Currículo Rizomático como (com)posições de Resistência

Resumo

Este trabalho discute os currículos no/do ambiente escolar a partir da crítica ao documento da Base Nacional Curricular Oficial (BNCC) que opera, atualmente, como referência dos currículos de todas as escolas brasileiras. O currículo proposto no documento se organiza a partir da apropriação de diferentes propostas pedagógicas, por vezes contraditórias. Apesar disso, o documento propõe um modelo hegemônico que aposta nos discursos sobre interdisciplinaridade, independente de sua filiação teórica. A hipótese aqui apresentada é que a defesa e o uso de discursos em prol de um ensino interdisciplinar, funciona apenas como parte da engrenagem de uma máquina de captura que enquadra esses discursos pedagógicos aos princípios de uma aprendizagem: recognitivista e fragmentária, necessários para sustentar um projeto social neoliberal. Trata-se, assim, de garantir a formação de sujeitos que atendam à demanda dessa sociedade. Por isso a insistência por resistir. Advogaremos, assim, por um currículo rizomático como potencializador de resistência ao modelo canônico apresentado.  Tal defesa é sustentada a partir dos trabalhos de Silvio Gallo, e dos conceitos de rizoma e menoridade apresentados por Deleuze e Guattari.

Palabras clave: currículo, filosofias da diferença, educação matemática

Universidade Estadual de Campinas, Colombia, Campinas, Brasil

alemath@unicamp.br

Recibido: 22/Diciembre/2023

Revisado: 12/Abril/2024

Aprobado: 19/Julio/2024

Publicado: 23/Octubre/2024

Para citar este artículo: Monteiro, A. (2024). Curriculum Rizomático como (com)posiciones de Resistencia. Praxis & Saber, 15(42), 1–16.

https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n42.2024.16780

Alexandrina Monteiro

Rhizomatic Curriculum as (com)positions of Resistance

Abstract

This paper discusses curricula in/of the school environment based on a critique of the Official National Curricular Base (BNCC) document, which currently serves as a reference for the curricula of all Brazilian schools. The curriculum proposed in the document is organized based on the appropriation of different, sometimes contradictory, pedagogical proposals. Despite this, the document proposes a hegemonic model that relies on discourses on interdisciplinary, regardless of its theoretical affiliation. The hypothesis presented here is that the defence and use of discourses in favour of interdisciplinary teaching functions only as part of the gears of a capture machine that frames these pedagogical discourses to the principles of recognitivist and fragmentary learning, necessary to sustain a neoliberal social project. It is therefore a matter of guaranteeing the formation of subjects that meet the demands of this society. Hence the insistence on resistance. We will thus advocate for a rhizomatic curriculum as a potentializer of resistance to the canonical model presented. This defence is supported by the works of Silvio Gallo, and the concepts of rhizome and minority presented by Deleuze and Guattari.

Keywords: curriculum, philosophies of difference, mathematics education

Curriculum Rizomático como (com)posiciones de Resistencia

Resumen

Este trabajo discute los currículos en/desde el ambiente escolar a partir de una crítica al documento Base Curricular Nacional Oficial (BNCC), que actualmente actúa como referencia para los currículos de todas las escuelas brasileñas. El currículo propuesto en el documento se organiza a partir de la apropiación de propuestas pedagógicas diferentes, a veces contradictorias. Pese a ello, el documento sugiere un modelo hegemónico que se apoya en discursos sobre la interdisciplinariedad, independientemente de su filiación teórica. La hipótesis aquí presentada es que la defensa y utilización de discursos a favor de la enseñanza interdisciplinaria, funciona únicamente como parte del engranaje de una máquina de captura que enmarca los discursos pedagógicos con los principios del aprendizaje: recongnitivista y fragmentario, necesarios para sostener un proyecto social neoliberal. Se trata, por tanto, de garantizar la formación de sujetos que atiendan las demandas de esta sociedad. De ahí la insistencia en resistir. Por lo tanto, abogaremos por un currículo rizomático para mejorar la resistencia al modelo canónico presentado.  Esta defensa se apoya en los trabajos de Silvio Gallo, y en los conceptos de rizoma y minoría presentados por Deleuze y Guattari.

Palavras-chave: currículum, filosofías de la diferencia, educación matemática

Prelúdio

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é hoje o documento oficial que organiza as propostas curriculares no Brasil. Em seu texto inicial, esse documento é apresentado como algo de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica (Brasil, 2018, p.9 – grifo nosso) e tem por objetivo assegurar os direitos de aprendizagem de todas as crianças até o nono ano de escolarização conforme propõe o Plano Nacional de educação (PNE).

O documento apresenta um forte acento ao compromisso com a aprendizagem dos estudantes, ou melhor dizendo, com o direito de aprender dos estudantes. Essa é uma preocupação que vem pautando os documentos curriculares, nos quais mais que discutir o ensino, busca-se garantir o direito à aprendizagem. Mas quais seriam esses saberes que todos os estudantes têm direito a aprender? Quem os escolheu? Quais critérios foram considerados para defini-los?

Como sabemos, os currículos são territórios de disputas e diante de uma proposta curricular que atenda um país de dimensões continentais como o Brasil, é impossível que essas definições não sejam construídas por diferentes vozes e tendências. Assim, é possível encontrar ao longo do documento propostas divergentes e por vezes antagônicas. Além disso, cabe ressaltar que esses documentos são reconsiderados pelos conselhos estaduais de educação, bem como pelas secretarias municipais, quando organizam suas propostas. Desse modo, por que nos ocuparemos desse documento?

Nossa intenção se sustenta pela hipótese que defendemos, a saber: esse modelo de currículo, mesmo apostando em propostas interdisciplinares, se compromete com a fragmentação histórica dos saberes e se dobra às propostas neoliberais. Nesse sentido, afirma uma proposta educacional comprometida com processos de recognição. Diante disso, defendemos a necessidade de resistir a esse modelo e acreditamos que nos currículos praticados, especialmente no contexto da sala de aula, são diversas as práticas e situações possíveis para se contrapor a esses princípios.

Esse texto se divide assim, em duas partes. Na primeira apresentamos argumentos relacionados a nossa hipótese, ou seja, pretendemos indicar elementos que demonstrem a fragmentação e os princípios de recognição que balizam que essa proposta atendendo aos princípios neoliberais. A recognição é aqui entendida como um modelo de pensamento que nos leva a compreender a realidade a partir de algo já conhecido, já experimentado. Algo que estaria sendo rememorado, lembrado pois já é conhecido. Logo, trata-se de uma ação de reconhecimento.

Nesse sentido Deleuze afirma que a “recognição se define pelo exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido”. O que, segundo esse filósofo nos mantem no plano do senso comum, da concordância, numa relação de identificação do objeto pelo sujeito reforçando a manutenção do pensamento dominante. Aqui, defendemos um modelo de pensamento que valorize a criação, que habite o espaço da diferença e não da identidade. É nesse sentido que, na segunda, parte nos interessa apresentar modos outros de pensar a proposta curricular a partir de conceitos advindos da filosofia da diferença nos apoiando nos trabalhos de Silvio Gallo, Deleuze e Guattari, entre outros que dialogando com a diferença se coloca como desafio buscar modos de resistência desse processo de recognição.

Assim, defenderemos o conceito de rizoma como um potente caminho para pensarmos em práticas curriculares de resistência, que ao buscar um traçado nômade do saber, abre espaço para novos e outros modos de pensar. Trata-se de avançar os limites dos territórios das verdades dos conteúdos escolares impostas pelos currículos oficiais, trata-se de micropolíticas, de transgressões que permitam a reconfiguração de territórios, produzindo reterritorializações dos saberes.

Linhas neoliberais: BNCC e o Estado brasileiro

É preciso destacar que a BNCC é um documento ainda muito polêmico, especialmente na sua proposta de ensino médio. Dito isso, é importante destacar também, que não faremos aqui um estudo sobre a BNCC, pois apenas pretendemos destacar elementos que, do nosso ponto de vista, corrobora para indicar que esse documento está comprometido com os princípios neoliberais.

Os modelos de governo neoliberal defendem e proliferam um certo tipo de formação humana. Trata-se da formação de um sujeito que atenda às necessidades do mercado, cuja proposta centra-se no que se denominou por lógica do capital humano, apresentada especialmente por Theodore Schultz (1973). Nessa proposta, o estudioso apresenta a ideia de capital humano como um investimento necessário e importante da nação e do próprio indivíduo no sentido de formar indivíduos com competências e habilidades, de modo que estes tornem-se produtores de renda por meio do trabalho. Nesse sentido, esse sujeito deve investir em atualizações e compor uma linha desejante associada aos interesses do contexto econômico. Ao tornar-se cada vez mais produtivo e rico, garante como consequência o crescimento econômico do país. Como decorrência concordamos com as observações de Carvalho (2020, p.941) elaboradas junto do pensamento de Schultz (1961):

O capital humano é um saque teórico e empírico às potências subjetivas que são impedidas de não se sacrificarem, desde a autoexploração, à própria exploração do capitalismo. Nesse caso, e para piorar, o capital humano é imprescindível para que a educação crie formas de consumo de capital Assim, quando o mesmo Schultz (1961, p. 11) argumenta que, para analisar os efeitos do capital humano nos ganhos na educação, é preciso distinguir o estoque da educação na população e o montante da força de trabalho”, um dos efeitos perversos do dispositivo de segurança do neoliberalismo se revela. na medida que grande parte da população tem acesso à educação e o nível de trabalho não coincide com a educação atingida, será necessário intervir no capital humano para preparar seus sujeitos a aceitarem condições sub-humanas e precárias de força de trabalho .

Nesse sentido, destacamos dois elementos fundamentais desse processo: a composição dos participantes do Conselho Nacional de Educação (CNE) no período de aprovação do documento da BNCC, no qual encontramos a presença de muitos empresários do campo da educação superior, no qual encontramos a presença de muitas organizações empresariais do campo da educação superior e muitas organizações sociais (ONGs), dentre elas destacam-se duas junto de suas campanhas publicitárias e midiáticas1: “Todos pela educação e “Movimento de Base: Todos pela base. O “Todos pela base” é um braço do Todos pela educação junto com outros grupos e se organizou com o objetivo de elaborar propostas educacionais em articulação com o poder público, de modo a garantir que essas propostas passassem a ser pautadas pelo Estado, fortalecendo também as relações público-privadas.

Fundada em 2006, o “Todos pela educação” se identifica como uma organização não-partidária, ou seja, independente, sem interesse financeiro e sem recursos do Estado, cuja função é criar lideranças que possam interferir politicamente no ensino público. Em seu site2 podemos encontrar muitos funcionários com formação especialmente nas áreas de economia, administração, marketing, alguns poucos professores e, na maior parte, pessoas com especialização em gestão pública cursada no exterior. Já como parceiros e financiadores – apesar de se dizerem independentes – encontramos uma grande lista de instituições como: Itaú Social, B3 Social, ProFuturo (Fundação VIVO e Fundação “la caixa”) Fundação Vale, Movimento Bem Maior, Fundação Lemann, Instituto Unibanco, Instituto Natura, entre outras. Somente essa relação de financiadores já nos leva a questionar os interesses dessa organização, especialmente quando ela participa ativamente das políticas definidas pelo atual Ministério da Educação.

Além desse forte e estreito vínculo com esses patrocinadores das propostas educacionais, o próprio texto da BNCC reafirma esse compromisso com os princípios neoliberais do capital humano. O documento inicia sua apresentação indicando como um ponto central da proposta o desenvolvimento de um conjunto de competências, e habilidades procedimentais, cognitivas, socioeconômicas e práticas que garantam a formação de um capital humano para o trabalho. Como segue:

Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento. (...) Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. (Brasil, p.8- grifo nosso)

É preciso destacar que os termos competência e habilidades – do modo que é usado nesse documento é um empréstimos do campo da administração que emerge na década 1970 e que se difundiu de modo intenso no campo empresarial e que não neste documento apresenta-se sem qualquer debate sobre outras possibilidades de sentido no campo da educação, pois, como destaca Borges (2020, p.6):

O termo [competência] possui caráter polissêmico, com diferentes abordagens (...). No entanto, desde o seu surgimento, o conceito esteve associado ao desenvolvimento profissional e à necessidade do trabalhador se adequar às novas exigências do mercado. (...). Para ser competente o profissional deve conseguir: agir com pertinência, mobilizar saberes, integrar ou combinar múltiplos saberes, transpor, aprender, aprender a aprender e se envolver. Dessa forma, as competências traduzem um rol de comportamentos observáveis que devem ser desenvolvidos pelo trabalhador e estão totalmente relacionadas a outros dois conceitos de destaque do modelo neoliberal: polivalência e empregabilidade.

Diante disso, nos parece evidente o vínculo teórico dessa proposta curricular às teorias da pedagogia das competências professadas especialmente por Philippe Perrenoud (1999), quem afirma a função da educação escolar como sendo a de fornecer conhecimentos básicos pautados em atividades práticas e úteis, devendo relacionar-se sempre que possível à vida socioeconômica, tendo em vista a realidade mercadológica da atualidade. Ferreira e Santos (2018) ao criticarem essas posições argumentam que, nessa perspectiva, o conhecimento é tratado como insumo para as competências, com o objetivo de suprir necessidades de adaptação dos sujeitos às demandas sociais e econômicas da atualidade. Dentre as críticas a essa proposta da pedagogia das competências, destacamos as de Saviani (2008), quem argumenta de que se trata de uma outra face da “pedagogia do aprender a aprender” e, desse modo, ambas têm por objetivo,

(...) dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas. Sua satisfação deixou de ser um compromisso coletivo, ficando sob a responsabilidade dos próprios sujeitos que (...) se encontram subjugados à “mão invisível do mercado”. (Saviani, 2008, p. 437,grifo nosso)

Esses pequenos pontos aqui abordados nos parecem fortes o suficiente para invocarmos nossa hipótese do compromisso neoliberal da proposta da BNCC cujo interesse é a formação de sujeitos flexíveis, competitivos, individualistas que se responsabilizam pelo seu sucesso e pelo seu fracasso. Tudo depende de seu empenho e força de vontade, uma vez que o Estado fez sua parte, ou seja, garantiu o acesso a uma aprendizagem mínima.

Outro aspecto fundamental presente na BNCC, especialmente no que se refere ao ensino médio, é a formação de uma juventude empreendedora a partir do desenvolvimento do que se chama “Projetos de Vida” - modelo este que vem sendo copiado para o ensino fundamental de algumas redes Estaduais e Municipais. Trata-se do desenvolvimento de projetos de vida. A partir de uma flexibilização curricular, o projeto de vida vem sendo tratado como a “cereja do bolo” dessa proposta cujo objetivo é garantir certa flexibilidade na organização curricular, (...) estimulando o exercício do protagonismo juvenil e fortalecendo o desenvolvimento de seus projetos de vida. (BNCC, 2018, p.468)

Na versão on-line, o texto apresenta uma estrutura que permite ao leitor organizar as informações de várias formas com o recurso do uso de tabelas para facilitar a leitura, uma vez que sua estrutura textual é composta por inúmeras informações organizadas por códigos e subáreas. Visando uma perspectiva interdisciplinar, os saberes foram agrupados em quatro grandes campos: (1) Linguagens (estudos linguísticos e artes); (2) Matemática; (3) Ciências da Natureza (física, química e biologia); (5) Ciências Humanas (história, geografia, filosofia e sociologia)

(...)o Ensino Fundamental está organizado em cinco áreas do conhecimento. Essas áreas, como bem aponta o Parecer CNE/CEB no 11/2010, “favorecem a comunicação entre os conhecimentos e saberes dos diferentes componentes curriculares” (Brasil, 2010). Elas se intersectam na formação dos alunos, embora se preservem as especificidades e os saberes próprios construídos e sistematizados nos diversos componentes. (Brasil, 2018, p.27, grifo nosso)

Cada uma dessas áreas apresenta competências específicas que devem ser promovidas ao longo de todo o ensino fundamental e médio. Nessa organização, faz-se necessário destacar a disciplina matemática que foi “promovida” a um campo de saber sem conexão direta com os demais, ação que em momento algum foi problematizada ou explicada. Para além de se apresentar de modo isolado, o texto específico da matemática não apresenta discussões sobre diferentes perspectivas filosóficas, pedagógicas e didáticas propostas pela área, como aconteceu em outros documentos, como os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Desse modo o campo da matemática se isola ainda mais, colocando-se como um saber único e universal.

Ao longo das centenas de códigos que organizam as habilidades e as competências a serem trabalhadas, o documento destaca, por várias vezes, a importância de capacitar os/as estudantes a interpretarem as situações problemas contextualizando-as, sendo capazes de utilizarem e as aplicarem diferentes recursos e ferramentas conceituais. Nesse sentido, é interessante observarmos o que diz o documento da CNE/CEB no 11/2010. Esse documento faz referências a importantes questões educacionais, como segue:

Os conhecimentos escolares podem ser compreendidos como o conjunto de conhecimentos que a escola seleciona e transforma, no sentido de torná-los passíveis de serem ensinados, ao mesmo tempo, em que servem de elementos para a formação ética, estética e política do aluno. Esse processo em que o conhecimento de diferentes áreas sofre mudanças, transformando-se em conhecimento escolar, tem sido chamado de transposição didática. (...) Também se diz que os conhecimentos produzidos nos diversos componentes curriculares, para adentrarem a escola são recontextualizados de acordo com a lógica que preside as instituições escolares. (Brasil, CNE/CEB no 11/2010, p.11)

Nesta passagem podemos perceber o hibridismo das propostas e até certa incoerência quando nomeiam os processos de transposição didática e recontextualização como coisas similares. Recontextualização curricular e transposição didática 3são propostas teóricas diferentes4, e a apresentada pelo documento se assemelha mais à transposição didática, especialmente quando argumenta que: a ação educativa passa a ter como meta, organizar versões, cópias “facilitadas” de saberes para torná-los passíveis de serem aprendidos. (Brasil, CNE/CEB no 11/2010, p.11-grifo nosso)

Podemos interpretar que essa proposta parte de um entendimento do saber como algo que precisa ser preparado, copiado e modelado em outra linguagem para se tornar compreensível. Em continuidade a essa lógica, no campo da matemática somos instigados/as a pensar que esse modelo a ser ensinado deve estar associado à capacidade do estudante de reproduzir procedimentos técnicos de resolução.  O excerto a seguir, relacionado ao documento do Ensino Médio, reforça essa ideia:

(…) a área de Matemática e suas Tecnologias têm a responsabilidade de (...) estimular processos mais elaborados de reflexão e de abstração, que deem sustentação a modos de pensar [já estruturados] que permitam aos estudantes formular e resolver problemas em diversos contextos com mais autonomia e recursos matemáticos (Brasil, 2018. p.527)

É nesse sentido que ao tratar das competências matemáticas, o texto indica como satisfatórias as que permitem ao estudante solucionar e comunicar resultados. Para isso, é preciso que ele (estudante) compreenda e utilize, com flexibilidade e precisão, diferentes registros de representação matemáticos (algébrico, geométrico, estatístico, computacional). E ainda, continua o texto, espera-se que o estudante consiga utilizar diferentes representações de um mesmo objeto matemático na resolução de problemas variados. (Brasil, 2018. p.538)

Mais uma vez, os saberes matemáticos são apresentados como verdades a serem adquiridas. E não se trata aqui de negar a importância desses saberes, mas sim da ausência de propostas em que se considere a construção de pensamentos matemáticos para além das reproduções, das cópias, advindas das propostas centradas na formação do capital humano a partir de práticas de transposição didática.

Esses elementos nos mostram uma proposta curricular que defende e se organiza por um conjunto de saberes prontos, acabados e validados cuja aprendizagem é decorrente de aproximações e representações de modelos. Nessa perspectiva, os objetivos do ensino de matemática, especialmente da matemática básica, por exemplo, estão alinhados com a re-produção de saberes organizados de modo linear e vertical da base para o topo, com tijolos gradualmente agregados.

Os elementos e excertos do texto da BNCC até aqui apresentados nos levam a entender que essa proposta é centrada num modelo de currículo linear e disciplinar (imagem arbórea), o qual opera a partir de processos recognivista com interesses imediatistas e que visam atender aos princípios neoliberais que balizam propostas políticas educativas contemporâneas.

Nesse sentido, esse modelo curricular opera sobre a produção de subjetividades que visam à formação de um cidadão empreendedor, flexível e comprometido com bons desempenhos do capital financeiro. Trata-se, assim, de considerarmos que mesmo quando os textos de todas as produções no campo dos estudos curriculares, no Brasil e no mundo, defendem processos interdisciplinares e a contextualização de saberes a partir de práticas cotidianas, a ruptura com a hierarquização, disciplinarização e fragmentação dos saberes é algo que está longe de se concretizar, pois convivemos com uma proposta fortemente comprometida com a fragmentação histórica dos saberes e que se dobra aos pressupostos neoliberais.

Diante disso, nosso desafio é subverter essa ordem. É atual compreender as forças que atuam na contemporaneidade para resistir. Mas a resistência exige um movimento que considere a atualidade por dentro mas também por fora dela. É preciso olhar para o território para além de suas fronteiras para que possamos reterritorializar. Ou seja, abrir caminhos outros, expandir as fronteiras e ressignificar os espaços. Mas como estar dentro e fora ao mesmo tempo? Como extrapolar as fronteiras do território que habitamos? Como nos revoltar e renovar nossas perspectivas? Aspis (2016) ao discutir as possibilidades de escaparmos das capturas dos poderes identitários de assujeitamentos cotidianos que nos paralisam afirma ser necessário não nos deixar envolver nos fluxos modulatórios de governamentalidade (...) que determinam os percursos. Para ela devemos nos envolver com o imprevisível, alçar o devir, contra a tirania do real, contra a história: por um pensamento geográfico! (Aspis, 2016, p.432)

Mas o que significa alçar um devir por um pensamento geográfico? Segundo Aspis (2016) um pensamento geográfico seria um pensamento-paisagem, superfície, pele, cérebro. Trata-se de não mais buscar as origens de um processo, mas considerar o meio, ou seja, é preciso considerar que:

Tudo é meio, sem fim nem começo, sem pontos fixos mas sim pontos que duram: linhas, linhas de fuga, conexões imprevisíveis, todas as direções: rizoma (...) Podemos dizer que a ação do pensamento geográfico é criação de possíveis: fabulações. (Aspis, 2016, p.433)

Mas como romper essa lógica que nos atravessa e compor novos encontros que produzam diferenças nos modos de pensar a matemática, o currículo, a escola e a docência? Diante disso, nos colocando nessa busca por fabulações e criações outras, passamos a um segundo momento do texto a partir do qual nos colocamos contra esse fluxo neoliberal que atravessa as propostas curriculares, nos opondo ao determinismo do presente, contra o Uno, em favor de um por vir. Trata-se de exercitar um pensamento que pensa seu tempo na busca por composições dissonantes, composições de multiplicidades de mundos, de escolas, de currículos possíveis. É novamente ao encontro de Deleuze e Guattari, assim como com Gallo e Aspis, entre outros intercessores, que vamos buscar apoio para esse exercício de pensamento.

A afirmação deleuziana(Deleuze, 2006, p.156)) Só se pensa, porque se é forçado nos impõe uma questão fundamental que deve ser aqui duplamente considerada. Por um lado, podemos nos perguntar sobre o que somos forçados a pensar em relação à proposta curricular e em especial ao currículo de matemática. E, numa outra perspectiva, poderíamos adjetivar o pensar e nos perguntar sobre o que nos força pensar matematicamente. E, neste caso, do que estaríamos falando? De que forma esse questionamento pode implicar o contexto escolar? Afinal, o que nos força a pensar? Em uma entrevista publicada no Jornal5 “O Povo” a professora Suely Rolnik afirmou que:

O que nos força [a pensar] é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que vivemos e que são a própria consistência de nossa subjetividade, formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. Neste momento é como se estivéssemos fora de foco e reconquistar um foco exige de nós o esforço de constituir uma nova figura. É aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensíveis que, embora reais, são invisíveis e indizíveis, para o visível e o dizível. O pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora. (Rolnik,1995, p.1)

Para Deleuze (2006) são os encontros que nos provocam e nos estimulam. Ele se refere aos encontros provocados por intercessores, pois sempre há algo de fora. Mas o que significa nos apoiarmos em intercessores? Vasconcellos (2005)sugere que a ideia de intercessores é uma importante chave de leitura da obra de Gilles Deleuze, pois cabe a eles provocar encontros que possibilitem ao pensamento sair de sua imobilidade natural, de seu estupor. Portanto, segue Vasconcellos (2005, p.1223), sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento.

Deleuze (2006), por sua vez, afirma que os intercessores podem ser pessoas, mas também plantas, coisas, animais fictícios ou reais. Assim, segundo o filósofo, é preciso fabricar seus próprios intercessores. Produção essa que é tecida, composta, como uma teia, a partir de encontros entre diversos conceitos e personagens do campo da arte, da ciência e da filosofia. Encontros por vezes inesperados, da ordem dos acontecimentos que se desdobram em outras possibilidades e, assim, produzem outros encontros. Encontros que potencializam o exercício do pensamento, que nos forçam a pensar, pois, para Deleuze (2006, p.156) Só se pensa, porque se é forçado. Então, para atravessarmos os limites dos territórios curriculares e compormos currículos outros, vamos para a segunda parte desse texto .

Com posições: pensar sobre composições dissonantes

Como pensar em composições dissonantes que atravessem as fronteiras do território ocupado pelos currículos oficiais? Trata-se, talvez, de iniciarmos a problematização da ideia de produção de pensamento no sentido deleuziano no contexto escolar.

A principal marca dos trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari é proliferar a noção de multiplicidade e da diferença em oposição às noções de universalidade e identidade que remetem à ideia de representação. Em Diferença e Repetição, Deleuze (2006) começa por explicar o que seria uma diferença dissociada da ideia de identidade, ou seja, se o modelo não existe, ou não é mais considerado como “O modelo”, as diferenças perdem o referencial que as tornam iguais ou diferentes a algo, o que nos permite pensar por outros caminhos.

Nesse sentido, retomamos as considerações da proposta curricular oficial, no atual momento no Brasil: a BNCC. Como vimos, esse documento opta por manter a noção dos saberes organizados disciplinarmente e devem ser apreendidos a partir de um modelo ideal que garante suas verdades (únicas, prontas e irrefutáveis). Exige assim que os estudantes sejam capazes de reproduzi-las em cópias cada vez mais próximas do modelo considerado perfeito. E essa seria a saga da aprendizagem do estudante (de matemática). Nessa perspectiva, não basta repetir ou copiar, é preciso valorizar a repetição de modelos prontos e finalizados que se aproximam da Verdade.

Trata-se de uma afirmação do modelo platônico de garantir uma verdade associada a uma boa cópia, a uma reprodução que tende à perfeição, e as diferenças retratam as faltas ou as distorções entre o modelo e a cópia. Esse modo de compreender coloca a noção de identidade em primazia e remete a ideia de diferença a uma consequência das faltas frente às identidades. É nesse sentido que Deleuze (2006) quebra essa subordinação da diferença em relação à identidade. Para ele, a diferença é compreendida pela própria diferença, pela diferença em si mesma, pelo diferencial. Mas como considerar um currículo a partir dessa perspectiva?

Descartes, ao retomar o modelo de pensamento platônico, o associa a uma imagem de árvore, a árvore da vida. Essa imagem permitiu a construção de outra metáfora que associa o currículo também a uma árvore. Segundo Gallo (1997), é quase impossível não fazer a correspondência entre a imagem da árvore proposta dor Descartes e o currículo disciplinar que marcou a escola como instituição moderna, pois Deleuze, 2006, pp. 146, 262

[...] a árvore representaria o mito, como conhecimento originário; o tronco representaria a filosofia, que dá consistência e sustentação para o todo; os galhos, por sua vez, representariam as diferentes disciplinas científicas, que por sua vez se subdividem em inúmeros ramos. [...] Interessante notar há uma única árvore, e para além do conhecimento das partes, podemos chegar ao conhecimento do todo, isto é, tomando distância podemos ver a árvore em sua inteireza. Nessa perspectiva, essa inteireza deve ser produzida pelo sujeito — que em algum momento poderia ter acesso a essa totalidade. (Gallo,1997, p.7)

Contrapondo-se a essa imagem, Gallo aposta e propõe pensar o currículo a partir do conceito de rizoma discutido por Deleuze e Guattari (2007). Nessa perspectiva rizomática, Gallo (ANO) defende a potência dos vazamentos que emergem dos encontros passíveis que tecem o contexto escolar. Nesse sentido, o currículo é algo a ser composto, tecido por tramas, e não algo a ser executado. Em acordo com esse estudioso, trazer a imagem do rizoma para o currículo é espalhá-lo sobre o solo em múltiplas possibilidades de conexões. A escola passa, assim, a ser considerada um território de multiplicidades, de composições caóticas, de encontros inesperados. Um território de proliferação de sentidos e múltiplos significados.

O currículo numa perspectiva rizomática é, uma experimentação. Não se trata de algo que está aí para ser executado ou explorado, mas sim algo que vai se formando, compondo, sendo forjado a partir de encontros, multiplicidades e variações que se proliferam. O rizoma se forma então por aquilo que ainda não está aí, mas está no “entre”, no processo. Trata-se daquilo que emerge na superfície.

Pensar num currículo rizomático seria considerar uma tríade virtual/atual/real. Trata-se de considerar o virtual como uma potência de existir que se atualiza numa superfície (está no entre/devir atual) para se realizar (num lugar, num mundo) de modo singular. Utilizando de outro modo a metáfora da árvore, podemos aqui considerar a semente como a potência no sentido de intensividade-virtual, cuja atualização (devir6 atual) emerge na superfície se atualizando como árvore (num lugar, num tempo, num mundo) de modo singular. É nesse sentido que o currículo é algo a ser cartografado, pois ele é um processo que se espalha se desdobra pois se trata de algo que flui, não se trata de novos caminhos que emergem pela negação do que está posto, mas de novas possibilidades que se associam por isso trata-se de uma cartografia de conectivos: e, e....

Assim, de acordo com Gallo (1997), numa perspectiva rizomática, se aposta e se considera a possibilidade de vislumbrarmos uma escola outra, com outras formas de constituição de tempos e espaços de aprendizagem. Uma escola que se reinvente com outras roupagens, outras tramas. O desafio é explorar esses encontros, é arriscar-se na transitoriedade e transbordamento do “entre”.

No entanto, o currículo arbóreo, ou o currículo oficial, nos atravessa em sua legitimidade e legalidade, restando assim atuar no campo de uma micropolítica, na espreita, nos sussurros, nos entres. Pensar um currículo rizomático não é propor um outro currículo oficial, mas sim experimentar um conjunto de saberes que emergem a partir da potência dos (des) encontros. Trata-se assim de uma experiência que preza e garante a singularidade, a emergência do sujeito como uma potência criadora de saberes.

Apostar numa perspectiva curricular rizomática significa, também, problematizar o que entendemos por saberes, os limites da ordem e da estrutura que os constituem. Trata-se de pensar o currículo como um território de multiplicidades, de composições caóticas, de encontros inesperados. Um território de proliferação de sentidos e múltiplos significados.

Importante ressaltar aqui que é preciso estarmos sempre atentos/as às apropriações apresentadas como mudanças curriculares na perspectiva arbórea, pois em geral, ela incorpora discursos de propostas ditas “inovadoras”como é o caso com a etnomatemática, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, uso de tecnologias, entre outras —, mas não compõe algo novo, ao contrário, o que se busca é a apropriação e adequação desses novos discursos à estrutura arbórea. Trata-se, mais uma vez, de enquadrar as propostas aos modelos.

A etnomatemática, por exemplo, ao ser apropriada pelos documentos oficiais (PCNs), foi minimizada a uma proposta metodológica que permitiria trazer naturalmente os saberes cotidianos para o contexto escolar. Mas, sem ilusões! O que o modelo arbóreo ou régio faz com as apropriações discursivas é discipliná-las. Trata-se de disciplinar as próprias práticas já consideradas fragmentos que funcionariam como pré-requisitos para atender às necessidades de “sentidos” a serem construídos pelos estudantes no processo de aprendizagem. Atualmente, essa aproximação é associada ao mundo do trabalho, atendendo às demandas das políticas neoliberais de formação.

Considerações finais

Conforme apresentado ao longo do artigo, a engrenagem arbórea captura e enquadra as propostas variantes. Este também é o caso com as pesquisas em etnomatemática, nas quais coexistem elementos interessantes como: práticas sociais e educacionais, conexões interdisciplinares, entre outros. Porém, esses elementos foram sendo ressignificados e “adaptados” aos discursos curriculares oficiais, de tal modo que despotencializaram os princípios da proposta. Sendo assim, o desafio aqui apresentado é o de pensar em práticas educacionais e curriculares que atuem na ordem da micropolítica provocando variações curriculares e sabotem as práticas hegemônicas de currículo.

Como desdobramento dessa apropriação da proposta da etnomatemática dentro de um discurso disciplinar e de senso comum, muitas pesquisas passaram a analisar as práticas sociais para reconhecer nelas não sua singularidade, mas, ao contrário, identificar a matemática acadêmica presente neles, ou algo que se aproximasse dessa matemática - sendo que justamente essa diferença poderia ser o ponto principal a ser trabalhado na escola. Em outros termos, muitos trabalhos e pesquisas nessa perspectiva passam a considerar os saberes advindos das práticas sociais como “pré-requisito” para serem utilizados no desenvolvimento de conceitos matemáticos escolares e algumas vezes corrigidos ou melhorados quando repassados para uma linguagem mais formal.

Há muita potência nas propostas educacionais que emergem dos encontros provocativos. Por isso, considerar uma experiência curricular rizomática significa estar à espreita e atento para os processos de desterritorialização que são constantemente acionados nesses encontros. Isso porque tal proposta, ao mesmo tempo que provoca pontos de inflexão que se desdobram em múltiplas possibilidades e nos permitem experimentar o novo, também alerta o sistema oficial que a reconhece e dela se apropria de modo a enquadrá-la e fixá-la dentro dos seus modelos e lógicas de funcionamento, pois os sistemas oficiais funcionam como máquinas de captura e de enquadramento. Este foi o caso, por exemplo, da Etnomatemática (Etno) pontuados anteriormente. Na apropriação pelos documentos oficiais, a Etno foi sendo revestida de uma proposta metodológica que relaciona o saber matemático advindo do cotidiano — entendido como pré-requisito — à matemática acadêmica. Tal entendimento desconfigura os princípios dessa proposta e reforça o entendimento de uma única matemática que possui variações. E é dentro dessa lógica que a BNCC ao comentar sobre aprendizagem matemática destaca que:

Ao conseguirem utilizar as representações matemáticas, compreender as ideias que elas expressam e, quando possível, fazer a conversão entre elas, os estudantes passam a dominar um conjunto de ferramentas que potencializa de forma significativa sua capacidade de resolver problemas, comunicar e argumentar; enfim, ampliam sua capacidade de pensar matematicamente. Portanto, para as aprendizagens dos conceitos e procedimentos matemáticos, é fundamental que os estudantes sejam estimulados a explorar mais de um registro de representação sempre que possível. Eles precisam escolher as representações mais convenientes a cada situação, convertendo-as sempre que necessário. (Brasil, 2018, p.538)

Assim, como escapar dessas amarras? Como escapar da ideia de totalidade que sustenta a matemática acadêmica que prefere compreender as diferenças como variações ou cópias em processo de aprimoramento? É preciso saber viver... no contexto escolar. É preciso resistir aos modelos canônicos, o que significa resistir também às políticas e artimanhas das agências do Estado. Agências essas que se apropriam de discursos que se reverberam no campo das pesquisas acadêmicas, mas as enquadram em seus princípios, geralmente para atualizar seus monitoramentos e controles, bem como reforçar os processos de subjetivação de interesses do Estado. 

Desse modo, gostaria de reafirmar a importância de pensarmos e experimentarmos uma prática pedagógica menor, centrada na ideia de um currículo rizomático como um modo de resistir às formatações e assujeitamentos neoliberais que nos atravessam. É preciso assumir nossa função de militância (não partidária) política e responsável conforme indica essa bela e inspiradora citação do professor Silvio Gallo (2002, p.171):

O professor militante seria aquele que, vivendo com os alunos o nível de miséria que [seus] alunos vivem, poderia, de dentro desse nível de miséria, de dentro dessas possibilidades, buscar construir coletivamente. [...] Essa é a chave da ação do militante. Sempre uma construção coletiva. Talvez o profeta seja mais aquele que anuncia do ponto de vista individual. Mas o militante tem sempre uma ação coletiva; a ação do militante nunca é uma ação isolada. Então, o professor militante seria aquele que, vivendo as misérias dos alunos ou as misérias da situação social da qual ele participa, procuraria, coletivamente, ser um vetor da produção de superação, de condições de superação dessa miséria, ser um vetor de libertação, de possibilidades de libertação. [...] Essa é uma luta que deve dar-se em diversos ângulos e em diversos níveis. Ela deve dar-se no ângulo do cotidiano da sala de aula, ela deve dar-se nas relações que o professor trava com seus colegas no ambiente de trabalho, ela deve dar-se com as relações que o professor trava no seu ambiente social, mais amplo, mais geral, e ela deve dar-se também nas relações que o professor trava na luta sindical.

Diante disso, o que cabe a nós é criar espaços heterotópicos7 (Foucault, 2013), militar na micropolítica e garantir que as aulas sejam espaços de encontros, espaços em que possamos nos atentar ao que foge ao que está aí, mas não é visto enquanto nossos olhos estiverem fixados nos modelos prontos e acabados. Esse é o caminho. Não se trata de uma nova proposta curricular, pois como vimos, uma proposta ao ser apropriada pelos meios canônicos passa a ser modelada e cooptadas até perder sua potência.

É uma escola outra, povoada pelos professores-militantes que se organizam por modos outros de pensar que, acreditamos, pode subverter as bases meritocráticas, pautadas na crença da Ordem e Progresso. As possibilidade de um pensar (matemático) outro não vai estar nas páginas dos documentos, mas nas intencionalidades e compromissos políticos de grupos que se arrisquem a pensar pelas frestas, pelas trilhas nômades. Um pensar que sempre é fruto de um encontro. Trata-se sempre de pensar COM. Trata-se de buscar bons amigos e fazer bons encontros. Assim, longe de nos sentirmos fragilizados frente aos monstros construídos pelos mitos dos documentos curriculares e avaliações sistêmicas, é necessário enfrentá-los, buscando a parceria, a interlocução, como a que aproveito para finalizar esse artigo:

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sobre uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento (Calvino, 1990, p.19).

Declarações finais

Conflito de interesses. O autor não referiu qualquer potencial conflito de interesses.

Financiamento. Este artigo é derivado do projeto “Epistemologías otras: interlocução entre Etnomatemáticas y currículos escolares” financiado pela feapex-unicamp.

Implicações éticas. Não há implicações éticas, uma vez que se trata de um trabalho bibliográfico que utiliza documentos públicos.

Referências

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Brasil. (2018). Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC.

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Calvino, I. (1990). Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras.

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Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo, Editora 34. 2a. edição. Vol. 5

Deleuze, G., & Guattari, F. (2007). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra e Celia Pinto Costa . São Paulo, Editora 34. 2a. edição. Vol. 1

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Ferreira, F., & Santos, F. (2018). Reflexões sobre a pedagogia das competências. III Congresso de educação do CPAN, 2018, Mato Grosso do Sul. Disponível em: https://cecpan.ufms.br/files/2019/08/C_12.pdf . Acesso em: julho 2024.

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1 TODOS PELA BASE. Disponível em: https://movimentopelabase.org.br/ Acesso em: abr. de 2024 e, TODOS PELA EDUCAÇÃO. Disponível em: https://www.todospelaeducacao.org.br/ Acesso em: abr. de 2024.

2 https://www.todospelaeducacao.org.br

3 Para Yves Chevallard (2005) o conhecimento acadêmico, formulado pelo “cientista” precisa ser reformulado quase que traduzido para o contexto escolar, assim a transposição didática seria esse movimento de produzir um saber escolar a partir do saber científico, em outros termos, seria a passagem do modo de se apresentar o saber científico para um certo modelo de apresentar o saber escolar – a ser ensinado. Ver CHAVELLARD, Y. La transposición didáctica: del saber sábio al saber enseñado. 3ª ed. Buenos Aires: Aique grupo editor, 2005

4 A noção de recontextualização pode ser compreendida como o processo de seleção e organização do conhecimento no currículo quando se busca recolocar os discurso, num processo centrado na docência e na prática pedagógica quando, por exemplo, o professor recoloca um saber advindo do contexto cultural para o espaço escolar. Esse processo pode ser também elaborado pelos formuladores de políticas públicas e são diferenciadas em três estágios. Ver BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

5 Há uma nota de rodapé aqui... imagino que seja para colocar o link do jornal. Se for, é preciso acrescentar esse link de acordo com as formatações necessárias. Normalmente, quando é uma entrevista, você referência colocando o nome da pessoa que fez a entrevista.

6 O devir está entre duas multiplicidades onde uma não se torna a outra. É como uma linha que passa entre dois pontos distintos e que não é constituído por esses. Como focos de luz que se cruzam. Há apenas a desterritorialização. In AMORIM, A C. Deleuze e Currículo no intervalo de palavras e imagens. (S/d)

Disponível: https://www.fe.unicamp.br/gtcurriculoanped/33RA/trabalhos/ACAMORIM_UNICAMP.pdf

7 Heterotopia está aqui sendo usado no sentido indicado por Foucault, ou seja: considerando-se que os espaços funcionam em múltiplas camadas de significações e que portanto podemos reinventá-los em seus próprios lugares.