Universidade Federal de Pernambuco, Recife (Pernambuco), Brasil

monica.franciele@ufpe.br.cl

Recibido: 10/Enero/2024

Revisado: 02/Abril/2024

Aprobado: 06/Junio/2024

Publicado: 13/Agosto/2024

Julgamento Moral em Crianças: um Instrumento de Avaliação em Formato Multimídia

Resumo

O Julgamento Moral consiste na avaliação positiva ou negativa da conduta de outrem. Este estudo visou a construção e aplicação de histórias-estímulo em formato multimídia para avaliação do Julgamento Moral de crianças sobre: a qualidade de ações bem e mal intencionadas e justiça da conduta materna. Para alcançar esse objetivo, dividiu-se o percurso metodológico em duas etapas: 1) processo de construção das histórias-estímulo, com importantes diferenciais, como: intenções explícitas dos personagens, consequências dos atos de semelhantes gravidades, inserção de uma figura materna, etc.; 2) aplicação do instrumento em uma amostra de 33 crianças, com idades entre 4 e 11 anos, residentes em Recife-PE. Os resultados indicaram que crianças a partir dos 4 anos de idade são capazes de realizar julgamentos pautados nas intenções explícitas dos agentes, indicando autonomia precoce. Em contrapartida, identificou-se julgamentos de crianças acima dos 8 anos de idade pautados nas consequências dos atos ou nas reações da figura materna das vinhetas, possivelmente ancoradas no estágio de heteronomia. Dessarte, o instrumento mostrou-se adequado para identificar os aspectos que guiam os julgamentos morais de crianças em idade escolar.

Palavras-chave: desenvolvimento moral, avaliação, crianças em idade escolar.

Para citar este artículo: da Silva, M. F., & Roazzi, A. (2024). Juicio Moral en Niños: un Instrumento de Evaluación en Formato Multimedia. Praxis & Saber, 15(41), 1–20. https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n41.2024.16745

Mônica Franciele da Silva1

Antonio Roazzi

Children’s Moral Judgments: an Evaluation Instrument in Multimedia Format

Abstract

Moral Judgment consists of the positive or negative evaluation of the conduct of others. This study aimed at the construction and application of stimulus stories in multimedia format to evaluate children’s Moral Judgment regarding: the quality of good and bad intentioned actions and justice of maternal conduct. To achieve this objective, the methodological path was divided into two stages: 1) process of constructing stimulus stories, with important differences, such as: explicit intentions of the characters, consequences of acts of similar gravity, insertion of a maternal figure, etc.; 2) application of the instrument to a sample of 33 children, aged between 4 and 11 years, living in Recife-PE. The results indicated that children from 4 years of age are capable of making judgments based on the agents’ explicit intentions, indicating early autonomy. On the other hand, judgments of children over 8 years old were identified based on the consequences of acts or the reactions of the maternal figure in the vignettes, possibly anchored in the heteronomy stage. Therefore, the instrument proved to be suitable for identifying the aspects that guide the moral judgments of school-age children.

Keywords: moral development, evaluation, schoolchildren.

Juicio Moral en Niños: un Instrumento de Evaluación en Formato Multimedia

Resumen

El Juicio Moral consiste en la evaluación positiva o negativa de la conducta de los demás. Este estudio tuvo como objetivo la construcción y aplicación de historias estímulo en formato multimedia para la evaluación del Juicio Moral de los niños respecto de: la calidad de las acciones bien y mal intencionadas y la justicia de la conducta materna. Para lograr este objetivo, el camino metodológico se dividió en dos etapas: 1) proceso de construcción de historias estímulo, con diferencias importantes, tales como: intenciones explícitas de los personajes, consecuencias de actos de similar gravedad, inserción de una figura materna, etc.; 2) aplicación del instrumento a una muestra de 33 niños, con edades entre 4 y 11 años, residentes en Recife-PE. Los resultados indicaron que los niños a partir de 4 años son capaces de emitir juicios basados en las intenciones explícitas de los agentes, indicando autonomía temprana. Por otro lado, se identificaron juicios de niños mayores de 8 años a partir de las consecuencias de los actos o de las reacciones de la figura materna en las viñetas, posiblemente ancladas en la etapa de heteronomía. Por tanto, el instrumento resultó adecuado para identificar los aspectos que orientan los juicios morales de los niños en edad escolar.

Palabras clave: desarrollo moral, evaluación, niños en edad escolar.

Introdução

O intuito de um instrumento psicológico é acessar o construto para o qual foi destinado mediante a mensuração dos comportamentos observáveis que o representam (Andrade & Valentini, 2018). A respeito do Julgamento Moral, que se refere à avaliação positiva ou negativa da conduta de outrem, Jean Piaget foi o primeiro a deslocar o estudo desse construto do campo filosófico para o eixo investigativo da psicologia cognitiva-construtivista através da utilização de histórias-estímulo e entrevistas com crianças em diferentes estágios de desenvolvimento cognitivo-emocional. As evidências inéditas de suas investigações foram publicadas na obra O juízo moral na criança, em 1932.

Todavia, estudos (Armsby, 1971; Berg-Cross, 1975; Elkind & Dabek, 1977; Martins, 1988) revelaram dificuldades em estabelecer relações semelhantes às encontradas por Piaget, como entre a progressão da idade infantil e os aspectos intenção e consequência, que orientam o julgamento da conduta dos demais. No entanto, conforme discutido nos tópicos posteriores, essa divergência repousa sobre o recurso metodológico adotado nas pesquisas, sendo assim, o instrumento utilizado por Piaget era adequado ao seu objetivo e justifica as evidências encontradas.

Em vista disso, este artigo se propôs tanto a apontar a razão de tais resultados destoantes e apresentar o processo de construção e aplicação de histórias-estímulo em formato multimídia, com vista a contribuir para investigação do Julgamento Moral de crianças, tanto em contexto de pesquisa quanto de educação escolar. As vinhetas possuem propriedades bem definidas – como: intenções explícitas e consequências de semelhantes níveis de gravidade das ações de personagens infantis –, projetadas para identificar se: i) os raciocínios morais de crianças a partir dos 4 anos de idade são orientados pelas intenções ou consequências dos atos; ii) a reação positiva ou negativa de uma figura materna (adulto cuidador) influencia o julgamento das crianças sobre os atos bem ou mal intencionados; e iii) como os infantes avaliam condutas maternas que podem ser consistentes com as intenções ou com as consequências das ações dos personagens infantis das histórias-estímulo.

Além de ser o primeiro instrumento no Brasil a combinar tais propriedades, dispõe ainda de versões-controle e contempla representatividade racial, controlando a variável racismo durante os julgamentos morais, através da randomização das histórias apresentadas. Desse modo, acredita-se que essas histórias-estímulo representam um interessante recurso para analisar em que se pautam os conceitos de certo e errado nas crianças, que devem ser desenvolvidos primordialmente na infância (Tan & Yasin, 2020), pois representa a fase crítica para o desenvolvimento moral, com mudanças marcantes no raciocínio e emoções morais e uma notável maior sensibilidade e respostas intensas às injustiças (Strauß, Bondü & Roth, 2020; Strauß & Bondü, 2021).

Recentemente, Rodrigues e Bataglia (2022) apontaram serem necessários estudos que foquem no desenvolvimento moral das crianças no contexto escolar, visto que ainda predomina a tendência de uma abordagem coercitiva e autoritária nas escolas, o que reforça vivências de heteronomia pelos estudantes com os profissionais da educação. Essa tendência tende a atrasar o desenvolvimento moral das crianças, pois, sendo de natureza social – e acontecendo no âmbito das relações e interações que os infantes estabelecem com seus pares e adultos de referência (Barrios & Branco, 2021) –, necessita que experienciem relações de reciprocidade para alcançarem sua autonomia moral.

Logo, sendo um objetivo da educação básica o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, incluindo as dimensões intelectual, afetiva, social e moral, conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018), a escola pode atuar no desenvolvimento moral dos estudantes através do pilar da socialização (Branco, 2018; Hakkaraine & Bredikyte, 2018) e também investir na formação dos profissionais de educação para domínio do conhecimento sobre as etapas do desenvolvimento moral das crianças, fornecendo instrumentos e técnicas adequadas para sua investigação e intervenção.

Dessarte, este empreendimento científico visou a construção de um instrumento para avaliação do Julgamento Moral infantil para uso em contextos de pesquisa e de educação moral, possibilitando a identificação dos aspectos que orientam os julgamentos de crianças em diferentes estágios de desenvolvimento moral. A partir dos resultados, e considerando a fase do desenvolvimento em que a criança se encontra, a escola pode planejar como trabalhará a compreensão de conceitos que embasam os pensamentos sobre questões morais, como certo, errado, justiça, empatia e bondade, visando o aperfeiçoamento de capacidades sociomorais dos mesmos.

Posto isso, inicialmente é apresentada a concepção de moral adotada neste estudo e discorre-se sobre o construto-alvo, o Julgamento Moral. Em seguida, aponta-se o impasse na literatura sobre a relação entre julgamentos morais e idade das crianças e apresenta-se a proposta do novo instrumento e seus aspectos inovadores. Posteriormente, apresenta-se o método dividido em duas etapas: 1) processo de construção de histórias-estímulo; 2) aplicação do instrumento em amostra infantil.

Piaget: o juízo moral

Na obra de Piaget, a moral foi definida como: “um sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras” (Piaget, 1932/1977, p. 11), ou seja, a moral está diretamente relacionada com a obediência ou não das regras sociais pelos indivíduos. Nesse seguimento, o termo também pode ser compreendido como normas prescritas relativas ao bem-estar, direito, equidade e justiça social (Dahl & Killen, 2018), sendo construídas pelas crianças através das suas interações com o meio.

A evolução do juízo moral na criança foi investigada por Piaget em suas três dimensões: (i) Regras Morais: refere-se à prática e consciência das regras pelas crianças; (ii) Noção de Justiça: trata do que seria uma distribuição justa de recompensas e punições e; (iii) Julgamento Moral: diz respeito aos tipos de raciocínios morais que subjazem as decisões da criança sobre qualidade de uma ação e culpa/justiça ou não do agente.

A evolução do Julgamento Moral na criança

Definido como um elemento cognitivo do desenvolvimento moral (Silva & Martins, 2022), o Julgamento Moral se refere aos tipos de raciocínios que orientam as crianças sobre o que faz uma ação certa ou errada e um indivíduo justo ou injusto, por exemplo. Desse modo, quando o raciocínio infantil se direciona para as consequências das ações – e não para as intenções que as desencadearam – para atribuição da qualidade positiva ou negativa, tem-se um Julgamento Moral por responsabilidade objetiva, que é geralmente aplicado por crianças menores, com média de 7 anos de idade. Em contrapartida, quando o raciocínio para atribuição da qualidade das ações é voltado para as intenções, tem-se um julgamento por responsabilidade subjetiva, empregado por crianças mais velhas, com média de 9 anos.

Tanto o Julgamento Moral quanto as Regras Morais e a Noção de Justiça são perpassadas por uma direção do desenvolvimento moral determinado pelo tempo e por novas aquisições no campo cognitivo e afetivo pela criança, atreladas à interação com o seu meio social. Esse percurso começa na anomia (polo de ausência de consciências das regras), avança para a fase da heteronomia (moral do dever, da obediência), até atingir a fase autônoma (polo de cooperação, a “moral do bem”). As fases de heteronomia e autonomia podem coexistir na mesma criança, e conforme pontuado por La Taille (2006), tratam-se de tendências dominantes pelas quais a criança raciocina moralmente, ou seja, nenhuma criança é integralmente heterônoma ou autônoma.

Nesse sentido, especificamente sobre o Julgamento Moral, uma mesma criança pode ser capaz de raciocinar a moral objetiva ou subjetiva, mas a propensão dominante dos tipos de avaliações utilizadas é o que determina se ela é predominantemente heterônoma ou autônoma. A transição dos julgamentos por consequências para julgamentos por intenções é decorrente do desenvolvimento moral vinculado ao aumento da idade da criança, de sua desvinculação da imposição adulta e de vivência de relações sociais recíprocas com os pares e adultos.

Avaliação do Julgamento Moral

Piaget (1932/1977) acessou os raciocínios morais das crianças através de um conjunto de histórias-estímulo, que se referem a enredos hipotéticos em que personagens infantis, com intenção neutra, boa ou má, praticam atos com consequência positiva ou negativa, de alta ou baixa gravidade, estimulando a criança a avaliação de condutas.

Para exemplifica-las, têm-se o seguinte par de vinhetas utilizadas por ele: (i) um menino chamado Jules teve a ideia de brincar com o tinteiro do pai e deixou cair uma pequena mancha de tinta na toalha de mesa;, (ii) Auguste, com intuito de prestar um favor ao pai e encher o seu tinteiro vazio, deixou cair uma grande mancha de tinta na toalha de mesa. Na primeira história-estímulo, o personagem possuía intenção neutra atrelada à uma consequência negativa de baixa gravidade quando comparada ao segundo personagem, com ação de consequência negativa de maior gravidade, mas intenção positiva subjacente. Após ouvir as histórias, esse teórico solicitava que as crianças as comparassem simultaneamente e atribuíssem a maior culpabilidade pelo dano a um dos agentes.

Embora evidências razoavelmente estabelecidas na literatura científica, consoantes os achados de Piaget, apontem que crianças com menos de 7 anos realizam mais julgamentos morais objetivos (Loos et al., 1999; Roazzi et al., 2000), resultados de estudos robustos (Armsby, 1971; Berg-Cross, 1975; Elkind & Dabek, 1977; Martins, 1988) enfatizaram que infantes menores realizam julgamentos morais subjetivos, desde que as intenções estejam explícitas e as consequências dos atos, sejam elas positivas ou negativas, possuam níveis de gravidade semelhantes entre si. Para esses, foi o nível do dano – nas vinhetas de consequências negativas, por exemplo – que provavelmente fez com que as consequências dominassem os julgamentos das crianças, de modo que se sobressaíram à intencionalidade, o que não significa que crianças menores não realizem julgamentos pautados na intenção.

No entanto, ressalta-se aqui que Piaget não afirmou que crianças com menos de 7 anos realizavam apenas julgamentos objetivos, inclusive ele encontrou casos de crianças com idades inferiores realizando julgamentos por intenção, e relacionou esses resultados à provável disciplina parental pautada na justiça, conforme o trecho: “Na proporção em que os pais sabem ser justos, e, principalmente, ao mesmo tempo que com a idade, a criança opõe às reações adultas seu próprio sentimento, a responsabilidade objetiva diminui.” (Piaget, 1932/1977, p.114, grifo nosso). Então, Piaget estava ciente de que crianças menores poderiam considerar as intenções em seus julgamentos, no entanto, um dos intuitos de seu instrumento era identificar se, mesmo quando as consequências se sobressaíam, as intenções preponderariam os julgamentos dos infantes, e a partir de qual idade isso geralmente acontece.

No tocante ao Julgamento Moral voltado para justiça materna, apenas Johnston e Saltztein (2016) investigaram como crianças de 3 a 11 anos avaliavam a justiça da conduta de mães de histórias-fictícias que elogiavam ou repreendiam personagens infantis que cometeram atos bem ou mal-intencionados de consequências positivas ou negativas. As evidências indicaram que crianças com menos de 7 anos consideravam a mãe como justa quando proferia elogio e injusta, quando repreendia, independente se a conduta materna correspondia com intenções ou resultados dos agentes. Em contrapartida, crianças acima desse marco etário julgaram a conduta da mãe com base em sua consistência com as intenções do(a) filho(a) das histórias.

Portanto, visando investigar se: os raciocínios morais de crianças são pautados na intenção ou consequência para atribuição da qualidade positiva ou negativa das ações; a reação positiva ou negativa de uma figura materna influencia o julgamento das crianças sobre os atos bem ou mal intencionados; e como os infantes avaliam condutas maternas que podem ser consistentes com as intenções ou com as consequências das ações dos personagens infantis das histórias-estímulo; elaborou-se vinhetas modernizadas, visando contribuir para a investigação do Julgamento Moral infantil na contemporaneidade.

Em busca de um atualizado instrumento multimídia

O propósito das histórias-estímulo é estimular e acessar os raciocínios morais das crianças sobre situações que envolvem ações intencionais que geram determinadas consequências. Esse instrumento é ideal para utilização com crianças a partir dos 4 anos de idade (Kawashima, Martins, & Bataglia, 2015), que tem as dimensões afetiva e cognitiva se alinhando e o senso moral surgindo, inicialmente atrelado às determinações da autoridade adulta, a qual dita o que se pode ou não fazer (La Taille, 2006).

Para reprodução de situações cotidianas infantis, as histórias-estímulo englobaram três personagens: (i) protagonista infantil, que comete um ato bem ou mal-intencionado; (ii) personagem infantil, que é sujeito ao ato-intencional de consequência positiva ou negativa executado pelo protagonista e; (iii) figura materna, que reage positiva ou negativamente ao desfecho.

Com relação ao protagonista infantil, o planejamento e caracterização de suas ações foram baseados na Teoria da Atribuição de Heider (1958), que guia as pessoas na compreensão dos eventos para atribuição do nível de responsabilidade do agente pela sua prática. Portanto, ao papel do protagonista infantil foram resguardadas as seguintes características: comete um ato-causal (causado pelo próprio personagem); intencional; espontâneo (não age sob coação); que ocasiona uma consequência física-pessoal direcionada ao segundo personagem infantil. Já esse último, age espontaneamente no enredo e é alvo da ação do protagonista.

Apresentados os personagens e caracterizada a ação do agente infantil, prossegue-se com a descrição das alterações referente às (a) intenções e gravidade das consequências dos atos do agente; em seguida, com o detalhamento dos seguintes aspectos inseridos ao novo instrumento: (b) figura materna; (c) representatividade racial; (d) histórias-controle; (e) formato multimídia; e enredos planejados de acordo com a (f) Análise Gramática das Histórias, de Stein e Glenn (1979).

a) Intenções e gravidade das consequências

Nas vinhetas, as intenções dos atos são explícitas e as suas consequências, tanto positivas quanto negativas, possuem níveis semelhantes de gravidade. Essa decisão pautou-se nos achados de Armsby (1971), Berg-Cross (1975), Elkind e Dabek (1977) e Martins (1988), que evidenciaram que crianças com menos de 7 anos realizam julgamentos morais subjetivos, desde que as intenções estejam explícitas e as consequências dos atos possuam níveis equivalentes de gravidade.

b) Figura materna

A inserção da uma figura materna nas vinhetas surgiu do intuito de identificar se: a reação, positiva ou negativa, dessa mãe influencia o julgamento das crianças sobre os atos bem e mal intencionados; e como os infantes avaliam condutas maternas consoantes às intenções ou consequências das ações dos protagonistas infantis. Por exemplo, interessou-se investigar como crianças de diferentes idades julgam uma figura materna que pune um(a) filho(a) por ter cometido um ato bem-intencionado, mas de consequência acidentalmente negativa; e como avaliam uma mãe que elogia um ato mal-intencionado e de consequência positiva.

Visto que os raciocínios e deliberações morais são pautados na afetividade, valores pessoais e princípios éticos orientados para justiça, dignidade, respeito e cuidado com o outro (La Taille, 2006), inicialmente aprendidos e experienciados no contexto familiar, acredita-se que a qualidade do vínculo entre mãe – que, de acordo com a Teoria do Apego (Ainsworth & Bowlby, 1991; Ainsworth, Blehar, Waters e Wall, 1978) é a principal figura de apego do(a) filho(a) – e criança pode influenciar tanto seus julgamentos sobre bondade/maldade e justiça quanto o modo como essa criança julga as condutas maternas. Por exemplo, as crianças podem desconsiderar ou se orientar exclusivamente em qualquer sinal materno ao realizar seus julgamentos morais.

c) Representatividade racial

No que concerne à atribuição fenotípica dos personagens, a decisão foi pautada na consideração de que o sentimento de identidade do indivíduo é baseado na percepção de diferenças e semelhanças de si com os demais, inclusive em termos de pertencimento aos grupos raciais. Sabe-se que crianças a partir dos 3 anos de idade já classificam as pessoas em grupos raciais e manifestam atitudes preconceituosas (França & Monteiro, 2013), havendo redução dessa manifestação por volta dos 7-8 anos, em decorrência da aquisição de novas estruturas cognitivas e à introjeção de normas antirracistas e à repreensão social do racismo explícito (Silva, 2014).

Diante disso, para favorecer a identificação das crianças com os personagens, elaborou-se para todas as histórias-estímulo uma versão em que a díade figura materna-protagonista infantil é preta e o personagem alvo da ação é branco, e outra em que esse último é preto e a díade é branca. Com a apresentação randomizada dessas versões, controla-se a variáveis racismo. Essas vinhetas possuem também versões femininas e masculinas, a fim de corresponder ao sexo das crianças participantes.

d) Histórias-controle

Visando avaliar a compreensão das crianças sobre as vinhetas mediante a coerência de suas respostas, elaborou-se histórias-controle em que os aspectos intenção, consequência e reação materna são coerentes entre si. Portanto, a situação que contempla um ato bem-intencionado por parte do protagonista infantil, associado a uma consequência boa e uma reação materna positiva, evocaria nas crianças que compreendessem a história, um julgamento da qualidade da ação infantil como boa e a conduta materna como justa, por exemplo.

e) Formato multimídia

As mídias e os recursos tecnológicos – sejam para fins pedagógicos ou de entretenimento – são constitutivos dos processos de socialização das novas gerações, com utilização defendida inclusive na Educação Infantil escolar, conforme explicitado pelo Ministério da Educação (2009, p. 48): “... é preciso escolher outras formas de priorizar, selecionar, classificar e organizar conhecimentos, mais próximos das experiências dinâmicas das crianças e não da visão fragmentada da especialização disciplinar, problematizada pela própria ciência”.

Desse modo, a ideia de construir o instrumento em formato multimídia adveio da realidade contemporânea das crianças, marcada pelo contato frequente com imagens em movimento oriundas da televisão, jogos eletrônicos e internet, por exemplo. Assim, o caráter dinâmico e atrativo das histórias pode repercutir em maior engajamento das crianças para o pensar moral.

f) Análise Gramática das Histórias

Os enredos foram construídos de acordo com as regras da Análise Gramática das Histórias, de Stein e Glenn (1979), uma ferramenta que auxilia na estruturação de histórias em categorias informacionais que devem estar explícitas para garantir a compreensão holística das histórias pelas crianças.

A principal estrutura desse método é o episódio, composto por uma sequência comportamental de seis categorias, a saber: 1) situação: que introduz os personagens em termos de localização física e temporal; 2) evento iniciante: em que o personagem inicia a sequência comportamental; 3) resposta interna: evocada pela categoria anterior, podendo abarcar respostas afetivo-cognitivas que orientam a realização da ação; 4) ação: ocasionada pelo personagem para realização de suas metas que causa uma; 5) consequência direta e; 6) reação: resultante da consequência, que causa uma reação no ator relacionada à sentimentos, pensamentos e/ou comportamentos.

No caso deste estudo, reformulou-se a categoria 6 substituindo a reação do ator por reação materna. Esse método é considerado por Martins (1986) como adequado para construções de histórias para crianças por identificar categorias informacionais presentes na maioria das vinhetas sobre Julgamento Moral.

Método

Etapa 1: construção do instrumento

Delineamento experimental

Determinou-se que tanto a intenção do ator principal quanto a consequência dos seus atos assumiriam valência positiva e negativa, evocando na figura materna uma reação de elogio ou repreensão diante do desfecho. Desse modo, através da combinação dos aspectos intenção (boa e má), consequência (boa e ruim) e reação materna (positiva ou negativa), construiu-se 8 roteiros (Tabela 1), que, considerando as 2 versões com díade mãe-filho(a) preta e segundo personagem branco e vice-versa, com versões femininas e masculinas, totalizaram 32 histórias-estímulo.

Tabela 1 Delineamento experimental das histórias-estímulo versão multimídia de acordo com as condições intrassujeitos: Intenção (I), Consequência (C) e Reação Materna (R), para Julgamento Moral da qualidade ação infantil (boa ou ruim) e da justiça da conduta materna (justa ou injusta).

Condições

I

Boa (Ib)

Má (Im)

C

Boa (Cb)

Ruim (Cr)

Boa (Cb)

Ruim (Cr)

R

Positiva

Negativa

Positiva

Negativa

Positiva

Negativa

Positiva

Negativa

(Rp)

(Rn)

(Rp)

(Rn)

(Rp)

(Rn)

(Rp)

(Rn)

Histórias (H) / Códigos

H1

IbCbRp

H2

IbCbRn

H3

IbCrRp

H4

IbCrRn

H5

ImCbRp

H6

ImCbRn

H7

ImCrRp

H8

ImCrRn

Julgamento Moral da qualidade da ação infantil

Boa

Boa

Boa

Boa

Boa

Boa

Boa

Boa

Ruim

Ruim

Ruim

Ruim

Ruim

Ruim

Ruim

Ruim

Julgamento Moral da justiça da conduta materna

Justa

Justa

Justa

Justa

Justa

Justa

Justa

Justa

Injusta

Injusta

Injusta

Injusta

Injusta

Injusta

Injusta

Injusta

Nota. I= Intenção do agente infantil; C= Consequência da ação infantil; R= Reação materna.

Fonte: os autores (2023)

Portanto, conforme apresentado na Tabela 1, as 8 vinhetas construídas para investigação do Julgamento Moral infantil foram:

São quatro enredos de intencionalidade positiva e quatro de intenção negativa por parte do protagonista infantil. As histórias 1 e 2 são idênticas quanto à intenção e consequência (ambas de valência positiva), diferenciando-se apenas pela reação materna ao final, sendo positiva no primeiro e negativa no segundo enredo, o que se aplica também aos pares de histórias 3-4, 5-6 e 7-8. Os roteiros 3, 4, 6 e 7 resultaram de múltiplas adaptações das versões de Johnston e Saltztein (2016), em seu trabalho sobre julgamento infantil da justiça materna. As vinhetas 1 e 8 são histórias-controle.

Procedimentos operacionais

A ferramenta utilizada para elaboração das histórias-estímulo em formato de desenho animado foi o PowToon, um software de animação online que possibilitou a criação imagética dos episódios e a inserção do discurso verbal da narradora. As cenas foram criadas de acordo com as ordens sequenciais do método de Stein e Glenn (1978), com estruturação do conteúdo exemplificada na Tabela 2, referente à história-estímulo ٥.

Tabela 2 Roteiro da história-estímulo 5, de Intenção má, Consequência boa e Reação materna positiva, versão feminina (ImCbRp).

Categoria

História 5: ImCbRp

Conteúdo dos episódios

Situação

Alice e Joana eram vizinhas e elas brincavam juntas o tempo todo;

Evento inicial

Alice e Joana estavam fora de casa tentando escolher uma brincadeira, mas Joana não queria brincar das brincadeiras favoritas de Alice;

Resposta interna (Intenção má - Im)

Então Alice estava ficando cada vez mais zangada, porque Joana não queria brincar de nenhuma das brincadeiras favoritas de Alice. De repente, Alice notou uma poça de lama bem grande na rua, e Alice estava com tanta raiva de Joana, que decidiu empurrar Joana na lama de propósito;

Ação

Então, Alice viu Joana correndo na rua e saiu correndo atrás dela, e empurrou Joana na lama;

Consequência direta

Consequência boa (Cb)

Mas Joana não caiu na lama, Joana saltou a lama e continuou a brincar;

6 Reação materna

Reação positiva (Rp)

De repente, Alice olhou em volta e viu a mãe dela. A mãe de Alice estava vendo tudo o tempo todo. Alice pensou que estava muito encrencada porque tentou empurrar Joana na lama de propósito. Alice ficou surpresa quando a mãe dela disse: Ô, Alice! Eu vi o que você fez com Joana, mas tudo bem, continue a brincar.

Fonte: os autores (2023)

O instrumento: histórias-estímulo

O conjunto de histórias-estímulo em formato multimídia elaboradas e apresentadas neste empreendimento científico constitui um instrumento de pesquisa no campo do Julgamento Moral infantil, mais especificamente voltado para a qualidade da ação infantil bem e mal-intencionada e justiça da conduta materna.

As 32 histórias são coloridas, possuem formato padrão Matroskadeo (Mkv) de alta definição, com média de 7 Megabytes (MB) cada, e podem ser acessadas através do link: https://drive.google.com/drive/folders/1I0LgKjbVQBWgs. Na Figura 1 é possível observar a sequência de episódios da história 5, constituindo-se de capturas de tela do referente vídeo.

Figura 1 Capturas de tela da história-estímulo 5, de Intenção má, Consequência boa e Reação materna positiva (ImCbRp), legendadas com discurso da narradora, versão feminina e díade mãe-filha branca.

Fonte: os autores (2023)

Etapa 2: aplicação do instrumento em crianças escolares

Participantes

A amostra consistiu em 33 crianças de escola pública da Região Metropolitana de Recife (RMR), Pernambuco, sendo 45,5% do sexo feminino e 54,5% do masculino, com idades entre 4 e 11 anos (Média= 7,70; DP= 2,24).

Instrumentos

Histórias-estímulo

Para avaliação do Julgamento Moral em crianças sobre a qualidade da ação infantil e justiça materna foram utilizadas as 32 histórias-estímulo elaboradas neste estudo.

Questionário Sociodemográfico

Para identificação e caracterização dos participantes e da sua realidade familiar, utilizou-se um Questionário sociodemográfico, composto por itens como: idade e religião das mães, sexo e idade das crianças. Esse instrumento foi respondido pelas mães das crianças participantes.

Procedimentos

A pesquisa foi apresentada ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (CEP-UFPE) e aprovada sob o CAAE de número 13666519.2.0000.5208, sendo realizada com os(as) infantes somente após a autorização do(a) responsável mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para consentimento do menor (TCLE).

Para coleta dos dados, a pesquisadora se reuniu individualmente com cada criança em uma sala de aula silenciosa e explicou os conceitos de bom, ruim, justo e injusto, para garantir a compreensão desses termos presentes nos questionamentos. Em seguida, foi dada a seguinte instrução: “Tenho algumas histórias e gostaria de saber o que você pensa delas, está bem? Depois de assisti-las, quero que você me diga se a criança da história fez algo bom ou ruim e se a mãe da criança foi justa ou injusta.”, e apresentou-se as vinhetas em monitor.

Para cada enredo, a pesquisadora fez as seguintes perguntas: “A criança da história fez algo bom ou ruim? Por quê?” e “A mãe da história foi justa ou injusta? Por quê?”. As respostas foram registradas em formulário desenvolvido para esse fim (Apêndice 1).

Resultados e discussão

Na Figura 2 é possível observar que a associação entre as variáveis qualidade da Ação (precedidas pelo prefixo A) e justiça da Conduta materna (precedidas pelo prefixo C) – tendo-se como variáveis externas: sexo e grupo das crianças, status de relacionamento e escolaridade das mães – estruturou o espaço do diagrama em duas regiões, em que a primeira abrange tanto as ações infantis julgadas pelas crianças como boas (A.IbCbRp, A.IbCbRn, A.IbCrRp e A.IbCrRn), quanto as condutas maternas consideradas justas (C.IbCbRp, C.IbCrRp, C.ImCbRn e C.ImCrRn). Já a região direita do diagrama englobou tanto as ações elencadas como ruins (A.ImCbRp, A.ImCbRn, A.ImCrRp e A.ImCrRn), quanto as condutas maternas julgadas como injustas (C.IbCbRn, C.IbCrRn, C.ImCbRp e C.ImCrRp).

Figura 2 Diagrama SSA (coeficiente de Jaccard) das relações entre as respostas infantis sobre Qualidadda Ação e Justiça Materna, tendo-se como variáveis externas sexo e grupo etário das crianças, status de relacionamento e escolaridade da mãe.

Nota: O Coeficiente de Alienação para tal projeção foi 0,08054, indicando ajustamento adequado das variáveis no espaço bidimensional do diagrama. O prefixo A, refere-se aos julgamentos sobre a qualidade da Ação. O prefixo C é referente aos julgamentos das crianças sobre a justiça da Conduta materna.

Fonte: os autores (2023).

Com relação às variáveis A.IbCbRp e A.IbCbRn (ambas de Intenção e Consequência boas, mas reações maternas distintas), é possível notar que se aproximam de forma a indicar que a maioria das crianças consideram a ação como boa, mesmo quando a reação materna foi negativa. A história IbCbRp é controle, assim como a ImCrRn, e os dados indicaram que 100% deram respostas coerentes aos enredos – ou seja, ação boa e a conduta materna justa para a IbCbRp e ação ruim e conduta materna justa para ImCrRn –, demonstrando compreensão dos mesmos.

As respostas sobre a qualidade da ação infantil nas histórias IbCrRn e IbCrRp (ambas de Intenção boa e Consequência ruim, mas reações maternas distintas) se aproximaram de modo a indicar que mesmo quando as consequências são negativas, as crianças consideraram as intenções e qualificaram a ação como boa. No entanto, observa-se que uma parcela das crianças com 4 e 5 anos, do sexo masculino, consideraram os atos como ruins, indicando a tendência de julgamentos por consequência, já que as ações foram bem-intencionadas, corroborando os resultados de Piaget (1932), Loos et al. (1999) e Roazzi et al. (2000).

Diante desse resultado é possível planejar atividades escolares que trabalhem com as crianças menores a importância da consideração das intenções no julgamento das ações de outrem, visto que outra parcela com mesma idade alcançou tais resultados e fez julgamentos morais subjetivos, corroborando as evidências dos estudos de Armsby (1971), Berg-Cross (1975), Elkind e Dabek (1977) e Martins (1988), de que crianças com menos de 7 anos já realizam julgamentos morais subjetivos, desde que as intenções estejam explícitas e as consequências dos atos possuam níveis equivalentes de gravidade.

No que diz respeito à conduta materna nas histórias de Intenção boa, quando a reação materna foi positiva (C.IbCbRp e C.IbCrRp), as mães foram avaliadas como justas, o que indica que mesmo quando a consequência é ruim (no caso da história IbCrRp), as mães com conduta pacífica e compreensiva são avaliadas positivamente, já as mães que reagem de forma negativa (C.IbCbRn e C.IbCrRn), são consideradas injustas. Essa evidência indica julgamentos que apresentam coerência entre intenções das ações dos personagens infantis e reação materna frente aos mesmos.

Nota-se, na região direita da projeção, que as reações maternas positivas referentes às histórias de Intenção má e Consequência boa (ImCbRp) e Intenção má e Consequência ruim (ImCrRp) foram consideradas justas por uma parcela das crianças do sexo masculino, de 4 e 5 anos. Essa inclinação das crianças menores considerarem como justas mães que não punem, também foi encontrada no estudo realizado por Johnston e Saltztein (2016).

Ainda com relação às histórias de Intenção má e reações maternas positivas (ImCbRp e ImCrRp), através de análises não-paramétricas com o teste de Kruskal-Wallis para os Julgamentos Morais pelas crianças sobre a qualidade da ação dos personagens infantis, considerando como variável de agrupamentos os grupos etários – G1: crianças de 4 a 5 anos, G2: de 6 a 7 anos, G3: de 8 a 9 anos e G4: crianças de 10 a 11 anos –, nota-se na Tabela 3 que houve diferença significativa entre esses (χ²= ١٠,٩٣٧; gl= 3; p <0,05), sendo constatado, através da análise Post-Hoc, que os grupos que divergiram quanto aos escores foram: G1xG3 e G1xG4. Esse resultado indica a divergência entre o grupo de crianças de 4-5 anos e os grupos de 8-11 anos, pois uma parcela das crianças menores considerou a ação do personagem infantil como boa, quando a consequência e/ou reação materna era(m) positiva(s), mesmo a intenção do personagem infantil sendo má, evidência consoante com os achados de Johnston e Saltztein (2016).

Tabela 3 Médias, teste de Kruskal-Wallis e teste Post-Hoc dos escores da qualidade das ações das histórias em função das faixas etárias.

JM

Faixas Etárias

Escores entre as faixas etárias

1

4-5a.

2

6-7a.

3

8-9a.

4

10-11a.

Qui2

p

Post -1x2

Hoc

1x3

1x4

2x3

2x4

3x4

A.Ib

,500

,750

,805

,611

3,292

,349

-1,44

-1,61

-,61

-,61

-,56

-,95

A.Im

,214

,094

,000

,000

10,937

,012

-1,18

-2,50**

-2,51**

-1,54

-1,54

,00

JM= Julgamento Moral; A.Ib= Ação infantil nas histórias de Intenção boa; A.Im= Ação infantil nas histórias de Intenção má.

Fonte: os autores (2023)

Assim como foram encontradas evidências de crianças de 4 e 5 anos realizando julgamentos morais subjetivos, principalmente para as histórias de Intenção boa. Os resultados também indicaram que algumas crianças acima dos 8 anos de idade julgaram as ações dos protagonistas infantis com base nas consequências ou guiando-se na reação da figura adulta das histórias, o que pode indicar predominância de vivências de heteronomia em casa e/ou na escola.

Diante de tais evidências, pode-se considerar que as histórias-estímulo construídas cumpriram sua função de identificar quais aspectos guiam os julgamentos morais de crianças em diferentes estágios de desenvolvimento, e que crianças com menos de 7 anos são capazes de realizar julgamentos pautados na intenção (indicando autonomia precoce), e em contrapartida, crianças com mais de 8 anos ainda realizam julgamentos com base nas consequências, ancoradas no estágio de heteronomia.

Portanto, esse instrumento pode auxiliar as escolas a identificarem o estágio do desenvolvimento moral predominante de seus estudantes, e planejar programas que visem o avanço das diversas dimensões da moralidade humana, por exemplo, através de jogos (Oliveira, 2017); exposição televisiva pró-social, que abordem temas sobre justiça e cuidado (Cingel & Krcmar, 2017); e fortalecimento da identidade moral dos discentes, que apresenta correlação negativa com o desengajamento moral, de acordo com Morgan e Fowers (2021).

Conclusões

Recapitulando, o presente artigo visou a criação de um dinâmico e atualizado instrumento para investigação do Julgamento Moral de crianças sobre a qualidade de ações bem e mal intencionadas e a justiça da conduta materna: as histórias-estímulo em formato multimídia.

As evidências indicaram que o instrumento é apto para acessar o construto, indicando que crianças a partir dos 4 anos de idade realizam julgamentos subjetivos, desde que as intenções das ações estejam explícitas e as consequências possuam níveis semelhantes de gravidade. Confirmou-se também que as crianças menores consideram as mães que punem como “injustas” e as que elogiam, como “justas”, independente da intencionalidade e consequências do ato.

Dessarte, acredita-se que este estudo represente uma contribuição metodológica ao campo da psicologia e educação moral. Todavia, ressalta-se a importância da replicação deste estudo para averiguação dos resultados em outros contextos, para possíveis ajustes futuros, bem como o cruzamento dos achados com outras variáveis, a fim de investigar os fatores que podem retardar ou promover o desenvolvimento moral das crianças.

Declarações finais

Contribuição dos autores. Autor 1 – Revisão bibliográfica, coleta dos dados e discussão dos resultados. Autor 2 – complementação da discussão dos resultados e revisão da versão final do manuscrito.

Financiamento. Este artigo é parte dos resultados da minha dissertação de Mestrado intitulada “Estilo Parental Materno, Apego Infantil e Julgamento Moral de Crianças sobre Qualidade da Ação Infantil e Justiça Materna”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil. A investigação foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – processo nº 132115/2018-2 (2018-2020).

Conflitos de interesse. Não existe conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Implicações éticas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco (CEP-UFPE) sob o CAAE de número 13666519.2.0000.5208, e conduzida conforme os preceitos éticos determinados.

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Apêndice 1. Formulário de respostas sobre as histórias-estímulo.

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