Conversações Deleuze-Guattari: um entre Máquinas Capitalista e Curricular e Escolar

Resumo

Este texto traz um recorte teórico de uma tese de doutorado na área de educação matemática com foco na discussão curricular a partir de teorizações de Gilles Deleuze e Félix Guattari, para pensar as relações que se estabelecem na escola em função de um aparelho de Estado e de uma máquina que opera para o Capitalismo. Para isso são mobilizados conceitos como agenciamentos molares e moleculares, para discutir como estratos que definem um modo de existência se impõem sobre os currículos; e o conceito pareado de número numerante e número numerado, para investigar como os espaços curriculares podem ser ocupados. Trata-se de conceitos que se forjam em um campo político e podem dar visibilidade às costuras curriculares que se fortalecem ou que se busca romper, sempre em movimentos contínuos. Assim, o texto se constrói por meio de uma prática cartografia que deseja desembaraçar linhas curriculares para problematizar o “entre”, tendo como resultados narrativas referentes ao acontecimento histórico das ocupações das escolas paulistas em 2015. A partir desta costura defende-se a possibilidade de existência de currículos outros possíveis nas bordas de uma maquinaria capitalista.

Palabras-chave: currículo, política, filosofia da diferença, educação matemática.

1. Universidade Federal do Paraná, São Paulo (São Paulo) Brasil.

debora.rpacheco@gmail.com

2. Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia, Tunja (Boyacá) Colombia.

Recibido: 29/Octubre/2023

Revisado: 10/Febrero/2024

Aprobado: 19/Julio/2024

Publicado: 12/Agosto/2024

Para citar este artículo: Pacheco, D. R., & Amaris-Ruidiaz, P. (2024). Conversaciones Deleuze-Guattari: entre las Máquinas Capitalistas y los Planes de Estudio y las Escuelas. Praxis & Saber, 15(42), 1–18.

https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n42.2024.16746

Débora Reis Pacheco 1

Paola Amaris-Ruidiaz 2

Deleuze-Guattari Conversations: Between Capitalist Machines and Curricula and Schools

Abstract

This text presents a theoretical approach to a doctoral thesis in the area of mathematics education with a focus on the curricular discussion based on theorizations of Gilles Deleuze and Félix Guattari, to think about the relationships that are established in the school based on a State Apparatus and a machine that operates for Capitalism. To do so, concepts such as molar and molecular assemblages are mobilized, to discuss how the strata that define a mode of existence are imposed in the curricula; and the paired concept of numerant number and numerated number, to investigate how curricular spaces can be occupied. These are concepts that are forged in a political field and can give visibility to curricular seams that are strengthened or that seek to break, always in continuous movements. Thus, the text is constructed through a practical cartography that aims to unravel curricular lines to problematize the “between”, resulting in narratives referring to the historical event of the school occupations in São Paulo in 2015. From this, the possibility of the existence of other possible curricula on the margins of a capitalist machinery is defended.

Keywords: curriculum, politics, philosophy of difference, mathematics education.

Conversaciones Deleuze-Guattari: entre las Máquinas Capitalistas y los Planes de Estudio y las Escuelas

Resumen

Este texto presenta un abordaje teórico de una tesis doctoral en el área de la educación matemática con enfoque en la discusión curricular a partir de teorizaciones de Gilles Deleuze y Félix Guattari, para pensar las relaciones que se establecen en la escuela en función de un Aparato de Estado y una máquina que opera para el Capitalismo. Para ello se movilizan conceptos como agenciamientos molares y moleculares, para discutir cómo los estratos que definen un modo de existencia se imponen en los currículos; y el concepto pareado de número numerante y número numerado, para investigar cómo se pueden ocupar los espacios curriculares. Son conceptos que se forjan en un campo político y pueden dar visibilidad a costuras curriculares que se fortalecen o que buscan romperse, siempre en continuos movimientos. Así, el texto se construye a través de una cartografía práctica que pretende desenredar líneas curriculares para problematizar el “entre”, resultando en narrativas referidas al evento histórico de las ocupaciones de escuelas en São Paulo en 2015. A partir de ello, se defiende la posibilidad de existencia de currículos otros posibles en las márgenes de una maquinaria capitalista.

Palabras clave: currículo, política, filosofía de la diferencia, educación matemática.

“O que estamos vivendo não é um processo natural, mas uma fase a mais de uma guerra que não cessou [...] temos que imaginar coletivamente novas formas de resistir”

Paul Beatriz Preciado

Introdução

A produção curricular já há algum tempo tem sido tema de interesse em escala mundial, aparecendo como estratégia para solução de problemas educacionais. Não são poucas as políticas públicas que investem na produção de currículos prescritos (Silva, 2019) com o objetivo de melhorar a “qualidade da educação”, temos como exemplo significativo a produção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Muitas destas políticas propostas, a nível municipal, estadual ou federal, aparecem atreladas à indicadores avaliativos e rankings educacionais (PISA, Saeb, Ideb, Prova Brasil)1. Muitas delas também se vinculam à grupos privados com interesses econômicos, como por exemplo, o “Projeto Jovem de futuro” do MEC em parceria com o Instituto Unibanco2.

Trata-se de uma ordem neoliberal conduzida por grupos econômicos poderosos que, enxergam a educação como um negócio rentável, reclamam para si a tarefa de “salvar” a educação tendo como operadores o próprio Estado e diferentes tipos de organizações sociais privadas. (Godoy et al., 2018, p.10)

Currículos propostos nestes contextos chegam para atender as demandas de tais institutos que compõem um modo de existir no mundo, pois o que está em jogo nos currículos é a constituição de modos de existência (Amaris et al., 2020). Portanto, nunca funcionam isoladamente, eles já estão formados e fazem parte de uma estratégia política por meio de seus estratos já constituídos: disciplinas, saberes, professoras, crianças, identidades, livros didáticos e conteúdos.

No entanto, partindo da ideia de que os currículos envolvem tudo que acontece no espaço de proposição de aprendizagens, entendemos que currículos chegam para atender tais demandas, mas não só. Assim, problematizamos a complexidade deste instrumento carregado de subjetivações e fissuras.

Olhar no meio dos currículos vemos muito mais do que decalques. Vemos linhas que não formam qualquer contorno, mas que potencializam aqueles que vivenciam um currículo. [...] Vemos então um currículo-multiplicidade anular os referentes anteriores e utilizar-se de múltiplas linguagens. (Paraíso, 2010, p, 595)

É por isso que um currículo nunca funciona isoladamente, e sim por agregação ou por agenciamento. Funcionam como máquinas que “engendram-se umas às outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo aparecer novas linhas de potencialidades” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 320). Um currículo-máquina como ferramenta de produção que está em movimento contínuo, que organiza e desorganiza, que se acopla e desacopla com outras máquinas (máquina-Escola, máquina-professora, máquina-estudante, máquina-matemática), que aumenta ou diminui intensidades, enquanto opera para a produção de nossa existência, ou à conservação da mesma, conforme a sua finalidade.

Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta. É assim que todos somos “bricoleurs”; cada um com as suas pequenas máquinas (Deleuze & Guattari, 2010, p.11).

Deste modo, este texto visa promover discussões num campo conceitual a partir de reflexões contemporâneas inspiradas em Deleuze-Guattari deslocadas de uma pesquisa (Pacheco, 2020). Discute movimentos curriculares que avessam escolas e políticas públicas por meio de suas linhas de composição sejam elas intensivas, em agenciamentos moleculares que se trançam em outros modos de existência, e/ou linhas extensivas, as quais são molares, conscientes, organizáveis e favorecem a conservação de um aparelho de Estado. Embora sejam heterogêneos, são movimentos que se afetam mutuamente.

Para tanto, tentaremos fazer um exercício cartográfico: desembaraçar tais linhas e mapeá-las, pois, cartografar uma máquina escolar e a produção de seus currículos, “é construir um mapa aberto dos seus segmentos (poderes e territórios) e dos seus pontos de desterritorialização (por onde um currículo foge e faz fugir)” (Paraíso, 2010, p. 590). Um movimento potente para pensar os currículos que temos fortalecido, que seja de cunho democrático e consonante com as máquinas desejantes, para assim dar abertura a outras possibilidades curriculares.

As linhas aqui desembaraçadas falam de corpos idealizados pelos currículos escolares e, consequentemente, das ferramentas mobilizadas para moldá-los em função do aparelho de Estado vigente. Lembrando sempre que as linhas se costuram em muitas direções e, mesmo os currículos procurando direcionar a costura, são muitos os acontecimentos tecidos nesse avesso. Avessos que, por serem escondidos para dar visibilidade apenas às habilidades avaliáveis nas provas, deixam de pulverizar potências e intensidades pela diferença.

Sendo assim, num primeiro momento destacamos alguns estratos molares que exercem algum tipo de controle e conservação a favor da costura nutridora de um aparelho de Estado-Capitalista e a produção das suas maquinarias, as quais podem ser vistas também em um maquinário curricular.

No segundo momento, abordamos o conceito de número numerante e número numerado como uma forma de visibilizar os agenciamentos maquínicos, que o próprio Estado pode perpetuar para conservar de seu funcionamento, assim como também suas possíveis brechas. Por fim, destacamos alguns acontecimentos no nosso contexto educacional por meio de algumas narrativas produzidas numa pesquisa que acompanhou as ocupações das Escolas paulistas em 2015 e 2016, as quais podem exemplificar o avesso destas costuras curriculares, se esforçando para operar como máquina de guerra, produzindo brechas nos aparelhos de Estado e assim criar outros possíveis. Enfim, esperamos que este texto seja um provocador de pensamentos para que possamos ampliar e costurar outros espaços nas discussões curriculares atuais.

Capitalismo e a máquina escolar: extratos molares.

Heidi Taillefer

Habitamos uma sociedade que parece nos capturar o tempo todo-quando nossos desejos são subjetivados , ou seja, normalizados. Segunda Amaris et al (2020, p.3):

O desejo enquanto falta constitui outras realidades, cria significantes, paraísos que almejamos, sonhos que nunca alcançamos; a realidade é uma produção desejante e o desejo é a força motriz que impulsiona essa máquina. Mas é uma máquina subjetiva que o próprio Capitalismo pode se aproveitar disso, é aí onde ele opera, impondo determinados modos de se estar nos verbos da vida. Assim, produzir sua dinâmica imanente de descodificação, desterritorialização e de reterritorialização dos fluxos se dá em função das regras do seu próprio funcionamento, e, ao fazê-lo, acaba por referir o processo a um transcendente, o próprio capital.

Nesse sentido, o capitalismo começa por invocar o advento de uma só subjetividade global e não qualificada, que capitaliza os processos de subjetivação. Sob esses aspectos, dir-se-ia que o capitalismo desenvolve uma ordem econômica que poderia passar sem o Estado. E, com efeito, ao capitalismo não falta o grito de guerra contra o Estado, não somente em nome do mercado, mas em virtude de sua desterritorialização superior.

Contudo, não são apenas os diferentes setores do mercado que servem de modelos de realização, são os Estados, em que cada um agrupa e combinam vários setores, segundo seus recursos, sua população, sua riqueza, seu equipamento. E assim, acabamos por confundir nossos desejos pelos modelos de mercado que ditam formas de ser e estar no mundo que contribuam para uma lógica capitalista vigente.

Segundo Deleuze e Guattari (1997), com o capitalismo os Estados não se anulam, mas mudam de forma e assumem um novo sentido: o surgimento do capitalismo seria, portanto, caracterizado por uma relação inédita com a produção social compreendida, de certa forma, como um desdobramento da produção desejante. Em outros termos: o capitalismo estabelece uma relação com o desejo completamente distinto das relações sociais que lhes são anteriores.

O capitalismo sempre teve necessidade de uma nova força e de um novo direito dos Estados para se efetuar, tanto no nível do fluxo de trabalho, quanto no nível do fluxo de capital independente. Assim, para o capitalismo funcionar precisa de um Estado, portanto, este aparece como uma empresa mundial de subjetivação.

Neste contexto, vale ressaltar que o Estado adquire uma nova significação para além de suas conotações usuais: ele é antes um tipo, uma figura, do que propriamente o resultado de avanços civilizatórios, de maneira que, onde lemos Estado, poderíamos ler forma-Estado. “É preciso dizer que o Estado sempre existiu. Quanto mais os arqueólogos fazem descobertas, mais descobrem impérios” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 27).

Portanto, o Estado não se define apenas por um tipo de poder público, mas como uma caixa de ressonância para os poderes tanto privados quanto públicos. Uma caixa que opera por estratificação, ou seja, que funciona por meio de um conjunto vertical e hierarquizado de operações que atravessam as linhas horizontais que se tecem nos espaços sociais. Também o poder central do Estado é hierarquizado e constitui seu funcionamento; o centro não está no meio, mas no alto, uma vez que ele só pode reunir o que isola por subordinação.

Para Guattari (2011a, 2011b), a máquina pode ser um conceito-chave que nos permite ultrapassar as ideias de representação, de estrutura e de fundamentação metafísica das condições histórico-sociais pelas quais os sujeitos produzem suas existências, suas subjetividades e, consequentemente, maquinalmente produzidos.

Assim, questionamos: como a instituição escolar pode estar ligada a uma gigantesca máquina capitalística? Existem práticas que estão acompanhadas por ações políticas locais para uma transformação global, que criam “um mundo neoliberal que generaliza a concorrência das economias, mas o que é menos conhecido é que ele também generaliza a concorrência entre todas as sociedades e todos seus setores. Órgãos de poder que exigiram também uma mudança de olhar sobre as políticas educacionais” (Amaris-Ruidiaz & Miarka, 2020, p. 213).

Mas, “de que ordem são essas micromáquinas? Enfim, se todas as máquinas são interligadas, o que se produz preponderantemente a partir dessa relação?” (Carvalho & Camargo, 2015, p. 110). Nesse sentido, por que a instituição escolar necessita de pequenas máquinas acopladas ao seu funcionamento? E o currículo funciona como uma máquina acoplada à máquina Escola?

O Estado se preocupa com a “perpetuação ou conservação de órgãos de poder” e “tende a uniformizar os regimes, disciplinando seus exércitos, fazendo do trabalho uma unidade de base, isto é, impondo seus próprios traços.” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 24). Assim, um currículo também pode atender ao Estado e estará, portanto, no lugar do controle, da conservação de poderes para manter e reproduzir códigos vigentes socialmente, inclusive ajudando no funcionamento da própria Escola, pois faz parte do seu acoplamento, ou seja, atualiza-se conforme à necessidade dos poderes estabelecidos e, consequentemente, da sua própria lógica.

A Escola, assim, é um limiar produtivo: ou de sujeitos-padrão a serem decalcados na sociedade capitalística, já que ela reproduz o modo inerente do funcionamento da máquina capitalística; ou de sujeitos residuais, enjeitados da máquina, processados como escolhos e imperfeitos pelo sistema de controle e de qualidade da máquina produtiva de subjetividade, que no lugar de serem indicativos das falhas do sistema são tomados por ameaças constantes ao próprio sistema. Por isso mesmo, a sociedade capitalística “é uma máquina significante que predetermina aquilo que deverá ser bom ou ruim para mim e meus semelhantes nesse ou naquele ambiente potencial de consumo” (Carvalho & Camargo, 2015, p. 114).

Nesse caminho, a escola pode se acoplar e se agenciar por meio de seus movimentos curriculares. Por isso que, ao trazer a ideia de uma máquina curricular a partir das teorizações deleuze-guattarianas, poderíamos falar de um currículo que atende às demandas de um aparelho de Estado com engrenagens que funcionam molarmente para manter uma organização social que, neste caso, está pautada em uma lógica de mercado, em uma ordem neoliberal. No entanto, tais produções podem se dar em agenciamentos molares e, também, moleculares. Ou seja, os agenciamentos molares ou agenciamentos de poder organizam corpos para garantir uma produção social, para conservar um aparelho de Estado, enquanto os agenciamentos moleculares escapam de tal conservação.

Os currículos lidam com grandes agenciamentos sociais definidos por códigos específicos, que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor, tais como instituições muito fortemente territorializadas: que tendem a reduzir o campo de experimentação do desejo a uma divisão preestabelecida. Esse é o polo estratificado dos agenciamentos considerados “molares” [...] (Carvalho, 2016, p. 443).

Embora os escapes sempre aconteçam, é interessante retornar ao aparelho de Estado e tomar currículos em seus movimentos maquínicos molares, que se imprime em um currículo ou um currículo se imprime em uma Escola eles se avessam, já que a molaridade não existe sem a molecularidade e vice-versa, ou seja, os escapes só são possíveis por existe um modelo regido pelo Estado. Assim, no avesso do que se faz visível em uma Escola está o emaranhado de costuras curriculares com linhas molares e moleculares. Desse modo, podemos tomar currículos como máquinas em agenciamentos molares e moleculares.

Não há currículo que não acabe se distanciando da ciência oficial e do aparelho de Estado, em seus consensos sobre estratos, classes, espécies, modelos. Nenhum, que não redistribua os dados, force novos lances, relance teses alegres e livres. [...] Não há currículo que não tenha intuições (Corazza, 2012, p.2).

Por isso a necessidade de descrever como podem se articular esses agenciamentos e que efeitos eles podem produzir nos corpos, e assim como eles podem fortalecer a conservação do que propõe um aparelho de Estado, inclusive por meio do próprio currículo. Deleuze e Guattari (1996) falam de três grandes estratos molares que se articulam sobre os corpos e podem diminuir intensidades: o organismo, a significância e a sujeição.

A seguir apresentamos estes três estratos deslocando-os para a discussão curricular, a partir de um recorte da tese “Do corpo esgotado à criação de currículos-outros: uma ocupação secundarista possível” (Pacheco, 2020).

Organismo

Trata-se de um estrato que dita como os órgãos de um corpo devem funcionar. Direciona e determina funções dos órgãos para que os corpos operem em um padrão de existência. Corpos que são constituídos pelo que a ciência aponta como saudável, pelo que a mídia aponta como padrão estético e pelo que demais especialistas defendem como necessário. Direcionamentos que estão na escola, mas também fora dela, que dizem como se deve comer, como se vestir, com quem se relacionar e como deve funcionar cada órgão para que o corpo seja um “bom” organismo, ou seja, um organismo que atenda padrões estabelecidos de uma época. Poderia se dizer um currículo enquanto organismo, que trata da função de cada órgão para que um corpo funcione a favor de uma organização social.

É importante destacar que não é condição do corpo ficar aprisionado a um modo de existência ou em uma organização social, mas o excesso de organismo, ou seja, o excesso de padrões que definem as funções dos nossos órgãos, do nosso corpo, pode limitar outros modos de existência. Pois, um corpo não se reduz a um organismo (Deleuze & Guattari, 1997). O corpo sempre pode mais do que foi organizado para ser, sempre se pode mais do que a consciência pode nos alertar. O que pode o corpo para além do excesso de organização (organismo)?

Um currículo enquanto organismo pode, por exemplo, delimitar o tipo de roupa dentro da escola, exigir postura das estudantes sentadas por horas em carteiras, propondo assim a formatação de corpos com excesso de organismo. Um currículo que atende uma técnica de vigilância e formatação de corpos na escola, pois os corpos devem executar suas funções para que sejam úteis e produtivos.

Um organismo de padronização que vem para atender um aparelho de Estado, uma ordem neoliberal. Um currículo estratificado enquanto organismo. Mas também pode se pensar num currículo desestratificado enquanto Corpo sem Órgãos (CsO): “eu me libero desse condicionamento de meus órgãos tão mal ajustados ao meu eu.” (Uno, 2012, p. 35). É nesse sentido que o excesso de organização das funções dos órgãos de um corpo transforma-o em organismo funcional, e Artaud, na elaboração de um conceito para operar contra essa política, anuncia um CsO.

Salientamos que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimigos do corpo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas, com seus “órgãos verdadeiros” que devem ser compostos e colocados, ele se opõe ao organismo, à organização orgânica dos órgãos (Deleuze & Guattari, 1996).

O que pode um currículo que fissura um organismo e fratura a função “verdadeira” de seus órgãos? O que pode um currículo que declara guerra aos órgãos?

Significância

Outro estrato está na busca de essências e verdades a serem interpretadas. Nesse sentido, corpos são significantes e significados, são intérpretes e interpretados em busca do que está “por trás”, contrapondo a ideia deleuzeana que propõe experimentação e não interpretação. Como a aprendizagem tem sido vista em escolas estratificadas pela significância?

Já sabemos que muitas políticas públicas estão pautadas nos rankings e avaliações, assim, a aprendizagem se configura no domínio do mensurável, do controlável e do quantificável, parecendo estar mais para processos de recognição do que de criação de pensamentos (Deleuze, 2006). Deleuze entende por recognição o processo de reconhecimento de uma representação, de uma imagem posta como verdade, como por exemplo, o sinal da adição tem um significado e utilizá-lo e reconhece-lo pressupõe a compreensão desta única verdade que o símbolo representa.

Em um currículo que atende avaliações, os conteúdos e habilidades são imagens de verdades postas a serem alcançadas por estudantes de modo que possam ser “mensuradas” depois (Silva, 2019). Essa perspectiva da aprendizagem não escapa do senso comum. A recognição está no cotidiano, reconhece-se objetos o tempo todo, não escapamos dela, e não há problemas nisso! Mas restringir a aprendizagem à recognição é não possibilitar pensamento.

O primeiro é da ordem da recognição, quando o pensamento age pela semelhança ou pelo re-conhecer, mas isto não tem relação com o pensar, pois este é preenchido por uma imagem, quando reconhece a coisa: é uma mesa. (Amaris-Ruidiaz & Da Silva, 2021, p.70)

Para Deleuze (2006), o aprender se diferencia da recognição, pois o aprender não pode ser controlado, ele emerge de encontros, de experiências, de composições. Nessa perspectiva, o aprender relaciona-se à produção de pensamento sem imagem, sem representação, contrária – não de forma binária – à “conservação” que quer um aparelho de Estado.

Um currículo estratificado enquanto significância, a favor de um aparelho de Estado e a uma forma de interioridade, limita as possibilidades de pensamento. Pensamento é “desmoronamento central, que só pode viver de sua própria impossibilidade de criar forma” (Deleuze & Guattari, 1997, p.48), é uma exterioridade.

Sujeição

Por fim, o último grande estrato relaciona-se ao fato de os corpos serem sujeitos, sujeitos de enunciação que constroem identidades delimitando e demarcando um Eu. Sujeitos fixos às representações transcendentes pregados em uma realidade dominante, uma formação social que quer um aparelho de Estado. Sujeitos que pertencem à estratificação.

Um currículo enquanto máquina do Estado opera para formar alguém, para dar uma identidade ao estudante, para formar cidadãos com características que atendam a demanda da realidade dominante. Trata-se de um currículo que opera em agenciamentos de poder, que disciplina corpos para construção de uma identidade controlável, uma identidade que impeça multiplicidades e para se proteger de exterioridades.

Um currículo, nessa perspectiva, sempre tem a finalidade de formar uma identidade, “Afinal, um currículo busca precisamente modificar pessoas que vão ‘seguir’ aquele currículo” (Silva, 2015, p.15).

Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? [...] A cada um desses ‘modelos’ de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo (Silva, 2015, p.15).

De que modo estabelecer uma identidade contribui para que o aparelho de Estado continue no controle? O que escapa à estratificação do currículo que se limita a um Eu?

Pois é exatamente em torno do “eu” que a besteira se forma, com seu rosto de olhos fixos, segura de si mesma, surgindo do fundo dos lugares-comuns, das idéias feitas, dos falsos problemas. E, sem dúvida, o que Deleuze nos ensina, aquilo que é o mais difícil e que deve, a cada vez, ser retomado e confirmado, é a necessidade de escapar dessa fixação primeira sobre o eu, dessa tentação de uma subjetividade partilhada de maneira demasiadamente universal, aquela em que a busca sem saída da identidade e a generalidade vazia se confundem. (Scherer, 2005, p. 4)

Nesse contexto vimos três exemplos de estratificação do desejo que podem ser operados por currículos enquanto máquinas. Exemplos que se relacionam e que indicam um jogo constante de captura e escape a partir de um aparelho de Estado. Um jogo que explicita que nunca se é um polo só, nunca se é só estratificação em agenciamentos molares. Tais estratos molares, deslocados para as produções curriculares, nos ajudam a visibilizar como um currículo pode operar e o que se fortalece ou se exclui quando eles costuram um modo de existir na escola.

Maquinações: o uso dos números no Aparelho de Estado e suas brechas.

No Tratado de Nomadologia, de Deleuze e Guattari (1997), há uma discussão interessante que pode dar ainda mais visibilidade para uma operação curricular: o uso dos números.

Parece que o uso dos números como controle e organização é necessário a um aparelho de Estado. Deleuze e Guattari (1997) falam da aritmética, em especial do número, como elemento decisivo na burocracia da antiga soberania política - como no censo e nas eleições. Falam também de como o número vai ganhando mais força na modernidade com a articulação entre a “ciência matemática” e a “técnica social”: desenvolvimento de uma economia política, organização demográfica, organização do trabalho entre outras organizações na modernidade.

Este elemento aritmético do Estado encontrou seu poder específico no tratamento de qualquer matéria: matérias-primas, matérias segundas de objetos trabalhados, ou a última matéria, constituída pela população humana. O número sempre serviu, assim, para dominar a matéria, para controlar suas variações e seus movimentos, isto é, para submetê-los ao quadro espaço-temporal do Estado. (Deleuze & Guattari, 1997, p.64)

A aritmética, com destaque para o número, pode ganhar vários papeis em um modo de existência. Ela pode ser ferramenta potente de argumentação para a confirmação de eventos, com destaque ao uso dos números nos conceitos estatísticos; pode ser ferramenta de exclusão ao se utilizar uma linguagem de difícil acesso para muitos; mas também pode ser liberdade ao compreender essa mesma linguagem e poder operar com ela.

Ou seja, pode ser ferramenta para criação de outros modos de agir no mundo, mas também uma ferramenta do governo para justificar suas políticas e propostas, recheadas de mensurações e determinações métricas e dimensionais. O número como ferramenta para justificar qualquer modo de existência, seja para conservação operando para um aparelho de Estado, seja para ocupar espaços como máquina de guerra conjurando o Estado.

O Estado tem um princípio territorial ou de desterritorialização, o qual liga o número a grandezas métricas (tendo em conta métricas cada vez mais complexas que operam a sobrecodificação). Não acreditamos que o Número tenha podido encontrar aí as condições de uma independência ou de uma autonomia, ainda que aí tenha encontrado todos os fatores de seu desenvolvimento. (Deleuze & Guattari, 1997, p.65)

Para Deleuze e Guattari (1997), o número pode operar de outros modos fora de uma necessidade métrica do Estado. Tal número, chamado por eles de Número numerante, se faz presente em deslocamentos, ou seja, em movimentos nômades. “O número numerante já não está subordinado a determinações métricas ou a dimensões geométricas, está apenas numa relação dinâmica com direções geográficas: é um número direcional, e não dimensional ou métrico” (Deleuze & Guattari, 1997, p.66).

Enquanto o número como controle, ou número numerado, utilizado pelo Estado mede espaços para ocupá-los, o número numerante se desloca ao ocupar espaços sem medi-los previamente, operando como máquina de guerra.

Não se trata de um mau uso do número pelo Estado, não é uma questão de bom ou ruim, mas uma especificidade, um tipo de organização numérica que pode se desenvolver em diferentes espaços contribuindo para diferentes modos de existência.

Medir um espaço para organizá-lo é, portanto, torná-lo espaço métrico, ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1997), um espaço estriado. O número numerado é utilizado como argumento métrico para defender uma forma de ocupar um espaço estriado. “[...] o uso do número como dado, como elemento estatístico, é próprio do número numerado de Estado, não do número numerante.” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 67, grifo nosso).

O número numerante possui outra relação com o espaço. Ao não se subordinar às determinações métricas e movimentar-se em condições de possibilidades do nomadismo, organiza-se autonomamente. O número opera independente do espaço, é meio para deslocar e não medir, portanto se movimenta em um espaço de outra natureza, um espaço não estriado ou métrico, mas sim um espaço liso.

Deleuze e Guattari (1997) se baseiam nos espaços-tempos da música para diferenciar os dois espaços, sendo o espaço liso aquele que é ocupado sem medições ou dimensões geométricas e o espaço estriado aquele que é medido para ser ocupado.

O número que mensura, utilizado pelo Estado, trata de quantidades grandes e homogeneizadas, “produz seu efeito de imensidão graças à sua articulação fina, isto é, sua distribuição de heterogeneidade num espaço livre” (Deleuze & Guattari, 1997, p.67).

No entanto, se destacamos os estratos molares no tópico anterior, eles nos ajudam a visibilizar movimentos curriculares que atuam a favor de um aparelho de estado, estriando cada vez mais os espaços escolares com suas métricas. Faz-se necessário também visibilizar exemplos de currículos que ocupam Escolas sem medidas prévias que se utilizam dos números para criar outros modos de existência, como máquinas de guerra que conjuram um aparelho de estado vigente.

Deste modo, um currículo, em seus múltiplos fluxos, pode operar ora com números numerantes movimentando-se como máquina de guerra para produzir outros modos de existência na Escola e fora dela, ora com números numerados, em sua conservação dos modos de existência a favor do Estado.

Ressaltamos mais uma vez, que estas movimentações, não se opõem dialeticamente, e sim operam em fluxos contínuos que ora atendam a uma conservação, ora escapam dela por não caber no mofo de existência proposto em um espaço escolar estriado.

Um currículo-máquina de guerra possível

As políticas públicas, as avaliações institucionais e o próprio movimento escolar já nos dão muitos indícios de como os currículos conservam um modo de existência, por isso, neste tópico apresentamos outras possibilidades curriculares que podem escapar a tal conservação.

Para Deleuze e Guattari (1997) o que se movimenta a favor de um aparelho de Estado tem funções pré-estabelecidas, codificadas e organizadas. Assim, podemos pensar que um currículo que conserva um modo existência a favor do estado se movimenta como peças de um jogo de xadrez, em que cada peça exerce sua função, se movimenta de acordo com padrões estabelecidos para aquele tabuleiro, um jogo de Estado.

Em contrapartida, Deleuze e Guattari (1997) também falam de outro tipo de movimentação, como o jogo chinês Go, em que as peças dependem da situação em que se encontram, são extrínsecas, dependem do meio para agir, não há função pré-estabelecida, agem na exterioridade. Um tipo de movimentação que aumenta potência de agir, que alimenta linhas intensivas e moleculares.

Um exemplo que apontamos como experiência intensiva, que inventa outros modos de existência por meio de uma operação curricular – ou jogo chinês Go –, é o movimento secundarista3. Estudantes muitas vezes considerados problemas por não caberem em um currículo que conserva a ordem neoliberal, acabam por criar brechas para existir no espaço escolar.

Tais movimentos podem ser muito pequenos e diários, como a proposição de outros modos de lidar com o conhecimento que ultrapasse a recognição listada nas habilidades e objetivos de aprendizagem de um programa curricular.

Mas podem ser também movimentos, ainda que em aspecto micro, que ganhem proporções macro, como no acontecimento histórico de 2015 no estado de São Paulo e depois em 2016 em outros estados brasileiros, em que estudantes ocuparam espaços escolares estriados para reivindicar seus desejos. E, assim, consequentemente, acabam por produzir novos modos de existência na escola.

Secundaristas que se movimentaram nas ocupações das escolas em 2015, mas também antes e, também, depois e produziram e continuam produzindo outros currículos. Currículos que atendem a ciência régia, conservada pelo Estado, que têm uma verdade a ser ensinada e aprendida. Currículos que, quando propostos em função do Estado, apresentam costuras fechadas com a preocupação em conceitos que precisam ser construídos e avaliados. Assim tratam-se de linhas molares e de um espaço que é ocupado pelas demandas métricas do número numerado. Ao longo das ocupações, as preocupações com este tipo de currículo também surgiram, ainda que estudantes estivessem cansadas e cansados de tal ciência régia. Sentiram necessidade de se prepararem para um vestibular ou de atender à processos de recognição, entendendo que conceitos deste tipo também são necessários à vida social.

No entanto, diferentemente de muitos currículos escolares, as ocupações não se limitaram à ciência régia e currículos costurados por linhas molares. Também inventaram currículos-outros, na exterioridade, deixando desejos fluírem com o funk, com as conversas sobre variados temas, com assembleias e organizações insuspeitadas para sobreviver nos dias de ocupação.

Um currículo costurado por linhas molares, e limitado a isso, não faz sentido para os secundaristas que ocuparam as escolas – embora não possamos generalizar que sempre haverá interesse em espaços variados. Mas o fato é que, para os secundaristas ocupantes das escolas, a luta era em manter um espaço que lhes pertence por direito, mas também em ocupar este espaço com outras linhas, moleculares, que fizessem mais sentido. Para eles o espaço métrico não basta. A medição, o ranking, a avaliação se esforçam para excluir estudantes considerados problema, estudantes não se organizam, não se sujeitam, não se significam.

Fala de estudantes secundaristas

“Durante as aulas, assim, o único processo era: entra na Escola, vai para sala, saida sala, vai para o pátio, vai para casa. Era uma coisa já automática, e agora a gente tá podendo... é... ocupar e descobrir. Descobrir a Escola, conhecer a Escola realmente como ela é, nossa, super gratificante. Nada melhor que isso... essas coisas nos pertencem.”

Fonte: arquivo da Tese da/do autor/a

Acreditamos que este movimento é um movimento curricular em que conhecimentos, ações, decisões em suas diversas linhas intensivas se costuram para que exista vida nos dias em que a Escola foi ocupada por estudantes em uma outra lógica.

O novo tipo de insurreição, com seus dispositivos macro e micropolíticos, manifesta-se com especial vigor entre as gerações mais jovens, sobretudo nas periferias dos centros urbanos. Um exemplo disso é o movimento de ocupação das Escolas públicas pelos secundaristas no final de 2015, o qual engloba todos esses âmbitos. (Rolnik, 2018, p.25)

Outros currículos são produzidos a partir dos desejos dos próprios secundaristas, pois “trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (Corazza, 2002, p.134).

Fala de estudantes secundaristas

“Nossos dias eram assim. Cozinhar com as doações, jogar comida ruim fora? Nem pensar, tínhamos que comer aquilo mesmo. Como preparar macarrão pra tanta gente? O dia de ficar na comissão da comida era sempre difícil, com alimentação não se brinca. Mas difícil não significa chato. A zoeira era grande, não dava pra desperdiçar em guerra de comida, mas a gente tava sempre cantando.[...]

Assembleia de novo! Tudo era assembleia, tínhamos que resolver o que comer, como se proteger dos partidos políticos, dos uspianos, de todas as organizações que queriam acabar com o movimento ou tomar a frente dele. Tínhamos que decidir as rotinas do dia, decidir quem poderia entrar ou não, quem aceitaríamos para aulas voluntárias ou intervenções artísticas. Tinham dias que a gente só queria escutar um funk, conversar sobre nossas vivências, não queríamos uma aula “cult” sobre o feminismo. Lógico que hoje sabemos a importância de vários movimentos e temáticas, mas não somos esses personagens “salvadores da educação” criados por todos, demonizados por uns e endeusados por outros. Somos secundaristas com medos, dores, alegrias e desejos.

Era legal sentar, conversar, escutar uma música e falar sobre nada. Era legal lavar o corredor e enchê-lo de espuma. Imagina o que era um corredor com espuma! Era legal ver espaços da Escola que ficavam vazios e agora estavam cheios de gente, da gente... sabemos que nada disso cai no vestibular, mas era isso que nos fazia bem. Isso nos aproximou, a gente aprendeu a olhar o outro de outro jeito, a gente aprendeu a ser gente. Não aprendemos apenas a lutar por nossos direitos, aprendemos também a viver. Talvez seja isso que o estado queira negar, estudantes que sejam gente e não número.

Tratar os homens como números não é forçosamente pior do que tratá-los como árvores que se talha, ou figuras geométricas que se recorta e modela.

Mas também aprendemos outras coisas: a importância de falar bonito para ganhar credibilidade, ninguém mais convence a gente com palavras difíceis; como organizar comissões para a Escola funcionar; conhecer estratégias de partidos políticos; conhecimentos de leis para nossa proteção e várias outras coisas. A gente tinha que aprender esse tipo de coisa para conseguir sobreviver na Escola.”

Fonte: arquivo da Tese da/do autor/a

Por que não pensar em um currículo que cabe tudo, mas não qualquer coisa? Cabem as linhas molares e moleculares. Cabe jogo de xadrez e jogo Go. Cabem organizações a partir de números numerantes e números numerados. Currículos como máquinas que operam em fluxos descontínuos, em que ações que tendem a conservação trombam com ações que burlam convenções.

Um currículo que abre brechas no agora, nesse tempo, para liberar forças de secundaristas marginalizadas, e não outras. Currículos que atendem uns e incomodam outros, entre capturas e resistências. Um movimento contínuo costurando o avesso da escola e das políticas públicas propostas, entre o molar e molecular, como já dito, embora heterogêneos, afetam-se um no outro.

O seu princípio é o da desterritorilização como meio de territorializar a si mesmo, não no território, mas na terra que garante sua sobrevivência. Ora, isso requer toda uma produtividade, toda uma ação. Em suma, uma criação que pode e deve se encarnar em coisas para além da guerra: um pensamento, uma obra artística, uma invenção da ciência e até mesmo uma ação política, ou pequenos espaços. (Amaris & Miarka, 2020, p.221)

Um currículo que se engendra com uma máquina e com outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo aparecer novas linhas de potencialidades. Um currículo-máquina que age nas instituições criando espaços de respiro, como o jogo Go, que pode operar como máquina de guerra para conjurar o estado, parece até não caber nos estratos molares acima apresentados.

Reflexões finais

A intenção deste texto foi desembaraçar linhas que costuram práticas curriculares para problematizar possibilidades outras de se ocupar espaços escolares. Ainda que tais linhas caminhem sempre juntas, já que o avesso sempre estará lá, não em oposição, mas como parte consequente a um todo, entendemos que desembaraça-las conceitualmente nos permite ver possibilidades as quais podem estar sendo barradas nas construções curriculares, ou então, em quais direções estão se costurando.

Nesse sentido, pudemos perceber que currículos que atendam uma ciência régia, que se baseiam em avaliações e ranking conservam os desejos do Estado e, consequentemente, operam a favor de uma máquina capitalista. Tais currículos ocupam os espaços com uma métrica do número numerado, que tudo quer prever e controlar.

Ao avesso da ciência régia, estão as linhas moleculares, que não podem ser medidas, pelas quais os espaços vão sendo ocupados por números numerantes, em que não há um controle prévio. É com elas/por meio delas que secundaristas constroem currículos no próprio ato de existência dentro dos espaços escolares. Estes movimentos abrem espaço para a diferença, que não cabe nas linhas molares.

Fazendo ver estes dois lados – dois lados, porém múltiplos - da costura curricular, por meio deste texto questionamos se é necessário um grande movimento, como as ocupações secundaristas de 2015, para que as linhas avessas sejam validadas.

Se um currículo é tudo aquilo que acontece no espaço escolar, nas tranças das linhas molares e moleculares, como dar mais visibilidades a estes avessos que acontecem no cotidiano da escola? Currículos podem fissurar extratos molares, conjurando um Estado e movimentando-se para quebrar um controle e conservação?

Tudo é questão de experimentação!

Declarações finais

Contribuições dos autores. Débora Reis Pacheco: pesquisa, teorização, produção de dados e análise, redação inicial e revisão.
Paola Amaris-Ruidiaz: análise, redação inicial, revisão e edição.

Financiamento. Este artigo é resultado de uma pesquisa de doutorado intitulada “Do corpo esgotado à criação de currículos-outros: uma ocupação secundarista possível”. A primeira autora recebeu bolsa de estudos pela CAPES/DS, Mato Grosso do Sul, Brasil.

Conflitos de interesse. As autoras declaram não ter conflitos de interesse.

Implicações éticas. Houve consentimento das participantes da pesquisa.

Referências

Amaris-Ruidiaz, P., & Miarka, R. (2020). Entre o estado e o nômade: a produção de um espaço de partilha como possibilidade de alisamento de espaços escolares estriados. Revista Alegrar, Campinas, SP, n. 25, p. 208-223.

Amaris-Ruidiaz, P.; Godoy, E. V.; & da Silva, M. A. (2020). O Mágico de Oz, o Mito da Caverna e os currículos de Matemática: o ideal e o possível. Zetetike, 28, e020028-e020028.

Amaris-Ruidiaz, P.; & Da Silva, M. A. (2021). Chuva de verão e os rastros de uma escola: provocações sobre o mundo em que vivemos. Criar Educação, 10(2), 56-75.

Carvalho, J. M. (2016). Desejo e currículos e Deleuze e Guattari e... Currículo sem fronteiras, v.16, n. 3, p. 440 – 454. ISSN 1645-1384

Carvalho, A. F. & Camargo, A. C. (2015). Guattari e a topografia da máquina Escolar. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 17, n. 1, p. 107- 124. ISSN 1676-2592.

Corazza, S. (2002). Noologia do Currículo: vagamundo, o problemático, e assentado, o resolvido. Educação & Realidade, v. 27, n. 2. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25923>. Acesso em: 10 jul. 2019.

Corazza, S.(2012). O drama do currículo: pesquisa e vitalismo de criação. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação da Região Sul, 9. GT Educação e Arte. Caxias do Sul: 29 de julho a 01 de agosto de 2012b, Universidade de Caxias do Sul, RS. Caxias do Sul, 29 jul.a 01 de ago. 2012. Anais... Disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplAnped2011/eventos/anped_sul_2012/> Acesso em: mar. 2014.

Deleuze, G. (2006). Diferença e Repetição. Trad. de Luiz Orlandi, Roberto Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal.

Deleuze, G; & Guattari, F. (1995). Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia). Vol. 1. Trad. de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34.

Deleuze, G.; & Guattari, F. (1996). Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia). Vol. 3. Trad. de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34.

Deleuze, G.; & Guattari, F. (1997). Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia). Vol. 5. Trad. de Peter Pál Pelbart e Janice Caifa. São Paulo: Editora 34.

Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34.

Godoy, E.; Silva, M. A. da S. & Santos, V. de M. (2018). Currículos de matemática em debate: questões para políticas educacionais e para a pesquisa em Educação Matemática. São Paulo: Editora Livraria da Física.

Guattari, F; & Rolnik, S. (1996). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.

Guattari, F. (2011a). Lignes de fuite: pour un autre monde de possibles. La Tours d’Aigues: L’aube.

Guattari, F. (2011b). L’inconscient machinique: essais de schizo-analyse. Paris: Éd. Recherche.

Pacheco, D. R. (2020). Do corpo esgotado à criação de currículos-outros: uma ocupação secundarista possível. [Tese de Doutoramento] Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática.

Paraíso, M. A. (2010). Diferença no currículo. Cadernos de pesquisa, v. 40, n. 140, p. 587-604.

Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições.

Scherer, R. (2005). Aprender com Deleuze. Educ. Soc. , Campinas, v. 26, n. 93, p. 1183-1194. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000400003 .

Silva, M. A. D. (2019). A Política Cultural dos Livros Didáticos de Matemática: um guia para transformar estudantes em cidadãos neoliberais. Linhas Críticas, v. 25, e21853. Epub 27 de fevereiro de 2019.https://doi.org/10.26512/lc.v24i0.21853

Silva, T. (2015). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Uno, K. (2012). A gênese de um corpo desconhecido. Trad. Christine Greiner com colaboração de Ernesto Filho e Fernanda Raquel. 2. ed. São Paulo: n-1 edições.


1 Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA); Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb); Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)

2 http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/jovem-do-futuro

3 O movimento secundarista hoje é entendido como a mobilização de estudantes que se organizam para lutar por seus desejos. O termo ficou ainda mais conhecido após as ocupações das escolas paulistas em 2015 e de outros estados brasileiros em 2016. As ocupações tornaram-se um acontecimento histórico devido a quantidade de escolas e estudantes envolvidos e as conquistas pontuais no governo da época.