Entre Contágios e Reverberações com uma Antropologia Ameríndia: uma Educação Matemática

Resumo

Como produzir outros modos de contágios e reverberações nas nossas invenções de vida? Como filosofar para além dos modos onto-epistemologicamente centrados no método científico e na filosofia eurocêntrica (colonial, racista, patriarcal, moderna)? Que educações matemáticas nos são possíveis produzir numa relacionalidade com perspectivismos ameríndios? Quais outros modos, corpos e afetos são possíveis em educações matemáticas que canibalizam a própria antropologia? Neste ensaio, acontecemos em um movimento de habitar o perspectivismo ameríndio (apontado por Eduardo Viveiros de Castro) e afetar e ser afetados em invenções com corpos, coletividades num processo de equivocação. Nossas discussões problematizam certas narrativas e lógicas de educações matemáticas que se instituem cotidianamente desde escolas da Educação Básica a cursos de Pós-Graduação em Universidades. Somos provocados a olharmos para um espelho que nos devolve uma imagem na qual não nos reconhecemos e, assim, provocados a novas invenções de educações matemáticas em movimentos de contágios e reverberações. O canibalismo Tupi é trazido para pensar meios e relacionalidades possíveis para acessar este espelho que é o outro.

Palavras-chave: corpos, coletividades, humanidades, multinaturalismo, perspectivismo.

1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Brasil.

thiago.pinto@ufms.br

Recibido: 07/Noviembre/2023

Revisado: 08/Mayo/2024

Aprobado: 24/Julio/2024

Publicado: 29/Agosto/2024

Para citar este artículo: Pinto, T. P., & Viola, J. R. (2024). Entre Contagios y Reverberaciones con una Antropología Amerindia: la Educación Matemática. Praxis & Saber, 15(42), 1–16. https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n42.2024.16796

Thiago Pedro Pinto 1

João Ricardo Viola dos Santos

Between Contagions and Reverberations with an Amerindian Anthropology: a Mathematical Education

Abstract

How can we produce other modes of contagion and reverberations in our inventions of life? How can we philosophize beyond the onto-epistemological modes centered on the scientific method and Eurocentric (colonial, racist, patriarchal, modern) philosophy? What mathematical educations are possible for us to produce in a relationality with Amerindian perspectivisms? What other modes, bodies and affections are possible in mathematical educations that cannibalize anthropology itself? In this essay, we take place in a movement of inhabiting Amerindian perspectivism (pointed out by Eduardo Viveiros de Castro) and affecting and being affected in inventions with bodies, collectivities in a process of equivocation. Our discussions problematize certain narratives and logics of mathematical education that are instituted on a daily basis, from primary schools to postgraduate courses at universities. We are provoked to look into a mirror that gives us back an image in which we don’t recognize ourselves and, thus, we are provoked into new inventions of mathematical education in movements of contagion and reverberations. Tupi cannibalism is brought up to think about possible means and relationalities for accessing this mirror that is the other.

Keywords: bodies, collectivities, humanities, multinaturalism, perspectivism.

Entre Contagios y Reverberaciones con una Antropología Amerindia: la Educación Matemática

Resumen

¿Cómo producir otros modos de contagio y de reverberación en nuestras invenciones de vida? ¿Cómo filosofar más allá de los modos ontoepistemológicos centrados en el método científico y la filosofía eurocéntrica (colonial, racista, patriarcal, moderna)? ¿Qué educaciones matemáticas nos es posible producir en una relacionalidad con los perspectivismos amerindios? ¿Qué otros modos, cuerpos y afectos son posibles en las educaciones matemáticas que canibalizan la propia antropología? En este artículo, nos situamos en un movimiento de habitar el perspectivismo amerindio (señalado por Eduardo Viveiros de Castro) y afectar y ser afectados en invenciones con cuerpos, colectividades en un proceso de equivocidad. Nuestras discusiones problematizan ciertas narrativas y lógicas de la educación matemática que se instituyen cotidianamente, desde la escuela primaria hasta los cursos de posgrado en las universidades. Somos provocados a mirarnos en un espejo que nos devuelve una imagen en la que no nos reconocemos, y así somos provocados a nuevas invenciones de educación matemática en movimientos de contagio y reverberaciones. Se trae a colación el canibalismo tupí para pensar posibles medios y relacionalidades para acceder a ese espejo que es el otro.

Palabras clave: cuerpos, colectividades, humanidades, multinaturalismo, perspectivismo.

Entre espreitas, abismos e brechas

Percorrer caminhos a que nos levam estas questões, explicitadas no resumo, tem sido uma prática de nossas aulas, debates e vida pessoal; também tem sido uma prática de escrita, neste ou em outros textos (Pinto & Viola dos Santos, 2023). Filosofia e Educação e Educação Matemática e Antropologia e perspectivismo tem sido encontros que nos produzem potência, ou trazem potência para estas vistas que se produzem nestes encontros. A busca por respostas, sempre efêmeras, parece possibilitar deslocamentos, movimentos e vidas.

Em contágios e reverberações (atitudes a serem (des)dobradas), nosso pressuposto político-econômico-pedagógico neste ensaio se encontra em justamente tomar nossos corpos (esses que inventamos a cada dia e muitas vezes nos esquecemos) como um fim e um meio em canibalizações. Não se trata de um movimento crítico a um conjunto de afirmações (teorias) ou a um objeto específico (uma prática de um sujeito em uma educação matemática). Também não se trata de trazer uma discussão de uma Antropologia Contemporânea (um campo de pesquisa) para uma Educação Matemática (outro campo de pesquisa), ainda capturados pela binaridade do aqui e do lá, do outro e do outro do outro; de operar com identidades (em coisas por si mesmas, em essências independentes de relações). Tampouco estamos procurando operar com a apropriação de um campo e de conceitos para um outro ou em uma aproximação. Trata-se, talvez, de nos movimentarmos em espreitas e abismos e brechas e indagações. De observarmos nossa imagem em espelhos que nos devolvem imagens distorcidas nas quais não nos reconhecemos, tal qual uma criança em um museu de ciências. Eduardo Viveiros de Castro nos estimula a pensar: [a] originalidade radical da contribuição dos povos do continente para a herança intelectual da humanidade ainda não foi totalmente absorvida pela antropologia (2018, p. 249). O perspectivismo ameríndio nos afeta de maneira corpórea, em uma instância outra, aquém e além de uma linguagem ou de uma inteligibilidade. Que educações matemáticas acontecem em meio ao perspectivismo ameríndio?

Neste ensaio temos dois objetivos: habitar ideias, afetos, provocações, conceitos e atitudes políticas em contágios e reverberações com o perspectivismo ameríndio e; afetar sendo afetados em escritos com corpo, coletividades e equivocações, em uma aposta inventiva de filosofias, matemáticas e educações. Em um grito que não se escuta, com uma faca que não corta, em um desejo que não pulsa e, em várias outras nossas contradições, alguns escritos ensaísticos acontecem nos entres de antropologias e uma filosofia de uma educação matemática. Em uma travessia pela cosmopolítica do multinaturalismo, que invenções outras acontecem em nossa filosofia de uma educação matemática de nossos corpos? Em outras travessias, provando conceitos de cosmopolíticas ameríndias, que outras invenções acontecem em educações matemáticas do dia a dia, de salas de aulas; de projetos de formação de professores que ensinam matemáticas; de práticas de pesquisas em programas de pós-graduação em educação matemática? Diante de um espelho distorcido, que educações matemáticas acontecem?

A antropologia anti-narcísica de Eduardo Viveiros de Castro

Eduardo Viveiros de Castro, nos últimos anos, têm nos chamado particular atenção, tanto em uma produção científica que exprime em uma radicalidade, diante de nossas experimentações com Ludwig Wittgenstein (2009), com os jogos de linguagem, e com Romulo Lins, com o Modelo dos Campos Semânticos (1999). Seus textos exigem mais do que um esforço, convidam a uma transfiguração de horizontes éticos, estéticos, políticos, econômicos e ontológicos. O antropólogo carioca tem investido esforços para praticar uma Antropologia Anti-Narcísica. Em sua obra Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (Viveiros de Castro, 2021), logo nas primeiras páginas, ele anuncia sua intenção de escrita de “O Anti-Narciso: Da antropologia como ciência menor”, do qual as metafísicas seriam, talvez, uma sinopse. Esta obra seria inspirada na produção de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O aspecto narcisístico criticado por ele está relacionado ao movimento de não enxergar no outro, um outro, mas, sim, um eu deformado, ainda em formação, ainda no caminho de se tornar alguém tão evoluído, tão civilizado, tão humanizado quanto ‘eu’. Este movimento narcisista justificou muitas ações, extermínios, catequizações e aculturações ao longo da história da humanidade. Viveiros de Castro percebe nos apontamentos de Claude Lévi-Strauss (um importante nome do estruturalismo, é importante salientar) uma primeira guinada pós-estruturalista, quando este aponta para certa “incongruência” ou “intradutibilidade” do conceito de humano no contato dos espanhóis com povos das Antilhas:

Nas Antilhas, alguns anos após o descobrimento da América, enquanto os espanhóis despachavam comissões de inquérito para saber se os indígenas possuíam alma ou não, estes tratavam de submergir prisioneiros brancos, para verificar, com base numa longa e cuidadosa observação, se seus cadáveres apodreciam ou não (Lévi-Strauss, 2017, p. 343 apud Viveiros de Castro, 2021, p. 35).

Enquanto uns buscavam entender quais espíritos animavam aqueles corpos, para dizerem se eram humanos ou não, os outros queriam é saber que corpos eram aqueles, habitados por um espírito. Estas diferentes questões, para Viveiros de Castro, apontam para diferenças entre tais grupos que ultrapassam a cultura e, assim, a epistemologia. É bastante usual na antropologia, e até mesmo no senso comum, apontar para grupos indígenas e tomá-los como uma cultura diferente da do homem branco, com diferentes valores, modos de organizar o mundo e, também, diferentes saberes, assentados em outros modos de legitimação. Este movimento o Antropólogo identifica como “multiculturalismo”. Para a existência dessa multiplicidade de culturas se supõe uma mesma natureza, são seres humanos como todos os outros, mas, imersos em diferentes temporalidades e culturas e, somente por serem humanos como nós, nos colocamos a estudá-los, entendê-los e alçarmos um processo de um entendimento mútuo da evolução humana — e assim nomeamos este estudo como antropológico. Viveiros de Castro, por outro lado, identifica em determinados grupos culturais uma virada que aponta não para diferentes culturas, mas, sim, para diferentes naturezas. Ao invés de tratarmos aqui com diferenças epistemológicas, estamos lidando, em última instância, com diferenças ontológicas: o multinaturalismo.

Esse reembaralhamento das cartas conceituais levou-me a sugerir a expressão “multinaturalismo” para designar um dos traços contrastivos do pensamento ameríndio em relação às cosmologias “multiculturalistas” modernas: enquanto estas se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das culturas — a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e dos significados —, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A “cultura” ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a “natureza” ou o objeto, a forma do particular (Viveiros de Castro, 2021, p. 43).

Em uma entrevista, Viveiros de Castro afirma:

[...] quando eu estou com os índios, eu gosto de saber o que eles entendem por antropologia. Não estou interessado em fazer uma antropologia deles, eu quero saber qual é a antropologia deles. Um outro sentido do possessivo, do genitivo. Eu quero saber o que eles entendem por humano, o que eles entendem por não-humano e o que eles entendem por logos, por saber, por conhecimento. O que eles entendem pelo que é o conhecer e o que é o humano. Nós pensamos que sabemos. O antropólogo, supostamente, chega lá e ele já sabe o que é o homem e vai estudar aquela variedade particular de homem que é o índio X ou o índio Y. Mas ele já está em posse do saber soberano. Ele vai apenas ver como aquele índio, digamos, exprime seu conceito de universal, qual é a posse dele. Nesse caso, o índio será uma manifestação específica desse conceito. Ele poderá enriquecer o conceito, ele poderá eventualmente dar uma determinação adicional, por exemplo, demonstrar como o índio pensa como a criança, pensa como o louco, ou como o pensamento indígena esclarece o pensamento infantil e essas coisas todas. Mas você já sabe o que é o pensamento (Lutterbach e Castro, 2018, n.p.).

O outro do outro pode ser um outro e é nessa impossibilidade que há uma potência de se inventar com o perspectivismo ameríndio. Para muitas destas comunidades, o universo é povoado por diversos agentes (humanos e não-humanos), deuses, animais, mortos, plantas, fenômenos meteorológicos, e, também, objetos e artefatos, como agentes, não como meros “objetos”, e estes são providos de um mesmo modo de perceber, de pensar, de se alimentar que se assentam em uma “alma” semelhante (Viveiros de Castro, 2021, p. 43), e aqui podemos entender melhor a pesquisa investida por aqueles povos das Antilhas relatada por Levi-Strauss. O que “animava” aqueles corpos não era uma questão para àqueles indígenas, mas, sim, que corpos eram aqueles, estariam aqueles corpos tão diferentes no mesmo estágio/momento que o deles? Caso não, o que eles viam? Que cheiros sentiam?

De algum modo, todos os agentes possuem uma mesma “cultura”, modos semelhantes de proceder e de organizar o mundo. Por exemplo: alguns destes grupos tomavam cerveja de milho e se reuniam e festejavam em casas cerimoniais, o jaguar, por sua vez, tinha as mesmas experiências ao, por exemplo, beber o sangue (sua cerveja de milho), tal como os tapires se deleitam em sua casa cerimonial: um barreiro lamacento (idem, p. 53). Para estes grupos, são nossas naturezas, ontologias, que destoam. É a natureza de nossos corpos que nos colocam em um outro “lugar”, e não nossa “cultura”, nossa “humanidade” ou a presença ou não de uma “alma”.

Esta inversão nos coloca novas indagações. Se ao lidarmos com diferentes culturas (e uma mesma natureza) podemos questionar em que estágio evolutivo este grupo ou indivíduo está (e aqui podemos falar tanto de antropologia como de escola), ou, de forma mais contemporânea, o que e como este indivíduo pensa este mundo que nos é comum; ao lidarmos com outras naturezas e uma mesma “cultura”, somos deslocados a, por exemplo: em que materialidade se encontra este “espírito”, que corpo é este? Que mundo este grupo ou indivíduo habita? O que ele vê ao seu redor e, sobretudo, o que enxerga ao olhar para mim? Nas palavras de Viveiros de Castro: “O que essas pessoas veem, entretanto — e que sorte de pessoas elas são —, constitui precisamente um dos problemas filosóficos mais sérios postos por e para o pensamento indígena.” (2021, p. 44).

Esta humanidade que habita a todos e a tudo nos coloca em uma relação diversa da que estamos habituados. Como me relaciono com um rio que é também um humano, que tem alma? Que relações estabeleço com este outro humano que é a montanha e que tem sentimentos e desejos como os meus? Como dialogo com uma pedra, também humana e também agente de sua vida?

No contexto atual podemos trazer a fala de Ailton Krenak para exemplificar um destes modos de se relacionar. Em seu livro, Ideias para adiar o fim do mundo, ele relata como a aldeia Krenak se relaciona com uma montanha próxima a ela, Takukrak é seu nome, esta possui também personalidade e os indígenas conseguem ver sua face e entender suas expressões, que, de algum modo, guiam suas ações com ela:

De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser” (Krenak, 2019, p. 10).

O modelo antropológico dominante olha para o outro a partir de uma mesma natureza e tenta entender sua cultura, um movimento que não deixa de ser narcisista, pois o modo europeu ocidental continua a ser a imagem refletida no espelho (assim como na escola). Viveiros de Castro propõe, assim, uma antropologia não centrada no próprio antropólogo, tampouco centrada naquele grupo que está investigando, pois, não estando em seu corpo, não participando de sua ontologia, pouco poderia fazer a não ser descrevê-los a partir de suas próprias palavras e percepções de mundo (também um projeto narcísico). De outro lado, também não se trata de “dar voz” a um outro, como se este não tivesse voz em seus próprios espaços e como se não coubesse ação nenhuma ao pesquisador. Para Viveiros de Castro (2021, p. 21), apoiado em Maniglier (2005), uma verdadeira ntropologia seria aquela que nos devolvesse uma imagem de nós mesmos (investigadores/antropólogos) na qual não nos reconhecemos, uma imagem “distorcida” que somente este olhar do outro pode nos dar de nós mesmos. Esta investigação seria a ocasião para realizar uma “experiência sobre nossa própria cultura” (p. 21). Que permitiria nos colocar em um regime de variação, nos trazer questões que nos permitam e talvez nos obriguem à introdução de novas variáveis e conceitos, “a estrutura da nossa imaginação conceitual que deve entrar em regime de variação, assumir-se como variante, versão, transformação” (p. 21). Que educação matemática suporta essa especulação inventiva?

Se tomarmos o exemplo tratado anteriormente, dos espanhóis nas Antilhas, a própria noção/concepção de “alma”, “espírito” (para assim os consagrá-los humanos) é colocada em xeque ao perceberem que para aqueles que ali estavam “tudo” poderia, potencialmente, possuir “alma”, “espírito”, ou seja, ser também humano. Se humano passa a ser tudo, ou quase tudo, aquilo que era justamente relegado ao não-humano, rios, montanhas, pedras, animais, que fim poderia ter tal conceito? Esta e outras experiências nos colocam, segundo o Antropólogo, frente a um impasse, uma diferença intransponível, um equívoco na tradução, e aqui reside o lugar privilegiado do pesquisador/antropólogo.

Traduzir é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo. Não para desfazê-lo, o que suporia que ele nunca existiu, mas, muito ao contrário, para potencializá-lo, abrindo e alargando o espaço que se imaginava não existir entre as linguagens conceituais em contato — espaço que, precisamente, o equívoco ocultava. O equívoco não é o que impede a relação, mas aquilo que a funda e a propele: uma diferença de perspectiva. Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última — uma semelhança essencial — entre o que ele e nós “estávamos dizendo” (Viveiros de Castro, 2021, p. 90-91).

Assim, para instalar-se neste equívoco nos colocamos no processo, antecipadamente frustrado, da tradução. Viveiros de Castro nos convida a habitar estes equívocos e questionarmos nossas próprias práticas, nossos próprios jogos de linguagem, para usar a expressão do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (2009).

A tentativa de tradução passa por uma tentativa de compreensão do outro, de como poderiam, talvez, dizer os nativos, habitar o corpo do outro, para, assim, descobrir o que eles veem quando olham ao redor, quando nos olham.

Este modo de ver, ou de ‘se’ ver, pelos olhos do outro parece ter sido explorado por alguns povos em rituais canibais, como aponta o antropólogo. Ao estudar os rituais canibais entre diversas tribos ameríndias, ele se dá conta que o aspecto menos significativo era a “alimentação” do ponto de vista energético/biológico. Ao analisar o canibalismo Tupi, ele o vê como um processo de transmutação de perspectivas (Viveiros de Castro, 2021, p. 158-159). Ao ingerir a “carne” do outro, não se busca satisfazer a fome, mas, sim, “trocar de lugar” com este outro, assumir, mesmo que momentaneamente, a perspectiva do outro:

Terminei portanto por defini-lo como um processo de transmutação de perspectivas, onde o “eu” se determina como “outro” pelo ato mesmo de incorporar este outro, que por sua vez se torna um “eu”, mas sempre no outro, através do outro (“através” também no sentido solecístico de “por meio de”) (Viveiros de Castro, 2021, p.159).

Em outras palavras, alguns indivíduos da tribo se alimentavam do inimigo para terem de si mesmos uma visão privilegiada, justamente a visão deste inimigo sobre si. O antropólogo argumenta pela existência de cânticos que assumem esta postura, narram a visão do outro sobre a própria tribo. Esta inversão de perspectiva propicia uma inversão posicional (p. 159), uma autodeterminação recíproca que dependia, essencialmente, desse acesso ao outro: uma visão do inimigo sobre si. Esta inversão, do olhar sobre “si mesmo” pela perspectiva do outro nos pareceu bastante interessante de ser explorada, inclusive, no contexto educacional. Para a própria antropologia, Viveiros de Castro apresenta uma antropologia multinaturalista nativa que tem como cerne a apreensão do ponto de vista do inimigo sobre si mesmo, em um processo de autodescrição pelo outro, uma “antropofagia enquanto antropologia” (p. 160).

Entendemos que a proposta antropológica de Viveiros de Castro passa por um processo de canibalização do outro, ao enunciá-la como um espelho que nos reflete uma imagem na qual não nos reconhecemos, estamos, de certo modo, tentando habitar este corpo do outro que nos vê, e nos vê de sua própria perspectiva/corporalidade e, assim, nos vê de modo diferente do que somos capazes de, por nós mesmos, vermos.

Em contágios e reverberações de uma educação matemática canibal

As ideias de aproximações, diálogos e trânsitos entre áreas de conhecimento, por exemplo, Antropologia e Educação Matemática, sempre nos parecem um tanto quanto estranhas, pois, de certo modo, indicam um processo que se coloca em marcha entre identidades: A Educação Matemática e A Antropologia. Parece-nos também um tanto quanto estranha a suposta possibilidade de uma suspensão de um corpo e uma inteligibilidade, que nos coloca como indivíduos autônomos, livres e conhecedores de nós mesmos, com nossas crenças, verdades e modos de organizar mundos, diante de produções outras que nos chegam. Assim, um movimento em contágios e reverberações, sempre em tentativas, espreitas, abismos e brechas, nos impulsiona a um desconhecido e, ao mesmo tempo, desejado; em uma angústia que, por vezes, paralisa, ao mesmo tempo, como uma obstinação de algo que sacia e acalma. Contagiar em modos de sentir cheiros, vislumbres, déjà vu, em violências com nossos próprios corpos, que tendem a se acomodar em capturas que apaziguam. Contagiar em um porvir, sem expectativas, com pouquíssimas seguranças. Reverberar como um som que se desloca em um espaço-tempo-matéria e que se inventa em memórias afetivas, em imaginações fantásticas, em um impulso. Reverberar-se em efeitos que acontecem; em palavras que aparecem entre nossos dedos em um teclado e uma tela retangular que brilha e institui pontos pretos em um fundo branco e que nos impõe uma narrativa que sempre nos assusta, pois nunca conseguimos antecipar uma localidade para nossas produções inventivas.

Diante dessas ideias, os conceitos de corpos e coletividades nos parecem interessantes, em contágios e reverberações com o perspectivismo ameríndio. Estes nos movem em equivocações com outros conceitos tão bem assentados em práticas de educações matemáticas. Neles e entre eles e neles em meio a uma perspectiva, tecemos nossos convites: nossa matemática, filosofia, educação em meio a uma antropologia ameríndia.

Não dialogamos, nem trazemos, nem nos aproximamos, muito menos nos apropriamos de noções do multinaturalismo de Viveiros de Castro para pensar uma Educação Matemática, ou uma Filosofia da Educação Matemática. Contagiamo-nos em reverberações E reverberamo-nos em contágios de uma narrativa que acontece, em efeitos e apostas; em potências inventivas e silêncios, em uma tentativa.

Corpo

Corpo em educações matemáticas, por vezes, é constituído em meio a uma perspectiva eurocêntrica de mundo. Fixo, rígido, único. Um corpo biológico que se institui como um organismo, constituído de órgãos, que serve apenas como uma morada para a racionalidade. Na aula de matemática tem que ficar quieto e em silêncio. Não é possível aprender matemática pulando, brincando, colocando corpo em movimento. Aprender matemática exige esforço, repetição e concentração. Quem nunca escutou isso em algum momento na vida? Educações Matemáticas, tomadas como práticas que acontecem em um determinado espaço-tempo-matéria, geralmente com alunos, professores e conteúdos, aglutinados diante de uma tarefa de uns (alunos) aprenderem com um (professor) o conteúdo matemático. Nesses acontecimentos, uma matemática (que muitas vezes é tomada como única) se apresenta como descorporificada, generalizada, universalizada e neutralizada, um conhecimento objetivado. O corpo do aluno não faz diferença. Um conceito de função independe de um corpo de um aluno. Logaritmos no Brasil acontecem dos mesmos modos que em outros países. Essa é a pretensa potencialidade da matemática: ser neutra e universal.

E se outras possibilidades fossem construídas? Não em outras significações para o conceito de corpo, pois assim estaríamos operando ainda a partir da ideia de essência e representação. E se outros corpos fossem inventados, por exemplo, por cosmologias ameríndias? Que contágios e reverberações essas invenções corpos aconteceriam em nossas canibalizações de nossas educações matemáticas do dia a dia?

Taylor e Viveiros de Castro (2019, p. 769) afirmam que “[...] um corpo não se basta nunca a si mesmo. Trata-se de imaginar que sua forma é determinada pelo olhar dirigido a ele, em função da relação que se estabelece com ele”. Ainda segundo os autores,

[...] o corpo humano não mais ocupa um lugar único e estável no esquema do cosmos, já que sua forma é inteiramente relativa à perspectiva de um testemunho – humano ou não humano –, fornecido pelo olhar do outro, em vez de ela ser um atributo essencial de uma dada classe de seres (2019, p. 769).

Um primeiro susto seria na direção de que um corpo acontece não em função de uma identidade pré-estabelecida para se relacionar com outro corpo (também já pré-estabelecido). Não se tem o indivíduo que, por meio de estratégias didáticas de um professor, aprende matemática escolar. Se um corpo se faz corpo em meio a uma perspectiva, em uma sala de aula de matemática vários corpos se inventam em diferentes momentos. Corpos que escutam; outros corpos que imaginam; outros corpos que sentem angústias e pressões; outros corpos ainda que pertencem; outros corpos que são excluídos; outros corpos… Outros corpos que podem ser inventados em perspectivas distantes de uma ideia de aluno, de escola e de matemáticas.

Diferentes corpos-alunos seriam muitos, em relacionalidades que inventam salas de aulas de matemática. Não tem um objeto (uma identidade) aqui, outra lá; uma intencionalidade que tem uma causa e produz um efeito, em um processo linear e pré-programado. Acontecem atravessamentos, afetações em invenções de corpos-alunos múltiplos, em corpos-professores também múltiplos, em corpos-alunos-professores-matemáticas, em enredamentos com corpos-carteiras, corpos-sentimentos.

Os uniformes nas escolas que vestem os corpos de alunos em uma política de segurança, de colocá-los em homogeneizações, intensificam a ideia de um corpo fixo e identitário. Aquele corpo-aluno é um aluno de tal escola. Pouco importa como este aluno se inventa em relacionalidades. De certo modo, tanto faz qual uniforme um aluno usa para ir à escola, pois é uma simples vestimenta: um pedaço de pano que cobre seu corpo. Em dias frios são mais grossos e cobrem mais os corpos; em dias quentes são menores e cobrem menos os corpos. Uniformes operam como uma estratégia de manutenção da binaridade corpo e alma (poderíamos pensar no corpo e inteligibilidade ou racionalidade) e nos empurram para um processo de silenciamento da produção de corpos outros.

Em outro modo de inventar corpos, com o perspectivismo ameríndio, objetos, pinturas, roupas (uniformes) não apenas se encaixam em um corpo, não são meras coisas que estão sobre um corpo. Eles fabricam outros corpos. Como esses objetos, pinturas, roupas potencializariam relacionalidades outras em outros corpos em um espaço-tempo-matéria sala de aula? Em crianças menores, por exemplo, é muito comum elas vestirem uma roupa de super-herói e se verem a si mesmas como um super-herói. É comum também um adulto lembrá-las que elas não são super-heróis e que apenas estão vestindo uma roupa que as fazem parecer com um super-herói. Segundo Taylor e Viveiros de Castro,

Adornos, pinturas corporais e máscaras não têm sentido senão quando vestidos por um corpo vivo. Longe de serem simples decorações, algum tipo de fantasia, esses artefatos são literalmente prolongamentos ou elementos do corpo. Eles devem ser animados, no sentido próprio do termo, ou não são nada (2019, p. 772).

Como uma carteira acontece como carteira em uma relação corpo-carteira-aluno? Como uma sala de aula acontece sala de aula em uma relação corpo-matemática-alunos-deitados? Ainda com Taylor e Viveiros de Castro, adornos, pinturas corporais e máscaras,

[…] não fabricam representações do corpo; elas fabricam antes de tudo corpos. Os utensílios são pensados, descritos e frequentemente decorados como corpos. A “obra de arte” que importa na Amazônia é o corpo humano.

Tomando corpos inventados em perspectivas distintas em um espaço-tempo-matéria sala de aula de matemática, que outras relacionalidades podem acontecer? Um corpo como uma obra de arte, um corpo…

Nosso projeto não é tomar a sala de aula de matemática e inventá-la como um ateliê de produção de vidas indígenas. Nosso projeto é contagiar-se e reverberar-se em conhecimentos e afetos ameríndios, em uma cosmovisão (ou cosmopercepção) outra e tentar acontecer em outras salas de aulas. Não é um buscar lá e trazer para cá. Não é um transformar uma aqui. Talvez, um canibalizar. Fazer de uma sala de aula um território de equivocações, se instalar no equívoco e habitá-lo como lugar privilegiado. Evidenciar que há equívoco(s) para além do(s) epistemológico(s), mas, também, ontológico(s) em nossas salas de aula (de matemática) e que não temos condições nem de estar no corpo do outro e nem mesmo de nos conhecermos se não o canabalizarmos já se coloca em nosso movimento e questionamento de educações matemáticas.

Coletividades

Territórios nos quais acontecem educações matemáticas, por vezes, são marcados pela ideia de que um indivíduo aprende um conteúdo. As estratégias político-econômica-pedagógicas que organizam esses territórios têm como uma centralidade: a aprendizagem de alguém (um aluno, um professor, um aluno professor em formação inicial ou continuada) de algum conteúdo, ideia, um processo, uma teorização, um conhecimento objetivado. Um sujeito tomado como um indivíduo que se movimenta em direções ascendentes, em degraus de titulações, tais como, Educação Infantil, Ensino Fundamental I, Ensino Fundamental II, Ensino Médio, Graduação, Mestrado, Doutorado, se faz comum em nossa sociedade. É sempre alguém que recebe, conquista, merece uma titulação e, com isso, tem possibilidades de atuar profissionalmente em certos espaços: nossos diplomas são individuais.

A aprendizagem de conteúdos é uma marca de um projeto de uma escola moderna, constituída em narrativas e lógicas ainda coloniais, como o progresso, melhoria e o desenvolvimento. Esforço, dedicação e merecimento são outras lógicas e narrativas que constituem essa escola e que se engendram entre um projeto colonial etnocêntrico e uma política religiosa judaico-cristã. Esta está espalhada em diversos níveis, modos e intensidades, pelo menos na sociedade contemporânea brasileira.

Coletivos, por vezes, se constituem como uma ampliação de uma ideia própria de um indivíduo. Pessoas que se organizam de modos semelhantes, que se vestem de maneiras parecidas, que acreditam em ideais próximos e que, muitas vezes, são gerenciados por um líder, que além de indicar o que fazer, constrói uma sensação de apaziguamento e de trabalho realizado, são comuns em educações matemáticas. De territórios da Educação Básica a outros da Pós-Graduação, acontecem processos de homogeneização que se constituem, por vezes, na proclamação de uma narrativa que se atenta para às diferenças, pelo menos em seus discursos, mas que, na prática, muitas vezes em modos despercebidos, alimentam a manutenção e reprodução da identidade. Uma identidade ‘única’, pautada por palavras e expressões como ‘normal’, ‘maioria’ ou ‘bem-comum’, ‘coletividade’. Todas estas inscrevem e circunscrevem corpos, corpos ideais pertencentes ao coletivo, corpos desejosos de participarem do coletivo e que, assim, se submetem aos modos e meios estipulados nas regras de pertencimento do grupo.

Como produzir coletividades em espaços educativos que se inventam em lógicas e narrativas que se afastem da identidade? Que salas de aula podem em lógicas e narrativas outras que se afastem da ideia de indivíduo? Que possibilidades nos trazem uma Antropologia Ameríndia Perspectivista?

Mais uma vez repetindo (e vale ressaltar que repetir o mesmo é sempre operar na diferença) intencionalmente as palavras de Viveiros de Castro, a [...] originalidade radical da contribuição dos povos do continente para a herança intelectual da humanidade ainda não foi totalmente absorvida pela antropologia (2018, p. 249), nossa aposta, ou mesmo um convite para uma filosofia, matemática, educação é que outros modos de inventar coletividades se constituem como potências em contágios e reverberações com cosmologias ameríndias. Segundo Taylor e Viveiros de Castro (2019, p. 774)

Para os povos indígenas, não é a dimensão subjetiva que forma o núcleo da “humanidade” tão generosamente distribuída entre os existentes do mundo. Dizer de uma entidade que ela é uma pessoa significa, antes de tudo, atribuir a ela uma qualidade de membro de uma comunidade: o “humano” só pode ser algo coletivo, e a “pessoa” representa um pedaço de sociedade antes de ser um indivíduo com destino e caráter individuais .

Ainda com esses autores, temos que

O modelo de coletivo ao qual se deve estar filiado para ser humano é o da espécie natural, o princípio é o de “quem se parece, se junta”. Toda espécie – todo coletivo formado por existentes unidos pela aparência e pelo comportamento – forma uma sociedade. Reciprocamente, toda sociedade – a começar por aquela a que pertence o enunciador indígena – constitui uma espécie (2019, p. 774).

Uma primeira problemática seria em relação às aprendizagens individuais de sujeitos escolares. Que sentido teria pensar em uma aprendizagem “interior” de um aluno em sala de aula e colocar essa (suposta) aprendizagem em uma métrica que determina sua permanência ou exclusão de um espaço escolar (coletivo-sociedade-espécie)? Na escola, ou em muitas delas que seguem um projeto da modernidade, mente (relacionada com aprendizagens de conteúdos) é separada de corpo; bem como indivíduo (aluno com o nome x, relacionado com a média escolar y) é separado de sua comunidade. Em escolas, ancestralidades, sonhos da noite anterior, ritos e memórias corporais, por vezes, são deixados bem longe das aulas de matemática - ou seriam supostamente deixados.

Coletividades como traços de corpos que se parecem, se dispõem e se comunicam de maneiras próximas podem ser tomadas como constituintes de uma escola na qual aprendizagens são colocadas em favor de invenções de relações de pertencimentos. A aprendizagem de um conteúdo por um aluno (quase sempre oriunda de uma ação pedagógica do professor) se esvai em um projeto de escola no qual aprendizagens (sempre no plural) de narrativas e lógicas de uma matemática escolar E também de sentimentos, afetos, ancestralidades, contemplações, imaginações que percorrem brechas e fluxos de vidas que se enredam entre viventes que partilham potências inventivas com o Sistema Terra (e não no Sistema Terra).

Acontecemos (todas espécies) com Gaia (Latour, 2020) e uma escola pode ser um dos territórios para inventar, construir, fazer a manutenção de pertencimentos, que estão apenas em uma região de permanência (transitória) e que sempre se movem em um porvir. Aprendizagens acontecem como uma relacionalidade que habita esses territórios. Ancestralidades acontecem como outra relacionalidade que impulsiona e convida a construir outras temporalidades. Estas também acontecem como uma outra relacionalidade, na potência de torções de um deus Chronos, que perde (e se perde), por vezes, em um sorriso de uma criança que transborda seu corpo, imaginação e sensibilidades diante de um desenho, uma brincadeira, uma aventura com seus congêneres (apenas como um exemplo). Instantes imensos habitam e podem habitar nossas práticas e relacionalidades, e romper com o fatalismo do presente a se tornar passado. Ainda com Taylor e Viveiros de Castro (2019).

Um sujeito amazônico ou um humano, em resumo, é um ser que tem as propriedades corporais, as disposições e as aptidões necessárias para manter relações com seus congêneres. A subjetividade não tem grande coisa a ver com esse espaço privado, opaco ao outro, anterior a toda forma cultural e social que associamos à mente ou espírito. Sua interioridade é constituída precisamente por esse conjunto de coisas que nós agrupamos sob o termo cultura – a essência, aos nossos olhos, de um domínio público, partilhado por todos. Enquanto para nós a cultura se associa ao domínio da convenção, da regra e do artifício – em uma palavra, da variabilidade –, do ponto de vista indígena ela é um atributo natural da sociabilidade intra-específica e de maneira nenhuma uma questão de escolha coletiva, de inconstância histórica ou de determinismos oriundos do meio natural. Tudo o que a compõe é inerente à sociabilidade partilhada pelos indivíduos – sejam eles animais desta ou daquela espécie, espíritos, ou simples humanos – que se reconhecem e são reconhecidos por outros como semelhantes (p. 776-777).

Corpos que são produzidos e produzem mundos em função de perspectivas que potencializam possibilidades. Coletividades que afetam construções de lógicas e narrativas outras, nas quais salas de aulas (da Educação Básica a Pós-Graduação) se inventam em espaços-tempo-matérias de pertencimentos. Coletividades que ultrapassem o aglutinar de corpos individuais, corpos sempre produzidos em perspectivas, coletivos produzidos, também, em perspectivas.

Pela equivocação como uma estratégia (um grito de uma antropologia ameríndia)

As demandas de um mundo contemporâneo colocam a ‘espécie humana’ (essa espécie do humanóide, ainda se achante centro de todo o universo) em problemáticas nas quais os modos de produzir políticas e organizações sociais (e espaços educacionais), em relacionalidades com outras espécies e com o Sistema Terra, são insuficientes. O colapso climático, por exemplo, (não uma crise climática, pois seria possível de resolvê-la; não uma mudança climática, pois seria possível de nos adaptarmos) é uma demanda que explicita essa situação. Acreditamos que grande parte das pessoas, se questionadas, apontariam ser preciso construir estratégias para lidar com o colapso ecológico. Elas reconhecem a problemática e se veem impelidas a se movimentar com elas. Entretanto, ao nos movimentarmos em estratégias político-econômicas que lidam explicitamente com a problemática e que podem afetar de maneira substancial um cenário nos próximos anos, ainda estamos paralisados, no limite, com o afeto da indignação e sem coragem de romper com alguns paradigmas. Nem mesmo a pandemia da Covid-19, um vírus, agente não humano e “não vivo”, que colapsou bolsas de valores no mundo inteiro, demandou mudanças em modos de organizar relações pessoais e profissionais em vários cantos do mundo, teve um impacto significativo na emissão de carbono e na redução do aumento da temperatura do Sistema Terra.

A territorialidade ameríndia, advinda de sua cosmopolítica e ontologia em perspectiva, nos coloca em outra posição, não mais como aqueles que habitam Terra, mas daqueles que necessitam ouvi-la para guiar suas ações e dar respostas a ela, o ser humano não interfere na natureza, ele é a própria natureza em relacionalidade com outras espécies, com outros humanos que habitam diferentes corpos.

Entre corpos e coletividades, em uma educação matemática canibal, uma estratégia oriunda de uma antropologia perspectivista ameríndia é a noção de equivocação (Viveiros de Castro, 2018). Não se trata de um movimento explicativo, interpretativo ou de revelar ou descortinar algo que ainda está em vias de ser conhecido. Segundo Viveiros de Castro (2018) a equivocação aparece como […] o modo de comunicação por excelência entre posições perspectivais diferentes – e, portanto, como tanto a condição de possibilidade e o limite da empreitada antropológica (p. 249). A equivocação é uma condição de possibilidade de uma produção antropológica (ou educacional, como propomos aqui). Ainda com Viveiros de Castro (2018):

Uma equivocação não é um erro ou uma enganação. Ao invés disso, é a própria fundação da relação que implica, a qual é sempre uma relação com uma exterioridade. Um erro ou uma enganação podem ser determinados enquanto tais apenas a partir de dentro de um dado jogo linguístico, enquanto uma equivocação é o que se desdobra no intervalo entre diferentes jogos linguísticos. Enganações e erros supõem premissas já constituídas – e constituídas como homogêneas – enquanto uma equivocação não apenas supõe a heterogeneidade das premissas em jogo, mas também as coloca como heterogêneas e as pressupõe enquanto premissas. Uma equivocação determina as premissas ao invés de ser determinada por elas (p. 255).

Equivocar-se pode ser uma estratégia político-econômica-pedagógica em uma educação matemática, na qual, diante de um espaço, chamado sala de aula, junto com outros congêneres, chamados alunos e professores, se relacionando com lógicas e narrativas que costumam ser consideradas como matemáticas, sempre no plural, acontece uma produção e manutenção de certos pertencimentos. Certos, pois este cenário não deve (deveria) se isentar de um projeto político, sempre aberto e também bem explicitado frente a demandas, problemáticas e possibilidades de lugares chamados escolas e formação de professores.

Equivocar-se, como habitamos esse ensaio na espreita, abismo e brecha. Equivocar-se nos entres de uma potência em estar diante de um espelho e produzir um corpo e uma coletividade, e uma educação matemática. Uma, apenas sendo esta, que nestes escritos acontece.

Instalar-se no equívoco e fazer dele um local privilegiado de nossas investigações e salas de aula pode nos devolver imagens distintas, que talvez não nos identifiquemos e, talvez, não gostemos. No entanto, um projeto anti-narcísico de/com educação matemática pode se valer desse lugar e dessas imagens. O processo de reprodução de conteúdos e formatação de corpos para o mercado de trabalho parece ser um objetivo nefasto de nossas escolas e educações matemáticas que corroboram com modos capitalistas, racistas, sexistas e excludentes de ser e de interagir no/com o mundo. Processo este reforçado por bases e currículos mínimos que, ao fim e ao cabo, tornam-se as grandes metas da educação e refletem, mais diretamente, com a BNC Formação, por exemplo, seus reflexos e implicações na formação de docentes. O espaço do equívoco necessita, antes de qualquer coisa, que assumamos a diferença em seu sentido mais profundo. O equívoco nos tira da órbita de ensinar algo fixo a alguém, seja um conteúdo, uma habilidade ou uma competência e nos coloca na relação com o outro, verdadeiramente assumido como outro e não um eu em formação, em processo. Assim, é necessário abandonar a postura narcisística de um professor que tem algo a ensinar, de um pesquisador que tem algo a dizer à escola, ao professor, ou ao currículo. Equivocar-se em educações matemáticas talvez passe mais por reverberar, destoar e evidenciar diferenças e distorções do que assumir posturas fixas, identitárias, pedagógicas ou didáticas. Ao olharmos para este espelho distorcido que Viveiros de Castro (2021) nos traz, que educações matemáticas encontramos? Enfim, ao que nos parece, e parafraseando o Antropólogo, a grande contribuição das perspectivas ameríndias para nossas educações matemáticas parece que ainda não foi canibalizada.

Declarações Finais

Contribuições dos autores. Thiago Pedro Pinto: concepção do texto, escrita do esboço inicial, discussão e revisão do material. João Ricardo Viola dos Santos: concepção do texto, escrita do texto, discussão e revisão do material.

Conflitos de interesses. Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Financiamento. O presente artigo está diretamente vinculado a pesquisas desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e não contou com financiamento específico.

Implicações éticas. O artigo não tem implicações éticas.

Referências

Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.

Latour, B. (2020). Diante de Gaia: Oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Editora UBU.

Lins, R. C. (1999). Por que discutir teoria do conhecimento é relevante para a Educação Matemática. In: Bicudo, M. A. V. (Org.). Pesquisa em Educação Matemática: concepções & perspectivas. São Paulo: Editora UNESP.

Lins, R. C. (2022). O Modelo dos Campos Semânticos: Estabelecimentos e Notas de Teorizações. In: Angelo, C. L. et al (Orgs.) Modelo dos Campos Semânticos: 20 anos de História (segunda edição revisada e ampliada). Porto Alegre: Editora Fi.https://www.editorafi.org/ebook/652campos.

Lutterbach, A. L., & Castro, S. (2018, fevereiro 7). Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro. Derivas Analíticas. Acesso: 10/08/2023. https://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/castro.

Maniglier, P. (2005). “La Parenté des autrespropos de Maurice Godelier: Métamorphoses de la parenté)”. Critique, n. 701, out., pp. 758-74.

Pinto, T. P., & Viola dos Santos, J. R. (2023) Canibalizar Educações Matemáticas: uma experiência de intradutibilidade. In: PAULUCCI, E. M., & OSORIO, C. T. (Orgs.). Vidas inSURgentes na Educação Matemática: diálogos decoloniais. Bauru: Editora Gradus.

Taylor, A. C., & Viveiros de Castro, E. (2019). Um corpo feito de olhares (Amazônia). Revista de Antropologia, (São Paulo, Online), v. 62 n. 3, 769-818 | USP.

Viveiros de Castro, E. (2018). A Antropologia Perspectivista e o método da equivocação controlada. Tradução de Marcelo Giacomazzi Camargo e Rodrigo Amaro. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, v. 5 n.10, 247-264.

Viveiros de Castro, E. (2021). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora, n-1 edições.

Wittgenstein, L. (2009). Investigações filosóficas (6ª ed.). Petrópolis: Vozes. Tradução Marcos G. Montagnoli; revisão da tradução e apresentação Emmanuel Carneiro Leão.