruidiaz & Miarka, 2021).

Para Deleuze (1987), o aprender se refere essencialmente aos signos, em uma experiência pessoal, relacional e temporalmente localizada e situada. Uma obra de arte – e, no caso desta pesquisa, o livro Alice –pode valer mais do que uma obra filosófica quando os signos movimentados por ela acionam campos de intensividade mais amplos do que as significações explícitas almejadas pela filosofia. A aprendizagem dos signos corresponde “a viver a experiência por dentro” (Deleuze, 1987, p. 4).

Na arte, segundo Favaretto (2010, p. 232), “os experimentos, as proposições de toda sorte, funcionam como interruptores da percepção, da sensibilidade, do entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido”. “Desvio do Eterno para aprender o novo” (Dias, 2012, p. 37). O imprevisível da arte mobiliza o pensamento e o impulsiona até o novo. É nesse sentido que a ênfase das experiências formativas está na experiência e criação, e não nos conteúdos; tem como referência que “pensar é experimentar, é problematizar, encontrar” (Kohan, 2002, p.127).

Para Deleuze (1987) o pensamento não é espontâneo e natural, mas sim um desdobramento da violência promovida por situações concretas as quais nos impulsionam com determinação. O que nos violenta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é “aquilo que faz pensar” (Deleuze, 1987, p. 30).

A aprendizagem inventiva, de acordo com Dias (2012, p. 32), é “aberta (...) porque pode trabalhar atuando não por regras curriculares lineares, mas operando pela invenção daquilo que força tanto o professor como o aluno a pensar”. Não é predizer, mas “estar atento ao desconhecido que bate à porta” (Deleuze citado por Dias, 2012, p. 37). Diante do processo de formação de professores, sair da estagnação “implica engajar-se numa experiência, assumindo riscos, sofrendo abalos na certeza”, sabendo que não há garantias (Rodrigues, 2010, p.255). Diante do processo de formação de professores, entendemos que sair da estagnação “implica engajar-se numa experiência, assumindo riscos, sofrendo abalos na certeza”, sabendo que não há garantias de onde iremos chegar (Rodrigues, 2010, p.255). Afirmamos, junto com Dias (2012, p.33) que “abrir o espaço e o tempo para os acontecimentos, do modo que eles se dão”, pode produzir pensamentos involuntários, espaço para espantos, estranhamentos.

Abrir o espaço e o tempo para “perder tempo”. O “tempo perdido” (Deleuze, 1987, p. 17) se refere ao tempo que passou, mas não só como “tempo passado”, é também o tempo que se perde ou, ainda, é se perder no tempo.

Em oposição à filosofia platônica da verdade transcendente, Deleuze (2015, p.1) afirma que as obras Alice e Através do Espelho “tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os acontecimentos”. Um acontecimento é caracterizado como Kairós, um diferente do cronos incessante, um tempo que saiu do tempo linear e abre para a experiência; aquele que se abre para uma experiência única e “fazendo coincidir o passado e o futuro” Deleuze (2015, p.1). “A agitação típica do mundo capital nos impede a memória, a introspecção, a tranquilidade e o contato interior, nos afastando do que o autor entende por experiência.”

A Experiência abriu a possibilidade de estudar e vivenciar diferentes noções de tempo. Vivenciar diferentes noções de tempo é sempre produção de um coletivo, pois a diferença é necessariamente fruto de um coletivo já que é fruto de composições das forças que constituem determinado contexto sociocultural; abrir-se para a diferença, diz Dias (2012, p. 32), é “um exercício constante contra práticas de captura de viver, que ocorrem nas relações cotidianas”. Elas se dão quando aprisionamos um sujeito a um verbo que age designando-o, “o professor está desanimado; o aluno está agitado...” sair disso requer certa ousadia que só se sustenta num coletivo. Por isso, produzir coletivo é condição de trabalho. Coletivo (...) como um processo que cria um campo de multiplicidades, de possibilidades” (Machado, 2012, p. 8). No âmbito do coletivo se esclarece a noção de estética que permeia a Experiência Formativa, uma estética tal que não se reduz ao belo universal, como afirmam Bedore e Beccari (2017, p.492):

[...] e sim ao que se sente como belo em determinado momento, o que se relaciona com nossos sentidos e conhecimentos do mundo, gerando satisfação e prazer, pois nos fazem sentir parte do mundo, com vida, em uma reciprocidade, dado que as afetações não se dão de modo unilateral.

Nosso posicionamento ético também decorre da nossa perspectiva inspirada na filosofia como prática de vida em oposição à filosofia como doutrina, conforme expresso em Vilela (2019). Praticamos em sala de aula o que se pretende ensinar, num exercício de vivenciar situações desafiadoras, inéditas, abrindo para “pensamentos de um tipo não restrito ao “raciocinar ou calcular ou argumentar” (Larrosa, 2002, p.21). Aprender é transversal, ocorre “pelas vias mais diversas” (Roos, 2004, p. 8, p. 10) e, assim, impede uma explicação simples. Apresentamos, em seguida, a investigação realizada por professoras de matemática em formação. Para abordar o tema da eugenia e relações étnico-raciais, partimos de características da Época Vitoriana e de aparências físicas de Alice para chegar ao que nos era, então, desconhecido.

Carroll e a Época Vitoriana: os valores no início da era industrial

Aprofundando sobre o contexto em que Caroll produziu a obra Alice, serão destacados da literatura aspectos da interlocução do autor com as facetas racistas do período. Alice questiona valores e faz perguntas sobre questões morais e sociais do período em que transcorre a história (Mendes, n.d.). Na época em que foi escrita Alice, a hipocrisia perpassava muitos aspectos da vida e da organização social, tais como a arquitetura e as vestimentas. O modelo de casamento estava voltado a interesses e religião.

Por um lado, Alice questiona a hierarquia e organização social da Inglaterra de 1865, que possuía uma estrutura rígida com lugares e movimentos perfeitamente demarcados, leis claras e bem definidas. Uma sociedade puritana que está aparentemente bem organizada e funcionando adequadamente. Mas, paradoxalmente, o rei, a rainha e os mandatários com títulos de nobreza, apesar de conhecerem as regras, não as obedecem; agem de forma arbitrária e imprevisível: “Cortem-lhe a cabeça!” Grita a rainha repetidas vezes. Alice, ao assistir o jogo de críquete da rainha, questiona que eles se comportam de forma absurda, pervertem o jogo na medida em que ignoram ou refazem as regras a seu bel-prazer.

Por outro lado, em seus questionamentos, ela também expressa os preconceitos comuns na época, por exemplo, a idealização da mulher, de gênero e racial, como será tratado adiante . Coelho (1991) realizou uma análise sobre isso em que cita trechos bem marcantes sobre o livro:

O que pode parecer brincadeira gratuita é, em essência, uma análise lúcida dos exageros a que as convenções dominantes estavam submetendo os homens. [...] Na verdade, Carroll realiza em Alice no País das Maravilhas uma lúcida crítica aos costumes ou equívocos da civilização de seu tempo, atingindo especialmente as falhas do sistema de ensino vigente. (Coelho, 1991, p. 127)

Durante o reinado de 63 anos da Rainha Vitória (1837-1901), as crianças eram vistas e criadas como mini adultos que deveriam seguir leis e regras, as mesmas dos adultos em termos de comportamento social. As regras eram também em relação à classe social, rígida, hierárquica e injusta, para garantir luxos e ostentações pela exploração da classe trabalhadora. Sem chances de mobilidade social, os membros da classe baixa precisavam trabalhar nas indústrias. Nessa época, as mulheres de classe alta tinham que “ser doces, frágeis, ornamentais e dependentes, sem nenhuma função, salvo admiração inspiradora e ter filhos” (Brown, citado por Terres, 2021, p. 43). As mulheres fortes eram ridicularizadas pela sociedade, sendo estereotipadas como agressivas e transgressoras. Alice é reproduzida de acordo com os padrões da época, com a aparência angelical, loira e de pele branca. Gardner (2013 citado por Terres, 2021) afirma que, na época da Inglaterra vitoriana, havia a tendência de idealizar a beleza e a pureza virginal das meninas; na literatura, os autores deixavam em evidência a beleza de meninas virgens, pois eram consideradas puras pela sociedade e religião. Por outro lado, Alice é questionadora e inteligente. Suas perguntas ao longo da narrativa podem gerar espanto, dada a sua espontaneidade infantil.

Durante a Era Vitoriana, o Reino Unido evoluiu econômica e cientificamente. Nesse período, as explicações científicas ganharam força e colocam a figura do homem numa posição de intelectualidade para, justamente, criar a posição de poder para que ele ocupe em detrimento das mulheres. Surge também o processo de industrialização, que demandou que a população migrasse do campo para a cidade para trabalhar nas fábricas. Com isso, polarizou-se a função diferente do homem e da mulher na organização social bem como a divisão das funções entre os sexos: a mulher fica responsável pelo lar, criando os filhos, enquanto o homem pode trabalhar, votar e estudar.

O preconceito contra a mulher era extremo e também nessa época se iniciava o preconceito contra os negros. Santos e Marques (2012) analisam o preconceito como um julgamento de um grupo dominante ou majoritário sobre outro, que resulta em diversos desrespeitos, como sexismo, homofobia e racismo. No início desse século havia grande concorrência entre as indústrias na Europa, a qual, somada com a saturação do mercado, os riscos de falência e a busca por lucros levaram à necessidade de expandir o capitalismo para outros países. Nesse ínterim, a necessidade de matéria-prima a um baixo custo e de consumidores resultou na invasão e dominação de regiões do continente africano, uma vez que a África era um país rico em matéria-prima. Sendo assim, foi explorada e dominada, política, cultural e economicamente:[...] os governos europeus utilizaram a força militar para subjugar e explorar as populações do continente africano. A imposição da cultura europeia se deu em simultaneidade com a desvalorização da cultura local (Santos & Marques, 2012, p. 8).

No período de 1865, época em que Carroll escreveu o livro Alice, o Reino Unido estava determinado a promover a abolição da escravidão em todo o mundo como parte de sua política externa, começando por impor o fim do tráfico transatlântico de escravos. Mas vejamos: não por uma causa humanitária, e sim por uma luta concorrencial. O Reino Unido havia proibido o tráfico de escravos em suas colônias em 1807 e estava comprometido em reprimir o tráfico em todo o mundo. Como desdobramento dessa determinação, a pressão internacional para o fim do tráfico de escravos ecoou do dentro do Brasil o crescente movimento abolicionista. A escravidão no Brasil continuou até 1888, quando a Lei Áurea foi sancionada, abolindo no plano oficial a escravidão em todo o território nacional. Porém, uma política de cancelamento conduziu os escravos libertos a ficarem sem terras, sem opções de moradia, trabalho, educação e sobrevivência, imergindo-os na pobreza e em trabalhos inferiorizados, com baixa ou nenhuma remuneração.

Para justificar essa situação de exploração, intensificou-se nesse período o racismo, uma ideologia em que uma raça acredita ser superior à outra. O termo “raça” passou a ser utilizado para referenciar as divergentes características fenotípicas entre os indivíduos, além justificar a dominação cultural e política de um povo sobre outro (Santos & Marques, 2012). As manifestações racistas se multiplicaram no século XIX com a expansão do capitalismo industrial promovido pela Inglaterra, uma vez que nesse período a depreciação da classe trabalhadora se tornou uma política que se justificava ideologicamente. Destacamos que os africanos passam a compor a classe trabalhadora ao mesmo tempo que o racismo se instala nesse âmbito. observa que não existem diferentes raças biológicas entre os seres humanos, mas que mesmo assim socialmente esse termo é utilizado como uma categoria política.

Nos estudos de relações sociais é muito importante compreender o conceito de etnia. Santos e Marques (2012) observam que etnia é uma palavra de origem grega e se refere a um povo ou nação. Para os autores, a partir de Cashmore (2000), a etnia faz referência a um grupo que apresenta características e culturas em comum, isto é, “um grupo étnico é mais do que um ajuntamento de pessoas, às pessoas deve ser agregado seu pertencimento histórico e cultural” (Santos & Marques, 2012, p. 4). Além disso, apontam que o termo passou a ser empregado para abordar povos de nacionalidades e características que não as do colonizador, como povos originários, negros, entre outros. A seguir, ilustramos tanto a invenção do racismo como a inferioridade associada aos negros, conforme expresso nas tentativas, inclusive científicas, de eliminação dos negros para o que se dizia aprimoramento da população brasileira.

Relações étnicos-raciais no Brasil: a teoria da eugenia em A redenção de Cam (1895)

Figura 1

A redenção de Cam (1895) - Modesto Brocos



Fonte: Reprodução fotográfica César Barreto. <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3281/a-redencao-de-cam>.

A pintura da figura acima foi executada em um período logo após a promulgação da abolição da escravidão e a implantação da República no país. Nesse contexto, o Brasil buscava se modernizar e demonstrar um suposto progresso usando a Europa branca como modelo de referência. Entretanto, cabe ressaltar que a população brasileira da época era bastante miscigenada. Tomando a Europa branca como modelo, surgiram, no século XIX, as chamadas teorias científicas do branqueamento, de acordo com Roncolato (2018). Uma proposta para aumentar a população branca consistia em miscigenar gradualmente a população negra e branca, incluindo os imigrantes europeus, com o objetivo de alterar o perfil racial do país.

Para uma transição de predominância de população negra para uma população branca, foi elaborada por Francis Galton (1822-1911) a teoria da eugenia, o qual, em 1883, cunhou este termo (Castañeda, 2003). A eugenia visava ao “melhoramento” da raça baseando-se no controle de matrimônios. Aspectos morais e influências socioeconômicas são evidentes na concepção e crença dessa teoria, a qual se mostrou infundada. Destacamos na eugenia o determinismo biológico, ou seja, a suposição de que os indivíduos já nasciam prontos para serem brilhantes ou estúpidos, geniais ou medíocres, saudáveis ou doentes (Cowan, 1977 citado por Castañeda, 2003, p. 903). Galton criou um programa, considerado científico, para melhorar artificialmente a raça humana, adotando a população rica da Inglaterra como parâmetro. Envolvia a regulação do casamento com o objetivo de incentivar os indivíduos que ele considerava física e mentalmente superiores a escolher parceiros com características semelhantes. Fica então explícita uma suposta superioridade de uma raça sobre a outra, e um subentendido preconceito racial.

A pintura A Redenção de Cam é uma representação visual dessa tese da eugenia. Stepan (2006, p. 142 citado por Lotierzo, 2013, p. 27) considera o quadro como uma “representação dramática da fantasia brasileira da regeneração racial nos trópicos por meio do branqueamento”.

[...] A Redenção de Cam é um exemplo incomum de exibição pública da “clandestine, illicit nature” das relações inter-raciais; ao inserir esta imagem entre fontes que elucidam a construção da feminilidade na cultura vitoriana, a autora conclui que “the mulattaroon performs as an iconic sign of miscegenation, whose signification summarizes otherwise unrepresentable, unspeakable acts”. Esta última perspectiva, que parece viabilizada por um olhar pautado na classificação racional binária adotado nos Estados Unidos (...). (Brody, 1998 como citado em Lotierzo, 2013, p. 28)

O título da obra - A Redenção de Cam - evoca o mito bíblico da maldição lançada por Noé a seu filho Cam. De acordo com a narrativa, Noé teria adormecido embriagado de vinho, e Cam, como zombaria, expos a nudez do pai aos irmãos. Por isso, Cam teria sido alvo da maldição de Noé, que foi dirigida ao filho de Cam, Canaã, e a todos os demais descendentes dele. Essa maldição condena todos os descendentes de Cam a ser “servos dos servos”. Há versões desse mito que representam Canaã e os descendentes de Cam como negros.

De acordo com Lotierzo (2013), o mito bíblico da maldição de Noé, amplamente difundido, tem seu contexto na chamada Era Moderna, período em que a cristandade europeia buscava justificar a prática da escravidão de indivíduos provenientes do continente africano sob a égide do cristianismo.

Fazendo uma leitura do quadro, vemos, da esquerda para a direita, uma senhora negra, descalça sobre um chão de terra, que ergue as mãos e os olhos aos céus, num gesto de agradecimento. Ao lado da senhora negra está uma mulher, de tom de pele mais claro, que segura seu bebê branco no colo. E há um homem branco à sua direita. As três personagens - avó, mãe e o bebê - representam as três gerações necessárias para o Brasil se tornar um país branco. O homem branco da direita, marido da mulher e pai da criança, olha para o menino com admiração. Ele, de acordo com Roncolato (2018), é o elo que permite o branqueamento dos descendentes da senhora, que pode ser uma escrava, e assim a sua salvação. Isso remete à branquitude, ou seja, às diferentes formas de percepção do mundo que manifestam a prerrogativa de que ser branco é um privilégio.

O texto bíblico sobre a redenção de Cam é uma reinterpretação do mito da maldição de Noé que, seguindo as teorias da época, aponta que a salvação – ou “redenção” – dos descendentes de Cam se daria por meio da sua extinção, por meio de castração, esterilização e por efeito do branqueamento. De acordo com Lotierzo (2017), a imprensa do período, em artigos de intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, traz de forma recorrente a ideia de que a morte pode ser vista como uma redenção para as pessoas negras, implicitamente sugerindo-lhes a extinção, até mesmo por meio do embranquecimento. Este seria um caminho em direção à emancipação, expressa dessa forma violenta. Lotierzo (2017) ainda ressalta que Brocos (1852-1936), autor do quadro, espanhol naturalizado brasileiro que chega a ser diretor da Escola de Nacional de Belas Artes, utiliza um mecanismo perverso ao atribuir um suposto voluntarismo às mulheres negras, retratando-as como agentes ativos do processo de embranquecimento, como se estivessem celebrando essa possibilidade.

Para Lotierzo (2017), a prevalência dessas percepções e suas implicações representam um dos aspectos mais evidentes do racismo à brasileira, demandam ações urgentes que promovam uma conscientização e reparação das desigualdades raciais. Sendo assim, promover situações para uma educação antirracista, a fim de que se valorize todas as etnias, respeitando as diversidades existentes no corpo social, para, de fato , democratizar a sociedade.

Relações étnico-raciais na escola

Essas situações vivenciadas no período do colonialismo ainda refletem a forma como a sociedade está constituída hoje. Nesse panorama, Bispo (2021) lembra a importância de discutir questões étnico-raciais com os alunos desde a Educação Infantil, pois mesmo no século XXI ainda há padrões estruturais reproduzidos pela sociedade como consequências do colonialismo e imperialismo. A autora aponta que o Brasil é uma sociedade construída com fundamento em ideias eurocêntricas. Assim, ao longo da história, instalam-se concepções que apontam os colonizadores como heróis, enquanto os povos originários e negros selvagens ficam desprovidos de identidades e, por conseguinte, inferiores aos brancos. Diante desse panorama, o racismo estrutural acompanha toda a história da população negra, afro-brasileira, entre outras, o que acarreta uma vivência saturada de marginalização e opressão.

A obra de Lewis Carroll, aqui abordada, é um livro infanto-juvenil, com grande potencial educativo. No início da história, Alice não se conhecia como a antiga Alice de sempre, com mudanças de tamanho. Podemos dizer que passava por uma crise existencial, não conseguia se visualizar como um ser único. Em meio a essa situação, pôs-se a cogitar quem ela poderia ser realmente, e isso a levou apensar em sua amiga Mabel. Nesse momento, conforme constatam Silva e Tavares (2020), expressa também a visão negativa que se tinha dos pobres, que viviam em “casinhas miseráveis” e eram desprovidos de bens materiais (brinquedos): “Devo ser Mabel afinal de contas, e vou ter de ir viver naquela casinha miserável, sem ter quase nenhum brinquedo para brincar, e oh, sempre tantas lições para estudar! Não, já decidi: se sou Mabel, vou ficar aqui embaixo! (Carroll, 2010, p. 21)”.

Além disso, os autores Silva e Tavares (2020) escrevem a respeito do autoritarismo e emancipação na obra intitulada “A Inocência de Alice na Antítese entre Autoritarismo e Emancipação”, na qual refletem sobre os livros infantis que se situam em extremos:

Em algumas obras, direcionadas às crianças, o sonho, a fantasia, o sem-sentido se instauram como subversão do mundo racional dos adultos. Noutras, porém, a reflexão engendrada é sobre temas sociais – racismo, misoginia, diferenças entre classes etc. O que temos é a produção de um adulto para uma criança na qual se materializam as ideias dos mais velhos acerca do que as crianças devem ser e como precisam pensar. Temos um sistema binário, pelo qual o livro infantil ora desenha o sonho da infância, ora sobressalta o intuito de formação. (Silva & Tavares, 2020, p.34)

Os autores ainda advertem sobre o papel da Educação nesse contexto, quando mostram à criança algo pronto e imutável: o status quo. Em virtude disso, se a obra for analisada de uma perspectiva emancipatória é possível problematizar os padrões eurocêntricos presentes em Alice e desenvolver a perspectiva crítica nas crianças.

Para abordar o racismo na instituição escolar, Bispo (2021) utiliza as ideias de Munanga (2005), apontando que muitas vezes são produzidas consciente e inconscientemente atitudes racistas arraigadas na sociedade. Para exemplificar essas ideias, a autora discorre sobre os painéis decorativos nas escolas e a utilização dos livros didáticos, pois estes possuem pouca representatividade de pessoas negras e, quando aparecem, estão em posição inferiorizada. Ademais, nas escolas, a cultura negra é abordada de forma breve e pejorativamente em oposição à ênfase na cultura eurocêntrica: “A representação da população negra no livro didático está sobre o olhar da subalternidade e inferioridade. Nessa perspectiva, a política de branqueamento se fortalecia na sociedade mediante o processo de estigmatização e inferiorização do ‘outro’” (Bispo, 2021, p, 103).

Bispo (2021) afirma ser vital desenvolver essa percepção nos estudantes desde cedo, pois: “[...] é na educação infantil que se reproduz e propaga o comportamento colonizado, excluindo e invisibilizando povos que aqui estavam e que aqui chegaram ocasionando as diversidades de etnias, cultural e religiosa (Bispo, 2021, p. 99)”.

A vasta bibliografia acima, abre possibilidades de aprofundamentos em temas que foram apenas sugeridos, tal como as questões raciais no Brasil da época, os efeitos da redenção de Cam em nossa reflexão étnica, entre outros. Para o fechamento do texto, apresentamos alguns destaques retomando nosso referencial teórico.

Considerações finais: o racismo estrutural na educação escolar

O livro Alice no País das Maravilhas, escrito em 1865 por um matemático, é pertinente pela transdisciplinaridade que possibilita e pelos aspectos lógico-matemáticos nela presentes. A obra também é válida para contemplar os limites da racionalidade, importantes na formação do professor de matemática:

Na tensão, que se faz entre as forças que favorecem a manutenção de um modo de vida estável, fixo e identitário [ou de uma aula previsível e igual] e um campo de forças constituído pela realidade sensível, que não para de afetar nossos corpos, pedindo passagens para mudanças irreversíveis na cartografia vigente. (Rodrigues, 2010, p. 247).

O objetivo da Experiência Formativa na formação inicial e continuada de professores alcança a criatividade em um trabalho coletivo com oficinas em que foi possível transitar pela matemática e pela arte, de forma rizomática. A inventividade, a arte, as associações que se manifestam na pesquisa descrita rendiam um engajamento e envolvimento diferente, pois ressoam para além do tempo dos encontros presenciais. Como professora, participando dessa e de outras oficinas realizadas, posso afirmar que os temas e experiências vivenciadas transcendem a sala de aula, nos levam a imaginar, passear e a formular questões.

Com isso, neste artigo problematizamos a formação de professores no que se refere à formação cultural e especializada internamente à matemática, a qual influencia sua visão de matemática, de aula e dos objetivos do ensino. Tendo a obra de Carroll como disparador de sentidos, a criação de oficinas e as pesquisas que a subsidiaram permitem refletir de modo profundo. Neste caso, a questão do racismo vinculada à aula de matemática, conforme se vê na tela de Brocos e A redenção de Cam, perpassada pela teoria da eugenia. Teoria preconceituosa e falsa, mas que nos desloca do convencional da aula de matemática levando-nos para “o não pensado (ou pouco pensado) ao habitar algum território de conhecimento que está além do seu domínio original” (Rodrigues, 2010, p. 247).

Da filosofia de Deleuze que subsidia a presente investigação, realçamos o uso da arte no relato acima: a literatura de Carroll e, internamente a uma das oficinas, a tela de Brocos, num processo de “desdobramento” do ciclo, em regressão ao infinito, de “proliferação indefinida” de sentidos (Deleuze, 1987). Foi possível escapar do tempo cronológico e se distrair da racionalidade, imaginar e fazer acontecer nos encontros. De fato, admitindo que “nunca se sabe como uma pessoa aprende” (Deleuze, 1987, p. 22), as afetações não são determináveis e aqui manifestamos um pouco do que nos acontece nessa experiência:

Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. (...) Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam [...]. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende. (Deleuze, 1987, p. 22)

Declaraciones finales

Contribución de los autores. Denise Vilela: conceptualización, análisis formal, investigación, recursos, supervisión, escritura (borrador original), escritura (revisión del borrador y revisión/corrección), administración del proyecto; Deborah Silveira: conceptualización, análisis formal, investigación, escritura (borrador original), escritura (revisión del borrador y revisión/corrección); Maiara Bernardini: conceptualización, análisis formal, investigación, escritura (borrador original), escritura (revisión del borrador y revisión/corrección); Stefhani Pereira: conceptualización, análisis formal, investigación, escritura (borrador original), escritura (revisión del borrador y revisión/corrección).

Conflictos de interés. Declara-se que os autores, em sua prática profissional, trabalho científico ou de ensino, não têm nenhum conflito de interesse em potencial que possa ter repercussões na pesquisa ou no conteúdo do manuscrito.

Financiación. Projeto Fapesp 2022/06901-9. Novas abordagens de Ciências e Matemática na Escola: itinerários em Arte-Educação. Edital Fapesp /Seduc 15317. Pesquisadora responsável Denise Vilela. Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro concedido a essa investigação, processo: 2022/06901-9.

Implicaciones éticas. Sem implicações éticas

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