A Composição de um Rigor sem Órgãos por meio de uma Ópera de Movimentos Aberrantes
Resumo
Este artigo se propõe a assumir discursos enunciados sobre o rigor, multiplicando-os em possibilidades para produzir o conceito de rigor sem órgãos. Para isso, vale-se dos restos discursivos sobre o rigor enunciados em uma disciplina de Análise Real e do exercício de problematização e produção do conceito de rigor sem órgãos, utilizando ferramentas das filosofias das diferenças. Para a proposta estética, opta-se por uma estrutura de ópera como forma política de experimentação narrativa. Como resultados de pesquisa, produz-se o conceito de rigor sem órgãos para deslocar o rigor de sua dimensão do poder em direção a um rigor do acontecimento, que opere por escapes em movimentos singularizados e aberrantes, de acordo com uma regra de funcionamento, mais como arma de invenção de outras formas de vida na relação com um rigor do que como ferramenta de reprodução de relações (de poder) com o rigor.
Palabras-chave: corpo sem órgãos, filosofias da diferença, educação matemática, análise real, relações de poder.
1. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas, Piranhas, Brasil.
2. Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, Brasil.
Recibido: 10/Noviembre/2023
Revisado: 08/Abril/2024
Aprobado: 21/Julio/2024
Publicado: 17/Agosto/2024
Para citar este artículo: Miarka, R., & Gomes, D. O. (2024). La Composición de un Rigor sin Órganos a través de una Ópera de Movimientos Aberrantes. Praxis & Saber, 15(42), 1–22. https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n42.2024.16811
Danilo Olímpio Gomes 1
Roger Miarka 2
The Composition of a Rigor without Organs through an Opera of Aberrant Movements
Abstract
This article proposes to take on speeches expressed about rigor, multiplying them into possibilitiesto produce the concept of rigor without organs. To do this, it uses the discursive remains aboutrigor enunciated in a Real Analysis discipline and the exercise of problematization and productionof the concept of rigor without organs, using tools from the philosophies of differences. For theaesthetic proposal, an opera structure was chosen as a political form of narrative experimentation.As research results, the concept of rigor without organs is produced to shift the rigor of itsdimension of power towards a rigor of the event, which operates through escapes in singularizedand aberrant movements, in accordance with an operating rule, more as a weapon for theinvention of other forms of life in a relationship with rigor than as a tool for reproducing relationships (of power) with rigor.
Keywords: body without organs, philosophies of difference, mathematical education, real analysis, power relations.
La Composición de un Rigor sin Órganos a través de una Ópera de Movimientos Aberrantes
Resumen
Este artículo propone retomar los discursos expresados sobre el rigor, multiplicándolos enposibilidades para producir el concepto de rigor sin órganos. Para ello, se sirve de los restosdiscursivos sobre el rigor enunciados en una disciplina de Análisis Real y el ejercicio deproblematización y producción del concepto de rigor sin órganos, utilizando herramientas provenientes de la filosofía de las diferencias. Para la propuesta estética se optó por una estructura de ópera como forma política de experimentación narrativa. Como resultado de la investigación, el concepto de rigor sin órganos se produce para desplazar el rigor de su dimensión de poder hacia un rigor del acontecimiento, que opera a través de fugas en movimientos singularizados y aberrantes, de acuerdo con una regla operativa, más como un arma para la invención de otras formas de vida en una relación con rigor que como herramienta para reproducir relaciones (de poder) con rigor.
Palabras clave: cuerpo sin órganos, filosofías de la diferencia, educación matemática, análisis real, relaciones de poder.
Abertura de uma Ópera de Rigor
A palavra rigor povoa o fazer e o saber de professores/as e produtores/as de Matemática, assim como de pesquisadores/as de uma forma geral. Quem nunca escutou expressões como “ser rigoroso em uma sala de aula”, “o rigor de uma demonstração” ou “o rigor metodológico de uma pesquisa”, entre muitos outros enunciados possíveis?
Nós, autores, em especial como professores de Matemática do Ensino Superior e pesquisadores em Educação Matemática, temos o rigor como palavra cotidiana em nossas carreiras como preocupação, ou melhor, pré-ocupação, que nos acompanha antes de qualquer ocupação. A proposta que ora apresentamos toma o rigor como ocupação. Como? Assumindo os discursos que são enunciados a seu respeito e multiplicando-os em possibilidades. Para isso, nos valeremos dos restos discursivos visibilizados na dissertação de mestrado A Disciplina de Análise segundo Licenciandos e Professores de Matemática da Educação Básica (Gomes, 2013) e do exercício de problematização e produção do conceito de rigor sem órgãos, promovido pela tese de doutorado Rigor sem Órgãos: em meio a relações discursivas, (r)ex(s)istências possíveis (Gomes, 2020), em um percurso que não deseja territorializar-se em nenhum espaço específico, mas correr por terras, ora conhecidas ora desconhecidas. Uma espécie de deslizamento por linhas transversais tortas e embaraçadas, que atravessam e são atravessadas por um emaranhado de outras linhas que compõem não somente o território a ser percorrido, mas também as próprias linhas de percurso. Enfim, um trajeto que se aventura e se propõe a produzir à moda de um rizoma.1
Filosofia? Matemática? Educação? Literatura? Arte? Não, este texto não se identifica especificamente com uma ou outra dessas áreas disciplinares identitárias. Talvez possamos dizer que corre entre-áreas (ou como entre-árias), na medida em que opera entre seus espaços, em seus becos escondidos, pouco conhecidos, e, por isso, com alguma liberdade promovida por suas sombras. Serve para operar, por vezes rasgando um e outro território, por meio de movimentos aos quais chamamos aberrantes. Movimentos que se movem e que podem , por sua característica dinâmica física de encontro com o que está parado, ter a potência de afetar, possivelmente deslocando quem lê. Aberrantes por assustarem? Não aos destemidos. A estes, aberrantes ganham contornos de desvios, estranhamentos, afastando-nos do vulgarmente tido como normal, natural ou padronizado.
Convidamos quem lê a despir-se de suas roupagens de pertencimentos disciplinares e a abandonar seus eus-educadores-matemáticos-artistas-filósofos, para operar com um texto que tenta, a todo momento, escapar entre os dedos e, nesses escapes, operar com um fissuramento do que, até hoje, se entendeu por rigor. Novas reterritorializações podem ser feitas – e até são desejáveis –, mas não em nome da coerência com o que se entendia antes por rigor ou pela defesa e/ou extensão de campos disciplinares. O convite é para o uso de um novo conceito que aqui cunharemos – o de rigor sem órgãos – para ser operado em diferentes espaços à escolha de quem lê. A regra é a do funcionamento, mais como arma de invenção de outras formas de vida na relação com um rigor do que como ferramenta de reprodução de relações (de poder) com o rigor.
Como proposta estética, optamos por uma estrutura inspirada pela ópera2, como forma política de experimentação narrativa, motivados por gostos pessoais, mas também por reconhecer a potência de operar com outras formas de organização do conhecimento que podem levar quem lê a mobilizar outros afetos (Amariz-Ruidiaz & Miarka, 2018, Gomes, Amaris-Ruidiaz & Miarka, 2024). Como salientam Deleuze e Guattari (2003), ao compor uma escrita menor3 (a qual este trabalho busca exercitar), mergulha-se em um movimento que tem como característica a desterritorialização da língua – neste sentido, para que possamos operar movimentos de desterritorialização do rigor instituído, entendemos que é necessário desterritorializar a própria norma culta de composição de trabalhos acadêmicos (o que nos leva a um movimento de resistência necessário para que as intensidades dos afetos operados no texto possam atravessar). Assim, a estrutura de ópera4 composta por atos, cenas, árias, coro, interlúdios e intermezzo permite uma oportunidade interessante para construirmos quebras de linearidades discursivas em nosso texto, o que pode nos ajudar a desnaturalizar alguns discursos imperantes. Além da ligação com as condições políticas e sociais das quais o rigor instituído emerge, este texto também assume muitas vozes que podem criar uma ruptura na individualidade motriz operada pelo rigor, promovendo a possibilidade do rigor ser multiplicado em rigores.
Assim, entendemos que, nesta ópera, o enredo já foi anunciado: o movimento de produção do conceito de rigor sem órgãos a partir de restos discursivos acerca do rigor da disciplina de Análise Real. Sua composição se dará em dois atos separados por um intervalo de descanso e antropofa gização, que focam, respectivamente, na visibilização de enunciados em uma ordem do discurso promovido por Gomes (2013) e na produção do conceito de rigor sem órgãos (Gomes, 2020), ainda que, por vezes, apareçam entrelaçados em um tempo mais kairológico que cronológico5. Sua [esta] Abertura trata do anúncio de nossa proposta e, em cada ato, haverá cenas, nossos movimentos aberrantes, e as árias – nós, como narradores, Roberta, uma figura bastante cara que surgirá ao longo do texto e alguns personagens conceituais6 – e um coro de vozes sustentado pela literatura de educadores, matemáticos, filósofos, etc., tomados como operantes e não como referências legitimadoras do dito.
Ao contrário do que usualmente ocorre em uma ópera, as cenas não serão dispostas a compor uma narrativa linear, mas como provocações para que a própria pessoa que lê produza sua narrativa sobre um possível rigor. Em meio a cada cena, operaremos com interlúdios, pequenas composições que visam fissurar uma (ainda possível) linearidade interna a cada cena. Finalizaremos nossa ópera com um intermezzo, tomando a licença poética de assumi-lo de maneira mais destacada e diferenciada que os interlúdios7, considerando-o uma baliza de meio e não de fim. Intermezzo como inter-mezzo, ou seja, entendido como meio da vida e do tema que não se esgota.
Ato I
A dissertação A Disciplina de Análise segundo Licenciandos e Professores de Matemática da Educação Básica (Gomes, 2013) investigou de que maneiras a disciplina de Análise se mostra a estudantes de cursos de licenciatura em Matemática e a professores/as de Matemática atuantes na educação básica, intencionando o sentido que tal disciplina faz para os sujeitos. Para isto, foram selecionados e entrevistados três licenciandos e três professores, cujas falas foram transcritas e analisadas qualitativamente, sob uma perspectiva inspirada na Fenomenologia. Por meio de reduções sucessivas foram articuladas três categorias abertas nomeadas de A pre-sença da Análise na licenciatura em matemática, A Análise como corpo de conhecimento e A Análise e a abertura do horizonte de possibilidades do professor, as quais entendia-se carregarem consigo a estrutura do fenômeno investigado. Tais categorias foram interpretadas com o intuito de transcender as compreensões acerca do questionado, em um movimento de metacompreensão. Uma torção: para além do ali exposto, o que mais o trabalho permitia vislumbrar? Em termos de pesquisa? Em termos de discursos? Em termos de rigor? Rigor da pesquisa? Rigor da Análise Real? Rigor como incompletude? Rigor como trauma?
Cena I: Movimentos aberrantes pré-ocupantes
Acho que o que há de mais comum em matemática e poesia é o fato de se creditar a mediocridades uma valorização baseada apenas em aspectos puramente formais, mesmo que sejam rigorosos. Criatividade é relegado. Entende-se. Criatividade implica riscos, é muito subjetivo, e numa civilização dominada pelo quantitativo, medir se torna o elemento essencial para decidir, para valorizar.
Ubiratan D’Ambrosio8
O que é o rigor? Até que ponto uma pergunta apenas pautada na busca por uma identidade seria pertinente? Além disso, seria possível respondê-la de modo rigoroso? Podemos pensar que, se enveredássemos na busca por uma resposta ao último questionamento, então também teríamos que delimitar qual rigor seria utilizado para efetuar tal explicação, correndo o risco de sermos questionados sobre que rigor é utilizado para explicar o que é rigor. Assim, nos parece que o intento de tal tarefa explicativa nos levaria a um movimento cíclico infinito amarrado a uma pergunta identitária primordial, que, a cada tentativa, se mostraria fadada ao encontro de Ouroboros.9
Figura 1: Ilustração de Ouroboros do século XVIII atribuída a Abraham Eleazar10
Recorrer a alguma instância superior e operar junto a um ente metafísico – metarrigoroso – poderia apresentar-se como saída. Isso levaria a explicar o que é o rigor utilizando algo extrarrigor? Seria conveniente fazer isso? Um rigor rigoroso permite justificativas que sejam elaboradas fora de seu próprio campo de atuação? Como garantir que o discurso explicativo carregue critérios sólidos e verdadeiros utilizando argumentos que estariam fora de um terreno delimitado pelo próprio rigor? Uma resposta, encontrada por esses meios, seria válida rigorosamente falando? Poderia ser aceita pela comunidade rigorosa como uma explicação convincente e livre de contradições, capaz de satisfazer a qualquer outra pessoa que, posteriormente, indagasse sobre a mesma questão? Também podemos pensar: é possível responder a uma indagação que procura por uma identidade sem adentrarmos os limites de um discurso rigoroso, seja lá quais regras o estabeleçam como tal?
Se tomássemos os pensamentos de Bertrand Russell, talvez conseguíssemos encontrar um caminho para uma resposta que “não dá lugar a uma ampla metateoria no campo da lógica ou qualquer forma de metalinguagem” (Lucchesi, 2009, p. 194-195, grifo nosso), de modo a mostrar a impossibilidade de sair da linguagem interna, única e absoluta da lógica. Mas, ainda assim, poderiam restar dúvidas frente à identidade do rigor utilizado para descrever o “grau de realismo implacável entre a lógica e o mundo, tão forte e cerrado como a zoologia frente à natureza” (Lucchesi, 2009, p. 195).
O que fazer, então, com o questionamento inicial? Atacá-lo ou deixá-lo de lado?
Interlúdio (n-1) 11
É comum encararmos o rigor como algo desvencilhado da intuição.
Intuitivo é o oposto de rigoroso. Mesmo esse uso da palavra não é completamente claro, pois o próprio significado ‘rigoroso’ nunca é dado precisamente. Poderíamos dizer que nesta acepção, intuitivo significa deficiente em rigor, e, no entanto, o conceito de rigor é ele próprio definido intuitivamente (Davis & Hersh, 1986, p. 435).
Pensar essa dualidade, bem como acerca dos níveis de possibilidade de explicar ou não o que é o rigor foi parte do que fizemos durante os anos voltados à nossa pesquisa de doutorado12, de modo que dedicaremos esforços a um desdobramento do que foi produzido. O que trouxemos até agora foi um prelúdio deste movimento já iniciado seguido do que virá – abertura, cenas, interlúdios e intermezzo – a comporem uma (d)obra sempre inacabada. Sendo assim, pedimos que tomem estes escritos como parte viva de nossa pesquisa, a qual possui vida própria e que deseja produzir e continuar produzindo a cada encontro.
Cena II: Movimentos aberrantes enunciantes
Enunciações de Estela, uma licencianda em Matemática:
Creio que de tudo o que vi na graduação, a questão do rigor ficou muito forte. Quando o aluno vai cursar Espaços Métricos, se não escrever tudo ele está ferrado. Isso também acontece na Análise. Então, eu venho nessa mecânica de seguir esse padrão, esse rigor, e acredito que vou continuar com isso.
Pode até parecer loucura, mas teve vezes de eu olhar para questões de Análise e dizer: “Nossa, que lindo! Está tudo explicadinho... está perfeito!” Então, através deste rigor, é possível chegar a essa perfeição. É claro que não quero que meu aluno seja perfeito; isso é impossível. Mas posso querer que ele chegue o máximo possível, não dessa perfeição, mas da compreensão, do entendimento (Gomes, 2013, p.83, grifos nossos).
Rigor que “padroniza”.
Rigor que “embeleza”.
Rigor que “elucida”.
Rigor que “aperfeiçoa”.
Rigor que “ferra”.
Rigor que “controla”.
Ferramenta de (re)produção?
Ferramenta estética?
Ferramenta explicativa?
Ferramenta de construção?
Ferramenta de punição?
Ferramenta de poder?
Cena III: Movimentos aberrantes desestabilizantes
Roberta, uma professora da Educação Básica entrevistada, que, em determinado momento des-organiza a entrevista, tornando-se entrevistadora, atravessando linhas e entrelinhas ao questionar o pesquisador: Você quer ser professor de Análise? Você conseguiu enxergar a Análise de outra forma? O que é Análise Real? (Gomes, 2013).
O pesquisador, impossibilitado de continuar o que estava fazendo, assumiu a fissura construída pelo desacoplamento operado por Roberta e colocou-se em estado de indagação, desconstrução e (re)construção de seus pensamentos e escritos. O que pode esse desvio?
Cena IV: Movimentos aberrantes atravessantes
Tão logo, percebemos que uma abordagem teoremática (Deleuze & Guattari, 2012b) não ajudaria a romper aquele círculo infinito de modo a permitir uma ruptura na aparente continuidade de movimento analítico – continuidade que parecia sempre remeter a um conceito anterior carente de alguma definição. Não queríamos definir, muito menos compor axiomas ou postulados que dessem conta de operar como início a uma explicação não pretendida. Percebemos que era preciso entrar em outra frequência, ou seja, compor uma busca de natureza distinta, a qual não visasse encontrar uma identidade ou mesmo uma origem pré-estabelecida (Foucault, 2015), mas, sim, uma maneira própria de abordar o questionado a partir de uma perspectiva problemática. Não queríamos explicar, mas sim, problematizar.
Assim, pensávamos compor um procedimento que nos afastasse de um movimento de reproduzir e nos promovesse, cada vez mais, um movimento de seguir. Para Deleuze e Guattari (2012b), o primeiro movimento “seria de reprodução, de iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências itinerantes, ambulantes [...] [de modo que] seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir” (Deleuze & Guattari, 2012b, p. 41, grifos do autor).
Interlúdio (n-1)-1 13
Precisávamos de um texto que funcionasse como lugar de passagem, como uma linha que operasse num limiar de um dentro e de um fora,
na imanência de sua fundição, no intuito de libertar-se de, pelo menos, três grandes estratos [...]: o organismo (o qual pede para sermos organizados, ao preço de sermos depravados, em caso contrário); a significância (a qual pede para sermos significante e significado, intérprete ou interpretado, ao preço de sermos desviantes, em caso contrário); e a subjetivação (que pede para sermos sujeitos, fixados como sujeitos de enunciação rebatidos sobre sujeitos de enunciado, ao preço de sermos vagabundos, em caso contrário) (Deleuze & Guattari, 2012a, p. 25).
[Um texto] que quer desarticular, para além de um organismo; que quer deixar passar, que quer, sim, ser depravad[o], desviante e vagabund[o]. Enfim, [um texto] sem Órgãos. (Gomes, 2020, p. 60).
Restou-nos, então, seguir sem tentar induzir ou operar movimentos dedutivos que tivessem como finalidade a compreensão ou a explicação do rigor. Não queríamos fazer uso de uma ciência régia14 e determinada que, por si só, bastasse para validar o que desejávamos mostrar, encontrando, nas diferenças de tempo e de lugar, ainda mais variáveis, das quais se extrairia uma lei de algo geral e constante – se assim fosse, estaríamos operando um movimento em que prevaleceria “a permanência de um ponto de vista fixo, exterior, ao reproduzido: ver fluir, estando na margem” (Deleuze & Guattari, 2012b, p. 42). Como dissemos, queríamos seguir, ou seja, queríamos outra coisa, nem melhor, nem pior, como salientam Deleuze e Guattari:
Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das “singularidades” de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma; quando escapamos à força gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direção determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair dela constantes [...] (2012b, p. 42, grifos nossos).
Assim, assumir uma postura problemática em detrimento da teoremática possibilita compor(-se) (n)um movimento errante, aberrante, nômade, que opera de forma turbilhonar e que assume e se joga no fluxo ao invés de adotar somente o vislumbre do escoamento – ou seja, que opera junto com a própria prática de operar. Um mergulhar junto às variáveis e, com elas, uma composição de singularidades engendradas à multiplicidade que nos envolve e nos embaraça na rede de vivências das quais fazemos parte, colocando-nos a indagar: “que práticas são [e podem ser] inventadas na academia para que ela torne a vida mais potente?” (Miarka et al., 2019, p. 135).
INTERVALO
Bry, T. de. Cena de Canibalismo (a partir de “Americae Tertia Pars”), 1592. Gravura colorida. Service Historique de La Marine, Vincennes, France.
Disponível em: <https://lume-re-demonstracao.ufrgs.br/imagens-para-pensar-o-outro/1-recursos.html> . Moldura modificada. Acesso em: 17 out. 2023.
Ato II
A tese Rigor sem Órgãos: em meio a relações discursivas, (r)ex(s)istências possíveis (Gomes, 2020), uma pesquisa que, como uma espécie de barco, devém composição que se lança num mar em busca de uma dobra15. Uma prega na linha do fora na qual seja possível inventar um dentro habitável e dar passagem a afetos disso que é conhecido por rigor. Um rigor que se relaciona à disciplina de Análise Real, a qual é contemplada numa grande maioria de cursos de licenciatura em Matemática. Tal rigor mostra-se discursivamente atrelado a muitas práticas que ocorrem na formação de professores de Matemática, as quais parecem influenciar sobremaneira a forma como licenciandos lidam com a própria graduação e com suas práticas profissionais. Nessa composição, adota-se uma estética de escrita-fluxo, em que narrativas ficcionais são construídas tendo como inspiração e suporte vivências experienciadas pelo próprio autor e por toda uma multidão de sujeitos e obras que o circundam e o atravessam, no intuito de construir uma Tese sem Órgãos, ou seja, uma composição desprovida de uma organização prévia, mas que, ainda assim, funcione.
Cena V: Movimentos aberrantes problematizantes
Juntos aos restos discursivos assumidos e operados em uma perspectiva problemática, foi preciso dobrar a pergunta “o que é?” em, pelo menos, meia dúzia de torções16: (i) Que pode esse rigor? (ii) Que linhas podem ser narradas acerca de sua problematização? (iii) Que corpos produz? (iv) Como e por quem (ou o que) um critério é julgado verdadeiro no intuito de atestar a veracidade de uma teoria (discurso)?
Antes de seguir, vale frisar que, para tratar o rigor por um viés problemático, foi preciso relacioná-lo a uma rede de práticas discursivas (Foucault, 2015), materializando um território de composição, utilização e disseminação de discursos envolvendo o rigor: enlaçamos tal rede territorial com a disciplina de Análise Real, oferecida na maioria dos cursos de licenciatura em Matemática. Escolhemos essa disciplina por conta de nossas pesquisas anteriores (Gomes, 2013; Gomes et al., 2015), e porque, em seu território, o discurso sobre o rigor é expressivo: é comum ouvirmos que a Análise é formal por tradição, que é rigorosa e que o rigor é a base da Análise, que é difícil, teórica, que é impossível passar nessa disciplina, que é necessário decorar para conseguir ser aprovado, que é uma disciplina importante para a formação do futuro professor de Matemática da Educação Básica etc. (Gomes, 2013). Assim, seguimos torcendo: (v) Como pensar esse rigor que embasa a disciplina de Análise, não por meio dos conteúdos desta disciplina, mas, sim, por meio dos saberes e/ou de poderes que a fazem se tornar aquilo que é? (vi) como enunciados relacionados àquilo que é denominado por rigor, “os quais permeiam e, de certa forma, sustentam a disciplina de Análise presente em cursos de licenciatura em Matemática, mantiveram-se e se mantêm, e nenhum outro tenha se mantido em seu lugar?” (Gomes, 2020, p. 46).
2.2 Interlúdio (n-2)-1
O que tínhamos, então? Discursos com vontade de verdade, tais como O conteúdo da disciplina de Análise é verdadeiro. Suas aplicações são verdadeiras. É verdade que alguém consegue entender tudo isso. Aquele que não consegue alcançar essas verdades não será um bom professor de Matemática.
Junto a esses discursos, surgia um incômodo, não pelos teores dessas verdades assumidos em si, mas pelo conformismo e a transparência discursiva em relação a esse tradicionalismo que os acompanhava, estabelecendo a Análise como uma das disciplinas mais rigorosas e importantes apresentadas ao futuro professor de Matemática. Reforçamos: não é a disciplina que incomoda, nem suas verdades. Mas a situação de conformismo (Gomes, 2020) por parte daqueles que se relacionam com a disciplina, de não questionar essas verdades instauradas e instaladas.
Cena VI – Movimentos aberrantes transduzintes
Nosso trabalho tem vontade de “fazer aparecer o que está próximo demais de nosso olhar para que possamos ver, o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar atravessa para ver outra coisa. Devolver densidade a essa atmosfera que, à nossa volta, garante que vejamos a coisa longe de nós [...]” (Foucault, 2016, p. 71-72).
Para isso, estabelecemos alianças estreitas com Michel Foucault e seu pensamento arqueológico, com Gilles Deleuze e Félix Guattari e o conceito de corpo sem órgãos, e com Suely Rolnik e o conceito de olhos vibráteis. Passamos a operar através de formas de se relacionar com o conceito foucaultiano de enunciado e suas possibilidades de uso e composição junto a práticas discursivas. Com esses pensadores, começamos a pensar que tudo o que é visto e falado em determinada época só é possível, pois há um regime de ver e um regime de dizer, que são condição para o que pode ser visto e o que pode ser dito. A partir do que é visto e dito, então, estabelece-se uma não relação – que, segundo Deleuze (2017), é uma integral de relações de poder, operadas em outra dimensão – a qual recebe o nome de saber.
Passa-se do saber ao poder na medida em que o enunciado forma o saber, é uma integral, opera integração de singularidades e é apenas no final que percebemos que essas singularidades como tais mantinham relações de poder umas com as outras. Em outras palavras, o saber é a integração das relações de forças no sentido mais geral, relações de forças entre coisas, entre pessoas, entre letras, entre luz, entre sombra e luz, entre tudo o que vocês quiserem. (Deleuze, 2017, p. 16-17).
Para Foucault (2015) enunciado é uma relação – uma função, que relaciona ao mesmo tempo em que é relacionada: função enunciativa. Pode ser tomada como uma função primitiva, da qual, de acordo com Deleuze (2017) derivariam três outras funções: sua primeira derivada é o sujeito do enunciado; sua segunda derivada, o objeto do enunciado; e sua terceira derivada, o conceito do enunciado. Com isso, tanto o sujeito do rigor, quanto seu objeto e seu conceito seriam funções derivadas do próprio enunciado rigor – e esse pensamento levou-nos a um vislumbre interessante: a constatação de que o rigor, um rigor acompanhado de seu artigo definido masculino, o rigor, acontece de forma discursiva17.
Já com o conceito de corpo sem órgãos, juntamente com o conceito de olhos vibráteis, passamos a pensar o desejo não como algo que falta ou como aquilo que estamos em busca, mas, sim, como algo que retira, numa lógica de retirada. Desse modo, desejo passou a operar como um lugar a ser ocupado por afetos que pedem passagem. Pensar o desejo dessa forma proporcionou a composição de uma luta contra o organismo, ou seja, contra uma organização previamente estabelecida.
Além disso, a composição de um corpo sem órgãos é uma prática sempre por vir, pois “ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite [...]”. (Deleuze & Guattari, 2012a, p. 12). Assim, acionando os olhos vibráteis – que, segundo Rolnik (2016, p. 15, grifos da autora) se relacionam com esse olhar que “não é do tipo que se debruça sobre as mutações vividas nesse processo, mas daquele que se constrói junto com elas e como parte delas. Um olhar vibrátil impregnado das forças que se agitam [...]” –, foi possível compor um texto sem órgãos, um plano de composição próprio do desejo, no qual o mesmo se define como processo de produção sem fazer referência a qualquer tipo de instância exterior. Estávamos, enfim, seguindo.
No entanto, como salientam Deleuze e Guattari (2012a), trabalhar com a construção de um corpo sem órgãos (que é pura composição) é algo que demanda cuidado. Se a composição for operada a golpes de martelo, o corpo não aguenta e morre, parando de produzir. Assumindo esse risco, estabelecemos outras alianças a fim de promover a existência e a resistência do corpo-texto sem órgãos em movimento aberrante de composição. Estabelecemos, então, um regime estético de escrita-fluxo, o qual adotou a produção de narrativas – o que permitiu que o corpo sem órgãos praticado no texto aguentasse os processos de retirada sem sucumbir. Nesse caminho, foi necessário alinhavar cada detalhe das fábulas de cada um ali presente com os fios da ficção que consistem, segundo Foucault (2009, p. 255, grifo nosso), “não em mostrar o invisível, mas em mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do visível”.
Cena VII: Movimentos aberrantes agenciantes
Por que tantas entradas metodológicas? Por que tantas alianças? Pelo menos, quatro respostas são possíveis: primeiramente, porque era necessário evitar a armadilha de tomar aquele rigor evidenciado inicialmente como algo dado a priori. Era necessário tratá-lo como algo que se dá engendrando-se aos próprios discursos operados na disciplina em comento, como prática. Sendo assim, uma organicidade prévia, um olhar com os olhos da face ou uma escrita não ficcional poderiam impedir que nos desviássemos dessa armadilha. Em segundo lugar, porque muitas vozes atravessavam e todas pediam passagem. A ficção era a única, em nossa concepção, que poderia dar conta daquilo tudo. Em terceiro lugar, porque não queríamos deixar somente um despacho que possui lombada e título. Queríamos que nosso trabalho continuasse operando e seguisse produzindo, mesmo depois que os dedos parassem de escrever. E, por último, porque era necessário compor existências ainda não antevistas. Criar existências e operar resistências – como salienta Levy (2011), existir é resistir.
Qual foi o grupo de sujeitos? Para onde se olhou na tentativa de compor junto a todas as torções, de modo a produzir existências e operar resistências? Foram várias as singularidades operadas, das quais, destacamos: Um narrador, que vê de fora os escritos do corpo do texto, aquele que tudo sabe e tudo entende; um autor, preocupado em compreender como o rigor evidenciado na disciplina de Análise se mantém e nenhum outro em seu lugar; um leitor, que aparentemente lê o que está sendo escrito na medida em que se escreve e que se inscreve; vários outros, que precisam de um transporte específico para que possam habitar o texto (no caso, uma embarcação). Acompanhando essas personagens e atravessando o texto, uma singularidade, que é toda multiplicidade, chamada Roberta – interrogadora desestabilizante do pesquisador na dissertação de mestrado (Gomes, 2013) transmutada em personagem conceitual na tese de doutorado (Gomes, 2020) –, fundamental para que o texto não caísse na armadilha de deslocar certo rigor para outro rigor, ou seja, mero deslocamento entre territórios. Roberta operou como problematizadora, não apenas do texto, mas dos próprios movimentos de pesquisa e do sujeito pesquisador que constantemente se produzia e se inventava como outro na medida em que escrevia a tese de doutoramento.
Interlúdio (n-3)-1
Já perguntaram o que acontece com textos inseridos em dissertações e teses, ou mesmo em artigos publicados? Não estou falando de textos formais ou mesmo de resultados das pesquisas. Falo dos discursos que ficam ali, esperando olhos e ouvidos que os ouçam e os vejam, percebendo o murmúrio translúcido: os discursos dos entrevistados, que têm suas palavras reduzidas, interpretadas, descritas, cartografadas, criptografadas em conclusões e considerações finais. O que acontece com essa tinta-sangue que fica cravada no papel (aquela transcrita em obras oficiais ou, mesmo, que desvanece em folhas amareladas de diários de campo, jogados num canto qualquer de um armário empoeirado) depois que as pesquisas acabam?
Cena VIII: Movimentos aberrantes viajantes
A partir da Nau dos Loucos, obra de Hieronymus Bosch, datada do início do século XVI, produz-se uma multidão que pede passagem junto ao nosso tema: além dos doze integrantes originais da embarcação, há alguém que se entrega ao fluxo das águas e se deixa levar pelos ventos; um matemático que leciona Matemática e que encontrou nessa ciência a possibilidade de construir sua própria vida, numa luta constante entre autoridade e competência; estudantes chegando ao ensino superior e derramando dúvidas e apreensões; provas e demonstrações sedimentadas numa lousa; um professor e sua primeira experiência no ensino superior; um clérigo e uma luta contra reformas estruturais de pensamento de busca pela verdade; um grego e o pensamento do matema; um mundo como ator principal em lutas, nas quais, geralmente, este mesmo mundo é tomado como coadjuvante; uma serpente marinha, limitadora de territórios em que são permitidos monstros de estimação; três topologistas e um curioso; e muitos outros. Algo os conectou e fez com que estivessem no interior da barca, a navegar rumo à terra prometida onde a luz da sensatez os aguardava. Só assim poderiam retornar ao conforto de seus lares, com a certeza de que seriam curados de todas as suas sandices. O que podem tantos corpos?
Interlúdio (n-4)-1
Bosh, H. Nau dos Loucos, c.1475-1500. Óleo sobre Madeira. Museu do Louvre, França.
Disponível em: <https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010062860> Acesso em: 17 out. 2023.
Interlúdio (n-5)-1
Por que tantos, se cada um já era vários? Por que tantas vozes, gritos, sussurros e murmúrios acerca do rigor e de seus desdobramentos, operando no mesmo instante em que atravessa corpos e produz marcas? O pensamento converge àquele evidenciado no poema de Manoel de Barros, acerca da Didática da Invenção (Barros, 2016): era necessário repetir e repetir e repetir até ficar diferente. Operar por diferenciais, ou seja, pela possibilidade de diferenciar as próprias diferenças que se mostravam a partir da repetição, permitindo que a multidão atravessasse. Simplesmente atravessasse.
Mas... Algo acontece. Algo. Acontece. Roberta cansa-se de ficar numa posição passiva no trabalho de mestrado, esperando que o autor construísse respostas às perguntas que ficaram por tanto tempo adormecidas. Roberta retorna, agora como personagem conceitual na nova pesquisa, e grita: Basta! Basta de um autor a procurar por respostas que solucionem suas próprias questões – esse autor, mesmo pensando que estava fora das linhas, esteve o tempo todo na própria tinta do quadro, dependurado numa árvore e transmutando-se na figura do louco. Basta de um narrador com olhos de coruja, pretensioso, que quer saber (e acha que sabe) o que todos os sujeitos estão pensando, querendo prever os próximos passos. Basta de linhas escritas com fontes formatadas por normas estabelecidas. Basta de um rigor precedido de seu artigo definido masculino.
Cena IX - Movimentos aberrantes robertizantes
Devir18-Roberta I:
— O que vocês, Autor e Leitor, entendem por pesquisadores?
— São aqueles que desenvolvem pesquisa, Roberta.
— E o que é uma pesquisa?
— É aquilo que os pesquisadores desenvolvem.
— Meus queridos, isso está parecendo algo do tipo: “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”. É possível que sejam mais claros? Podem falar mais sobre isso?
Devir-Roberta II:
— O que vocês, Autor e Leitor, entendem por rigor?
— É o que professores, matemáticos e professores dizem que é necessário para o que fazem, Roberta.
— Aff… De novo, pesquisadores que dizem o que é pesquisa, que define o que é um pesquisador dizendo sobre o rigor… Lá vamos nós de novo… É possível quebrar isso? Quem barbeia o barbeiro que barbeia somente aqueles que não podem barbear–se?
Intermezzo de um Rigor sem órgãos
A partir da transmutação operada por Roberta, pesos não são mais carregados e ídolos são quebrados a partir do rugido da fera. O que resta na tese, então? Um devir-mulher. Um devir-criança. Puro ato de criação. Um ser discursivo. Simplesmente um fala-se. Um ato que, simplesmente, fala. Impessoal no sentido de que a fala não é a expressão da vontade de falar de um sujeito, mas referente à produção de uma língua solicitada para a passagem de afetos que se faziam presentes. E fala sobre o que? Ou melhor, se assumimos a potência da composição adjuntiva (proposição com) e a renúncia de um objeto prévio (artigo o), fala com que? Fala com pensamentos invocados por questionamentos feitos naquele mesmo dia do encontro, em que houve a entrevista de mestrado, por um autor que já não está presente nos escritos que restam. Palavras que apenas passam. Atravessam. Sem interpretações ou conexões com um já dito ou um já escrito. Um rigor. Um rigor sem seu senhor regente. Apenas, rigor.
Roberta rouba a pena do Autor e continua a escrever a tese. Pelos acoplamentos e desacoplamentos, os restos discursivos tomam vida própria e passam a perguntar outras coisas. O rigor deixa de ser o rigor e passa acontecer rigor.
Rigor sem seu senhor regente. Rigor não pode ser, pois não é identitário – caso fosse, seria designado por um artigo definido masculino à sua esquerda. Esse rigor discursivo estabelece-se engendrado em relações discursivas, através de práticas operadas por aqueles que estão dando rigor a algo não rigoroso ou mesmo que entram em relação com qualquer tipo de resquício do rigor. Novamente: rigor não pode ser. Se fosse, seria um saber (Foucault, 2015) – e, sendo um saber, poderia ser capturado pelos laços identitários. No entanto, rigor escapa pelo vão dos dedos. Um rigor escorregadio, errante, aberrante, que desaparece no momento em que se pergunta: quem ou o que te rigoriza, rigor? (Gondim & Gomes, 2016). Um rigor mole.
Quando Roberta questiona o que é Análise Real, ela não quer uma identidade. Antes de perguntar, ela afirma: “Eu não sei nem o que é Análise Real, pra falar a verdade pra você” (Gomes, 2020, p. 53). Por que ela não sabe? Como ela não sabe? Que pode esse não saber? Rigor sem órgãos não está no nível do saber, se estivesse seria o rigor. Rigor discursivo entrelaça-se com outra dimensão: a do poder – e é neste nível, de relações de forças disformes, que Roberta (e toda uma multiplicidade de vozes que ecoam e atravessam) pode dizer: “A Análise serviu para quê? Somente para eu tirar meu diploma? Acredito que não; sei que tem alguma coisa lá [...]” (Gomes, 2013, p. 245, grifo nosso). Uma relação mitológica, em que se sabe que tem alguma coisa lá, mas que essa mesma coisa sempre é invisível aos olhos de quem tenta enxergar através da transparência discursiva. Rigor discursivo está na dimensão do poder, ou seja, como salienta Levy (2011, p. 82), “poder: uma máquina que é quase muda e cega”.
Murmúrios. Sussurros. Transparências. Sempre é possível operar fugas, empreender escapes, compor existências e operar resistências. A partir de todos os movimentos aberrantes, vislumbramos um limiar, uma espécie de dobra de uma linha muito fina – a linha do fora (Levy, 2011). Nessa dobra, foi possível construir um dentro habitável: a embarcação faz-se dobra do próprio mar. É nessa dobra que rigor sem órgãos acontece. A cada vez que o rigor aparece, as dobras ocorrem e dentros habitáveis são construídos. Tal como um caramujo a recolher fragmentos de tudo o que encontra em seu caminho a fim de fortalecer a concha espiralada, cada um de nós coleta restos discursivos e fortalece as paredes desse dentro habitável. Rigor sem órgãos. Rigor que acontece. Não estamos mais no âmbito do saber, muito menos num plano em que os tentáculos do poder podem nos agarrar. Por frações de segundo, passamos a habitar um dentro singularizado e aberrante. Um escape. Rigor sem órgãos.
Interlúdio (n-6)-1
[...] as pretensões com respeito às invenções políticas de pesquisa em Educação Matemática devem gira[r] em torno da promoção de uma espécie de prática sensível militante em que o sujeito professor-pesquisador se abra às realidades dos grupos humanos com os quais, de modo conjunto, trabalha, contribuindo com a possibilidade de mudanças, entendidas não de forma exclusiva em seu modo de viver, de afetar-se e agir no mundo ou se ocupando das próprias micropolíticas, mas também do sensível daqueles que também lutam coletiva e individualmente em seus processos para reafirmação da vida; essa vida que está em constante ameaça pelo apressamento da totalidade e da homogeneização. [...], mais do que politizar a Educação Matemática pensamos em modos de fazer uma Educação Matemática política e, neste caminho, se faz potente o uso de linguagens artísticas diversas que promovam a criação de condições para impedir os tantos hábitos e retornos que nos atravessam e tentam impor determinações de quem somos e de quem seremos, promovendo, assim, novos começos, novas invenções. (Miarka et al., 2019, p. 140).
Interlúdio (n – ∞)-1
Produção dos próprios autores (Gomes, 2020)
Declarações finais
Contribuição dos autores. A produção deste artigo foi realizada de maneira dialógica entre ambos os autores, tomando como material inicial as pesquisas de mestrado e doutorado do primeiro autor.
Financiamento. Apoio CAPES, processo 88887.718497/2022-00, e CNPq, Processo 309177/2022-7.
Implicações éticas. No processo de produção de dados foi utilizado um termo registrando a manifestação livre, informada e inequívoca dos entrevistados com o consentimento para o tratamento de suas entrevistas, mantendo-os anônimos por meio do uso de pseudônimos.
Conflito de interesses. Os autores manifestam que não há qualquer conflito de interesses.
Operantes
Abbate, C., & Parker, R. (2015). Uma história da ópera: Os últimos quatrocentos anos. Companhia das Letras.
Amaris-Ruidiaz, P., & Miarka, R. (2018). Escrita-corpo-experiência e literatura: que pode o escrever (na pesquisa) [em educação matemática]? Alexandria, 11(3), 13-31. http://dx.doi.org/10.5007/1982-5153.2018v11n3p13
Barros, M de. (2016). O livro das ignorãças. Alfaguarda.
Davis, P. J., & Hersh, R. (1986). A Experiência Matemática. Francisco Alves.
Deleuze, G. (2007). A Dobra: Leibniz e o Barroco. Papirus.
Deleuze, G. (2017). Michel Foucault: As formações históricas. edições e Editora Filosófica Poética.
Deleuze, G., & Guattari F. (2011). Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 1. Editora 34.
Deleuze, G., & Guattari F. (2012a). Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 3. Editora 34.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2012b). Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 5. Editora 34.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2003). Kafka: Para uma literatura menor. Assírio e Alvim.
Deleuze, G., & Guattari, F. (2010). O que é Filosofia? Editora, 34.
Foucault, M. (2009). Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Forense Universitária.
Foucault, M. (2015). A Arqueologia do Saber. Forense Universitária.
Foucault, M. (2016). O belo perigo. Autêntica Editora.
Gomes, D. O. (2013). A Disciplina de Análise segundo Licenciandos e Professores de Matemática da Educação Básica [Master dissertation, Universidade Estadual Paulista (UNESP)]. Acervo Digital da UNESP. http://hdl.handle.net/11449/91056
Gomes, D. O. (2020). Rigor sem Órgãos: em meio a relações discursivas, (r)ex(s)istências possíveis [Doctoral dissertation, Universidade Estadual Paulista (UNESP)]. Acervo Digital da UNESP. http://hdl.handle.net/11449/192603
Gomes, D. O., Otero-Garcia, S. C., Silva, L. D. da, & Baroni, R. L. S. (2015). Quatro ou mais pontos de vista sobre o ensino de Análise Matemática. BOLEMA, 29 (53), 1242-1267. https://doi.org/10.1590/1980-4415v29n53a22
Gondim, D. M. &, Gomes, D. O. (2016). Entre definições, teoremas e demonstrações: discursos de rigor ou rigor(es) discursivos? In SBEM (Ed.), Anais do XII Encontro Nacional de Educação Matemática (pp. 1-12). Sociedade Brasileira de Educação Matemática. https://www.sbembrasil.org.br/enem2016/anais/comunicacoes-cientificas-7.html
Gomes, D. O., Amaris-Ruidiaz, P., & Miarka, R. (2024). Afetos-Experimentações de uma EduCaçãO MaTemáTica que Afirme Vidas e uma Troca de Cartas que Exercite uma Escrita por Vir. Hipatia, 9(1), 144-158. https://ojs.ifsp.edu.br/index.php/hipatia/article/view/2482
Levy, T. S. (2011). A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Civilização Brasileira.
Lucchesi, M. (2009). Ficções de um gabinete ocidental: Ensaios de história e literatura. Civilização Brasileira.
Miarka, R., Amaris-Ruidiaz, P. J., Orjuela-Bernal, J. I., & Gondim, D. M. (2019). O que pode a apropriação de elementos artísticos na pesquisa em Educação Matemática? In R. S. R. Silva (Ed.), Artes em Educação Matemática. (pp. 123-142). Editora Fi (pp. 123-142).
Rolnik, S. (2016). Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Sulina – Editora da IFRGS.
Soler, R. D. V., & Kawahala, E. (2017). A potência de viver: Deleuze e a arte. Psicologia e Sociedade, 29, 1-8. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29157570
1 Segundo o pensamento de Deleuze e Guattari (2011), o rizoma opõe-se à ideia de árvore (raiz, tronco, copa, galhos, folhas…), trazendo ao jogo filosófico a ideia de linhas (não necessariamente de mesma natureza) que se conectam e que não possuem começo nem fim. São linhas de segmentaridade, de estratificação (como dimensões que delineiam certo território) mas, também, são linhas de fuga, de desterritorialização, as quais potencializam-se na multiplicidade do próprio rizoma. Segundo os pensadores, o “rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga” (Deleuze e Guattari, 2011, p. 43).
2 A ópera surgiu na Itália no final do século XVI buscando recriar o impacto do teatro grego antigo, por meio de um gênero teatral que mesclasse música, poesia e drama. De maneira geral, com uma estrutura de atos, opera com um fio condutor que guia o público através da história, conectando cenas do conjunto, em que as personagens conversam, argumentam e revelam seus pensamentos mais íntimos. Maiores detalhes podem ser encontrados na obra de Abbate e Parker (2015).
3 Tomando a obra de Kafka, Deleuze e Guattari (2003) produzem e operam com os conceitos de Maior e menor. Discutem que, em meio a um território linguístico Maior, podem-se criar práticas menores de escrita que fissuram o território Maior. Destacamos que Maior e menor não têm a ver com maior ou menor potência, mas com, respectivamente, macro e micropolíticas do desejo.
4 Uma ópera é formada por atos divididos em cenas, povoadas por personagens dramáticos que combinam canto com instrumentos musicais. Uma ária consiste em um momento no qual a personagem se dirige ao público e canta, em forma de canção, seus sentimentos. O coro pode ser entendido como uma personagem coletiva composta por um conjunto de atores que declamam através de fragmentos líricos a ação, com a função de exprimir opiniões, levantar questões sociais e criticar valores morais.
5 Tempo cronológico entendido como aquele que visa ao controle, subordinado ao relógio; e tempo kairológico como tempo da duração, do acontecimento.
6 Segundo Deleuze e Guattari (2010, p. 79), “o personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia” – como exemplo, podemos pensar o Sócrates de Platão, o Dionísio de Nietzsche ou, mesmo, o Idiota de Cusa. Segundo os pensadores, filosofia é um ato em terceira pessoa, de modo que “na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceitual. Assim, os personagens conceituais são os verdadeiros agentes de enunciação” (Idem, Ibidem, p. 79).
7 Na ópera, um interlúdio é uma composição instrumental com a função de separar partes musicais.
9 Palavra de origem grega que significa “aquele que devora a própria cauda”, representado pelo símbolo de uma serpente (ou dragão) que morde a própria cauda. In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ouroboros>. Aceso em: 17 out. 2023.
10 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/File:Alchemical-hermetic-illustration-ouroboros-taken-donum-dei-abraham-eleazar-alchemical-hermetic-illustration-258461698.jpg
11 Deleuze e Guattari (2011) propõem a fórmula (n -1) como forma lógica do rizoma, pensamento da multiplicidade por ela mesma, em que -1 denota a exclusão da identidade.
12 Gomes (2020).
13 Em nossos interlúdios seguiremos uma forma sequencial em que manteremos a forma (-1) como indicação de um movimento que assume a exclusão da identidade em meio à busca por condições de existência do que se visibiliza.
14 Segundo Deleuze (2012b) ciência régia é um discurso organizado de forma linear, que reconhece uma tendência de buscar a verdade ou um reconhecimento da verdade por adequação a um plano de referência prévio.
15 Para Deleuze (2007), sempre “existe uma dobra na dobra, como também uma caverna na caverna. A menor unidade da matéria, o menor elemento, é a dobra, não o ponto, que nunca é uma parte, e sim uma simples extremidade da linha” (Deleuze, 2007, p.13).
16 Utilizamos o conceito de torção junto ao conceito deleuzeano de enrabada filosófica, uma forma de violentar um discurso no intuito de fazer nascer deste estupro um filho monstruoso, defeituoso, “no sentido de produzir uma inter-relação, na medida em que seu método procura desdobrar-se em torno das possibilidades de se percorrer determinado assunto elevando-o até sua última potência com a finalidade de produzir agenciamentos que estabeleçam uma conexão infinita” (Soler & Kawahala, 2017, p. 3).
17 Essa constatação reforçou o que já vínhamos trabalhando em Gondim e Gomes (2016), em que operamos uma potente fissura no denominado paradoxo do barbeiro, de Russell – uma comparação entre o barbeiro (que só faz a barba daqueles que não fazem a própria barba) e o rigor: quem barbeia o rigor?
18 Segundo Deleuze e Guattari (2010), o devir expressa as transformações contínuas da natureza mutável da realidade. Para os pensadores, o devir não é um estado final ou um objetivo a ser alcançado, mas um processo perpétuo de mudança e diferenciação. Sendo a filosofia a “arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (Idem, Ibidem, p. 8), e tendo o devir como plano de composição, ao filósofo é preciso deslocar seu olhar de uma identidade fixa e estável do ser identitário para um movimento de operar através das conexões e dos fluxos que atravessam e transformam os seres, as estruturas e os pensamentos. Desta maneira, por meio da construção de outros modos de interagir com o mundo, é possível resistir às formas de estagnação e cristalização de produção de realidade.