Luka: um Jogo Digital que se Utiliza da Argumentação para a Promoção do Discurso Não-polarizado

Resumo

Transformar alunos em pensadores críticos, pedagogicamente engajados, figura como um dos pilares da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2019). O jogo digital Luka perscruta esse objetivo através de três mecânicas, inspiradas em estratégias antivieses: a Coleta de Tábulas do Tempo, o Quadro de Argumentos e os Debates. Objetivou-se identificar se o jogo Luka favoreceu um discurso não polarizado por parte dos participantes, a partir da realização de um debate não-estruturado no WhatsApp com oito estudantes e um docente de uma turma do oitavo ano do ensino fundamental de uma escola privada do Recife (Brasil). Realizou-se uma análise micro e macroestrutural do debate. Viu-se que os conteúdos do jogo foram utilizados e adaptados de maneira consistente pelos estudantes ao longo do debate. Evidenciou-se um baixo compromisso dos estudantes com seus pontos de vista, indicando uma baixa polarização discursiva. Dois estudantes apresentaram apontamentos diretos sobre a cogência dos argumentos de seus pares. O docente participante, ao longo do debate, desenvolveu ações discursivas (pragmáticas e argumentativas) que iniciaram e mantiveram o processo argumentativo.

Palavras-chave: argumentação, polarização do discurso, jogos digitais, jogos na educação.

Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil.

alisson.valenca@hotmail.com

Recibido: 12/Marzo/2024

Revisado: 08/Junio/2024

Aprobado: 29/Agosto/2024

Publicado: 6/Noviembre/2024

Para citar este artículo: Leitão, S., Silva , A. M., & Teofilo, N. P. (2024). Luka: um Jogo Digital que se Utiliza da Argumentação para a Promoção do Discurso Não-polarizado. Praxis & Saber, 15(41), 1–17.

https://doi.org/10.19053/uptc.22160159.v15.n41.2024.17050

Selma Leitão Santos 1

Alisson Michel Silva Valença 1

Nathália Patrícia Teófilo Bezerra de Melo 1

Luka: a Digital Game using Argumentation to Promote non-polarized Discourse in Brazilian Elementary School Students

Abstract

Transforming students into critical thinkers, pedagogically engaged, is one of the pillars of the National Common Curricular Base (Brazil, 2019). The game Luka pursues this goal through three mechanics, inspired by anti-bias strategies: Time Tablet Collection, Argument Board, and Debates. The aim was to identify if the Luka game favored non-polarized discourse among participants, through an unstructured debate on WhatsApp with eight students and one teacher from an eighth-grade class at a private school in Recife (Brazil). Micro and macrostructural analysis of the debate was conducted. It was observed that the game’s contents were consistently used and adapted by students throughout the debate. There was a low commitment from students to their viewpoints, indicating low discursive polarization. Two students made direct comments on the cogency of their peers’ arguments. The teacher, throughout the debate, developed discursive actions (pragmatic and argumentative) that initiated and maintained the argumentative process.

Keywords: argumentation, discourse polarization, digital games, games in education.

Luka: un Juego Digital que utiliza la Argumentación para Promover el Discurso no Polarizado en Alumnos Brasileños de Primaria

Resumen

Transformar a los alumnos en pensadores críticos, pedagógicamente comprometidos, es uno de los pilares de la Base Curricular Común Nacional (Brasil, 2019). El juego Luka persigue este objetivo a través de tres mecánicas, inspiradas en estrategias anti-prejuicios: Recolección de Tabletas de Tiempo, Tablero de Argumentos y Debates. El objetivo fue identificar si el juego Luka favorecía el discurso no polarizado entre los participantes, a través de un debate no estructurado en WhatsApp con ocho alumnos y un profesor de una clase de octavo grado de una escuela privada de Recife (Brasil). Se realizó un análisis micro y macroestructural del debate. Se observó que los contenidos del juego fueron utilizados y adaptados constantemente por los alumnos a lo largo del debate. Hubo un bajo compromiso de los alumnos con sus puntos de vista, lo que indica una baja polarización discursiva. Dos alumnos hicieron comentarios directos sobre la contundencia de los argumentos de sus compañeros. El profesor, a lo largo del debate, desarrolló acciones discursivas (pragmáticas y argumentativas) que iniciaron y mantuvieron el proceso argumentativo.

Palabras clave: argumentación, polarización del discurso, juegos digitales, juegos en la educación.

Introdução

A presente pesquisa se insere na discussão e na construção de conhecimentos acerca de dois problemas do campo educacional: a falta de engajamento de estudantes em atividades escolares e a polarização do discurso em situações argumentativas implementadas em contexto escolar. Lee e Hammer (2011) apresentam a possibilidade do uso de jogos e da gamificação como instrumentos para aumentar o engajamento de sujeitos nessas tarefas ou em outros tipos de obrigações com o contexto do trabalho. Esse desengajamento pode ser causado, dentre outros fatores, pela alta carga cognitiva demandada para a realização de algumas atividades escolares (Sweller, 1988).

Do ponto de vista educacional, a polarização do discurso e o alto compromisso com um ponto de vista, podem ser encarados como problemas, pois impedem ou dificultam que os estudantes consigam se engajar, efetivamente, em situações argumentativas que lhes possibilitem rever seus posicionamentos a partir do exame de pontos de vista alternativos. A consideração de ideias divergentes e a negociação de pontos de vistas são características importantes da argumentação, que é considerada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como uma das competências gerais a serem desenvolvidas na educação básica brasileira (Brasil, 2019).  

No esforço de lidar com o risco de polarização do discurso em contextos argumentativos, alguns estudos têm buscado propor estratégias de debiasing (antivieses) para que, em situações argumentativas, a polarização do discurso possa ser reduzida (Correia, 2014; Ramírez, 2018). Algumas dessas estratégias são: “exame crítico de posições divergentes; a não escolha da posição a ser defendida; o sigilo na repartição de papeis dialógicos a ser defendidos no dia do debate; a leitura de artigos que tragam diferentes pontos de vista sobre o tema a ser discutido” (Ramírez, 2018, p. 37).

A presente pesquisa se desdobrou em duas etapas, sendo a primeira um meio para se chegar à segunda e testar a hipótese de que um jogo poderia, de fato, ser benéfico para o desenvolvimento de habilidades argumentativas como vias para estratégias antivieses. Essas etapas foram: (1) o desenvolvimento do jogo Luka em que situações argumentativas foram implementadas nas mecânicas do game, através de estratégias antivieses, com o objetivo de favorecer a produção do discurso não polarizado por seus jogadores (2) a análise de uma atividade pedagógica com uma turma do oitavo ano do ensino fundamental, que utilizou o game Luka, como ponto de partida para analisar a incorporação de elementos do jogo no favorecimento do discurso não polarizado. 

Neste artigo, portanto, após uma exposição da base teórica que alicerçou os objetivos da presente pesquisa, serão abordados os aspectos do jogo que o tornam consonantes a esses, seguido de uma descrição dos achados a partir de exemplos.

A argumentação em ambientes de ensino-aprendizagem

Para Leitão (2007), a argumentação está indissociavelmente interligada à construção de conhecimentos, e nessa perspectiva, as propriedades semióticas que constituem a argumentação “lhe conferem um mecanismo inerente de aprendizagem que a institui como recurso privilegiado de mediação no processo de construção do conhecimento” (Leitão, 2007, p. 82). Assim, para Leitão (2000), no processo argumentativo, à medida em que o sujeito se depara com uma perspectiva contrária à sua, ele revisa sua justificativa antes de emitir uma resposta por conta do caráter responsivo do processo argumentativo.

Govier (2010) apresenta três elementos para análise da cogência dos argumentos: a aceitabilidade, a relevância e a suficiência. A aceitabilidade envolve as razões que tornam uma premissa verdadeira; a relevância, a busca por analisar o quanto as premissas são importantes para que as conclusões (ou ponto de vista) possam ser inferidas; a suficiência busca validar se as premissas construídas de forma conjunta conseguem, de fato, direcionar para a conclusão proposta.

Leitão (2000) propõe uma unidade de análise triádica do processo argumentativo composta por: argumento, contra-argumento e resposta ao contra-argumento que, para essa proposta, devem ser sempre analisados em conjunto para que se possa identificar a revisão de perspectivas no processo argumentativo. Leitão (2007) afirma também que cada um desses elementos, de diferentes maneiras, apresentam as funções da argumentação, sendo elas: psicológica, discursiva e epistêmica. Assim, o argumento refere-se ao momento da atividade argumentativa em que o indivíduo apresenta e justifica seu ponto de vista, já respondendo a algo posto socialmente. Esse movimento busca perceber e compreender a perspectiva estabelecida pelo opositor (função discursiva), marca o ponto de referência inicial do processo de revisão de perspectivas a ser promovido nas fases seguintes da atividade argumentativa (função psicológica) e apreende a forma com que o indivíduo organiza seus conhecimentos sobre o tópico em debate naquele momento (função epistêmica) (Leitão, 2007). 

A argumentação, neste trabalho, é entendida enquanto uma atividade discursiva que se caracteriza pela defesa de pontos de vista e ponderação de perspectivas oponentes (Leitão, 2000).  A necessidade comunicativa de defender um ponto de vista em particular e responder a objeções levantadas cria, no projeto discursivo, um processo de negociação no qual percepções sobre o mundo são engendradas, revisadas e transmutadas, daí ela possuir grande potencial epistêmico, isto é, a possibilidade de facultar o conhecimento (Leitão, 2000). 

Adicionalmente, o impacto da argumentação sobre a concatenação e transformação de conhecimento se deve à possibilidade que a argumentação cria de engajar o sujeito argumentador num processo de revisão de suas próprias perspectivas (Leitão, 2016). Um importante pressuposto psicológico para o entendimento da argumentação sob essa ótica, é o de que discursos e cognição são processos mutuamente constitutivos e interdependentes entre si. 

Dessa forma, se, por um lado, a argumentação deve ser compreendida enquanto um processo de revisão de perspectivas que possibilita construção/revisão do conteúdo do conhecimento, por outro, ela pode ser vista como um processo autorregulado e autorregulador do pensamento, que impele os sujeitos a refletirem sobre os alcances e limites de suas concepções e perspectivas (Leitão, 2000; 2012).

O compromisso com o ponto de vista é outro conceito significativamente vinculado à polarização do discurso. Esse compromisso pode ser definido como o apego afetivo que “obriga” o argumentador a apoiar argumentos que reforcem seu ponto de vista. Em uma situação de alto compromisso com o seu ponto de vista, independente das evidências ou justificativas apresentadas, o argumentador tenderia a apoiar ou fomentar os argumentos que apoiem suas perspectivas e a rejeitar os argumentos de perspectivas opositoras (Taber & Lodge, 2006; Lord, Lepper & Ross, 1979).  

O jogo Luka

O jogo Luka é um jogo digital 2D (duas dimensões), em Pixel Art, que foi desenvolvido especificamente para esta pesquisa através do software Construtc3. O game possui mecânicas de “correr e saltar”. Aprioristicamente, foram estabelecidos alguns critérios, os quais estiveram presentes no modus operandi do jogo: (a) a narrativa do jogo precisaria suscitar controvérsias genuínas (temáticas em relação às quais existem argumentos sólidos em ambos os “lados” da argumentação a elas inerente); (b) alguma mecânica do jogo precisaria espelhar estratégias individuais de debiasing (antiviés) com o objetivo de desenvolver a redução do viés de pensamento (polarização) dos jogadores com relação aos temas debatidos no jogo, conforme Ramírez (2018) e Correia (2014). Assim, essa mecânica precisaria orientar os jogadores a analisar, de maneira crítica, os pontos de vista distintos de uma mesma controvérsia sem a escolha imediata de um lado para defender. 

Adiciona-se a isso o fato de que seria necessário fornecer fontes de texto que pudessem apoiar ambos os lados. Para atender esse ponto, foram desenvolvidas as mecânicas de (a) Coleta de Tábulas do Tempo e (b) Quadro de Argumentos; (c) entre as mecânicas do jogo, seria importante haver a simulação de um debate estruturado, isto é, um debate que possui regras pré-definidas cujos debatedores têm momentos específicos para trazer suas contribuições; (d) no jogo, seria importante haver um elemento ou personagem que pudesse gerar Feedbacks imediatos aos jogadores e que atuasse como tutor/monitor para orientar o jogador e promover reflexões sobre os argumentos construídos e utilizados por eles ao longo do jogo.

A elaboração do jogo foi amparada pelo suporte técnico de um Game Designer/Developer e a consultoria de um professor de Geografia atuante no ensino fundamental. Além disso, também participaram do desenvolvimento do jogo quatro estudantes da graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Com a necessidade de identificar e/ou criar controvérsias específicas com relação aos tópicos curriculares de Geografia do ensino fundamental, o pesquisador e a equipe do projeto buscaram reconhecer, nesses temas, exemplos e/ou casos potencialmente controversos utilizados em livros didáticos e em outros meios (como em reportagens). Para cada uma dessas controvérsias, foi escrita uma Ficha de Controvérsias, que é um resumo em que foram estruturadas as principais informações daquele tema, constando: (1) o tópico curricular a que ele se refere; (2) a controvérsia relacionada a esse tópico; (3) uma contextualização da controvérsia; (4) a pergunta que essa controvérsia busca responder e os dois lados que representam as posições distintas dessa controvérsia. Com o jogo implementado, ele foi testado por 259 professores do Brasil e por um professor de Angola nas atividades curriculares com suas turmas com o intuito de avaliar se a linguagem do jogo estava adequada aos estudantes e se as mecânicas do jogo eram intuitivas o suficiente para uma boa jogabilidade. Esta etapa fez parte apenas dos testes do design do jogo e nenhuma informação foi salva, gravada ou capturada desse processo. O jogo foi disponibilizado enquanto Software Livre e gratuito, e alguns professores, voluntariamente, enviaram breves Feedbacks sobre os elementos do jogo (sem detalhar informações sobre os estudantes que usaram ou sobre as suas instituições de ensino). Por fim, o jogo foi utilizado com a turma que fez parte da presente pesquisa. 

Estrutura narrativa e funcional do jogo Luka

A narrativa do jogo Luka é apresentada ao jogador em seu primeiro contato com o game para que, a partir dela, ele possa seguir as fases propostas. O primeiro ato do jogo é um “vídeo instrutivo”, em que o jogador acompanha o personagem central sem controlá-lo. Nesse vídeo introdutório, Luka se depara com um senhor que o surpreende dizendo ser o próprio Luka 50 anos mais velho. O senhor (Luka do Futuro) explica que por conta da falta de empatia e da dificuldade de compreensão dos diferentes pontos de vista, os humanos passaram a se desentender cada vez mais. Esse desentendimento impediu o desenvolvimento da sociedade e causou o aumento das desigualdades. Luka do Futuro, que se tornou um grande cientista, explica ter descoberto que, ao longo da história, algumas pessoas foram peças-chave para os principais desentendimentos humanos. Então, ele criou uma máquina do tempo que possibilita encontrar essas pessoas e ajudá-las a tomar decisões que reduzam os problemas futuros.

Nesse momento, o Luka jovem questionará o Luka do Futuro perguntando como faria para ajudar essas pessoas do passado a compreender os diferentes pontos de vista. O senhor dirá que eles usarão a argumentação para esse propósito e, além de apresentar de maneira simples o conceito de argumentação, também dará um “comunicador intertemporal” que possibilitará a comunicação entre eles. Esse vínculo narrativo possibilita os Feedbacks de Luka do Futuro, que orienta o Luka jovem na construção e escolha dos argumentos. Especificamente no jogo Luka, o personagem Luka do Futuro teve seus Feedbacks baseados na proposição de De Chiaro e Leitão (2005) sobre as ações discursivas do professor na promoção da argumentação.

O conteúdo dos Feedbacks de Luka do Futuro busca refletir sobre características dos argumentos apresentados no jogo com base nos diferentes tipos de argumentos (Walton, 1996), de contra-argumentos (Kuhn et al., 2009) e de respostas (Leitão, 2007) e, também, sobre a solidez dos argumentos. Os Feedbacks imediatos são importantes mecânicas de aprendizagem que estão presentes em várias plataformas educativas gamificadas, como o Duolingo e o Kahoot e, também, em alguns jogos argumentativos como o Policy World e o Seaball. O Feedback imediato ocorre através da interação das mecânicas do jogo e pode fornecer informações e orientações importantes para o processo de aprendizagem específico envolvido no jogo (Song & Sparks, 2019). Os Feedbacks buscam refletir sobre o conteúdo do argumento e/ou sobre seu esquema argumentativo , ratificando algumas informações ou apontando possíveis fragilidades daquele esquema, questionando o potencial de generalização do exemplo utilizado para sustentar o ponto de vista.

Nesse prisma, o Feedback promove uma reflexão sobre possíveis fragilidades do argumento construído. Essas duas mecânicas do jogo Luka (coleta das Tábulas do Tempo e Quadro de Argumentos) têm o objetivo de minimizar os vieses de pensamento acerca do tema em questão à medida que elas são estruturadas a partir de estratégias de debiasing (estratégias antivieses) apontadas nos estudos de Ramírez (2018), Correira (2014) e Lord et al. (1979). Essas estratégias são: (1) a não escolha de uma posição: na primeira parte do jogo a estudante precisa construir argumentos para ambos lados da controvérsia, no Quadro de Argumentos, sem escolher uma posição específica; (2) leitura de fontes de textos que tragam diferentes pontos de vista: as Tábulas do Tempo apresentam informações que podem fundamentar os dois pontos de vistas envolvidos na controvérsia (facilitação e não-facilitação da imigração); (3) exame crítico de posições divergentes: as tábulas do tempo apresentam as informações sem indicar, diretamente, qual ponto de vista pode ser fundamento com aquela justificativa. Assim, o desafio do jogador/estudante é, justamente, examinar tais informações e, no Quadro de Argumentos, indicar o ponto de vista que pode ser justificado pelas informações coletadas. Além disso, o exame crítico passa, também, pelos Feedbacks do Quadro de Argumentos que fazem uma análise sobre cada uma das informações escolhidas pelo jogador.

Após concluir o Quadro de Argumentos, o jogador segue para a segunda parte da fase. Após explorar outras partes do cenário do jogo, Luka encontra alguns personagens que irão discordar do ponto de vista escolhido pelo Personagem Principal da trilha. Esses personagens são chamados de “Personagens Debatedores”. Nessas situações de debate, Luka irá atuar como “embaixador” da perspectiva escolhida pelo personagem principal e irá debater com essas personagens que surgirão ao longo do caminho. Por fim, saliente-se que as atividades argumentativas estruturadas através de um “script” orientam e potencializam a construção de conhecimentos via argumentação, além de apoiar o próprio desenvolvimento de habilidades argumentativas . Nas situações de debate o jogador precisará aderir um dos lados da controvérsia (definida pelo Personagem Principal). Após assumir um desses lados, o jogador, ao encontrar os personagens debatedores, precisa analisar os argumentos apresentados por eles para escolher os contra-argumentos, apoiados pelo tutor cognitivo (Luka do Futuro).

Quadro 1 - Etapas dos debates estruturados no jogo Luka

Etapa do debate

Descrição

Encontro de Luka com a personagem debatedora (argumento inicial do personagem debatedor)

Assim que Luka encontra a personagem debatedora, ela resume a controvérsia em questão e apresenta o seu argumento inicial (defendendo uma perspectiva contrária à de Luka).

Contra-argumento de Luka

O jogador seleciona um contra-argumento para defender a perspectiva de Luka

Feedback de Luka do Futuro

Luka do Futuro apresenta uma reflexão sobre o contra-argumento escolhido.

Resposta ao contra-argumento da personagem debatedora

De acordo com o contra-argumento utilizado por Luka, a personagem debatedora lança uma resposta.

Argumento de Luka

O jogador escolhe um argumento a ser lançado por Luka para defender a sua posição.

Continua

Feedback de Luka do Futuro

Luka do Futuro apresenta uma reflexão sobre o argumento escolhido.

Contra-argumento da Personagem Debatedora

De acordo com o argumento utilizado por Luka, a Personagem debatedora apresenta um contra-argumento.

Resposta de Luka

O jogador seleciona uma resposta ao contra-argumento lançado pela Personagem Debatedora.

Argumento da Personagem Debatedora

A Personagem Debatedora apresenta um novo argumento.

Contra-argumento de Luka

O jogador escolhe um contra-argumento para Luka apresentar de acordo com o novo argumento da Personagem Debatedora.

Resposta da Personagem Debatedora

A Personagem Debatedora apresenta uma resposta ao contra-argumento lançado por Luka.

Encerramento do debate

A Personagem Debatedora e Luka apresentam suas últimas considerações.

Fonte: Elaboração própria

Objetivos

A ideia foi analisar a incorporação de elementos do jogo Luka no favorecimento do discurso não polarizado por parte de estudantes do ensino fundamental participantes de um debate não-estruturado via WhatsApp.

Primeiro, buscou-se analisar se o conteúdo do jogo, como argumentos, contra-argumentos e informações, são replicados ou adaptados pelos estudantes ao longo do debate no WhatsApp. Também objetivou-se identificar o nível de compromisso dos alunos participantes com os seus pontos de vista (baixo compromisso/alto compromisso) - polarização do discurso, bem como analisar se as intervenções do Professor, relacionadas ao tema da controvérsia e ao jogo, conseguem iniciar ou manter a atividade argumentativa dos alunos. Por fim, buscou-se identificar se há elementos discursivos dos estudantes que buscam refletir sobre a cogência dos argumentos (solidez) lançados pelos seus pares ao longo do debate no WhatsApp. 

Método

Participaram dessa pesquisa oito alunos, estudantes do ensino fundamental. As formalizações éticas para a permissão e realização da pesquisa com esses estudantes se deram somente após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFPE e do cumprimento dos requisitos institucionais para fazê-lo. 

O professor que aceitou participar da pesquisa formalizou sua aceitação solicitando à sua instituição a declaração de aceite da pesquisa (enviada ao Comitê de Ética em Pesquisa) e assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi realizada uma entrevista semiestruturada com o mesmo para compreender questões relacionadas à sua formação, atuação profissional e contato com o uso da argumentação em atividades pedagógicas. O professor é graduado em Licenciatura em Geografia e possui mais de cinco anos de docência no ensino básico, atuante numa escola da rede privada de ensino da cidade do Recife (PE). Assim, participou da pesquisa realizando atividades com uma turma do 8º ano do ensino fundamental. É importante ressaltar que a construção dos dados da pesquisa ocorreu no final do segundo semestre letivo do ano de 2020 e, por conta da pandemia da Covid-19, as atividades da turma participante da pesquisa estavam ocorrendo de maneira remota. Após os encontros com o pesquisador, o professor planejou uma atividade argumentativa com sua turma. 

O docente optou por desenvolver uma estrutura de debate assíncrono e sem o script (debate não-estruturado), através de um aplicativo de mensagens. Após o professor ter apresentado a proposta das atividades da pesquisa e ter esclarecido os procedimentos éticos apresentados pelo pesquisador, os alunos foram convidados a serem voluntários da pesquisa participando dessas atividades. Com a aceitação dos alunos, a pesquisa foi iniciada. Depois das apresentações, pessoais e dos procedimentos da pesquisa, o Professor enviou aos estudantes participantes da pesquisa o link de acesso ao jogo Luka (www.Lukagame.com.br) e indicou que eles jogassem o game. 

Cerca de uma semana após a indicação do jogo, o professor criou um grupo no aplicativo de mensagens WhatsApp em que, além dele mesmo, estavam presentes todos os estudantes da turma participante da pesquisa. No grupo do WhatsApp, o Professor lançou uma pergunta disparadora pedindo que os alunos se posicionassem com relação à controvérsia da fase 1 do jogo (imigração em direção aos EUA): “Baseado no game Luka, qual posição vocês acham que é a mais correta, que o Chefe de imigração (e futuro presidente dos Estados Unidos) deveria aderir? Por que você acha isso?”. O grupo ficou ativo ao longo de uma semana (7 dias) em que os estudantes puderam apresentar seus argumentos e, também, puderam responder aos argumentos apresentados pelos outros alunos. 

Após a realização dos debates através do WhatsApp, já estava programada a prova da unidade, que encerrou o ano letivo da turma na disciplina de Geografia. O Professor incluiu, nessa prova, três perguntas abertas que demandavam habilidades argumentativas. Em duas perguntas os alunos eram solicitados a se posicionarem acerca de controvérsias que foram abordadas em atividades da disciplina. Uma pergunta foi sobre as questões socioeconômicas no continente africano e outra sobre a imigração (tema debatido com base no jogo Luka). Em uma outra pergunta, o professor solicitou que os estudantes trouxessem um argumento de cada um dos lados envolvidos na primeira fase do jogo Luka. Isso é, eles precisavam elencar um argumento favorável à facilitação da imigração em direção aos EUA e um argumento contrário. Ao final dessas atividades, o Professor enviou as transcrições dos grupos do WhatsApp e as respostas das provas para o pesquisador para fins de análise.

Na primeira etapa de análise, o debate é analisado de maneira cronológica desde a pergunta disparadora do professor até o fim da atividade, buscando-se identificar os elementos constitutivos da unidade de análise triádica de Leitão (2000) – argumento, contra-argumento, resposta – e com foco em elementos discursivos que ajudam a identificar o nível de compromisso dos alunos com seus pontos de vista. Na segunda parte, foi feita uma análise individual dos alunos participantes, buscando destacar o processo argumentativo construído por eles ao longo do debate, os seus respectivos níveis de compromisso com o seu ponto de vista. Além disso, nessa segunda parte, também foram feitas comparações dessas análises com o que cada estudante respondeu na prova escrita individual que foi realizada na semana seguinte à do debate. Por fim, na terceira parte, foi desenvolvida uma macroanálise que buscou mapear a emergência de alguns indicadores discursivos. Esses indicadores são: (1) incorporação de elementos do jogo Luka; (2) concordância e/ou incorporação de parte do argumento da oposição em um argumento ou contra-argumento e (3) ações discursivas do docente em prol da argumentação. Foram analisadas as respostas de todos os estudantes que participaram da atividade anterior (debate no WhatsApp, aqui nomeados de A1, A3, A5, A6, A7, A10 e A11)

Resultados

Análise cronológica e microanálise

Ao iniciar a atividade com a turma do 8º ano, após a confirmação de que os alunos já tinham jogado ou tido algum contato com o jogo Luka, o professor lançou alguns questionamentos sobre a controvérsia envolvida no jogo (imigração em direção aos EUA). Assim, ele pede o posicionamento dos estudantes com relação à facilitação, ou não, da imigração em direção aos EUA e, além do posicionamento em si, o professor pede que os estudantes justifiquem seus posicionamentos. Dessa forma, o docente cria uma situação que possibilita a emergência de argumentos, ao estimular que explicitassem o ponto de vista em que eles concordavam, atrelando-o a uma ou mais justificativas. Esse formato de ação, para De Chiaro e Leitão (2005), caracteriza uma ação discursiva do tipo pragmática, que tem o potencial de promover a argumentação em contexto educacional. Vale ressaltar que, a mecânica principal do jogo (o Quadro de Argumentos), orientava o jogador, justamente, a relacionar os pontos de vista da controvérsia em questão a informações que poderiam apoiá-los. Dessa forma, a orientação direta do professor de pedir que os estudantes apresentassem seus pontos de vista e suas respectivas justificativas converge com a mecânica argumentativa embutida no design do game Luka

Figura 1. O personagem Nakamura defende a não-flexibilização da imigração com base na justificativa de que o aumento de imigrantes (provocado pela flexibilização) pode tornar os EUA um país mais perigoso.

 








Fonte: Elaboração própria

Extrato do debate realizado no WhatsApp: 

https://lh7-us.googleusercontent.com/r2-3dTuPhC86TPa5ZlGeUnwIz00kvCgVsgaA_arGHulLBRgvvMfTazHq-DZVK9MK_gjMhEYFOxJx7k9F1NfEO7KX6Oa6HA_Zyrdworgtlo5f2NVWDpxWz2C-BTSlC_j-1BvYpwwYcsG4Xvy4dgrXA9A






O extrato acima evidencia que A1 inicia sua participação declarando apoiar a facilitação da imigração com base nas situações de refúgio, isto é, quando os imigrantes “fogem” de situações de perigo em seus países de origem (L137 - 140). Após construir seu argumento, A1 apresenta uma perspectiva diferente sobre a controvérsia em questão. Até então, os dois lados da controvérsia versavam sobre a facilitação ou não da entrada de novos imigrantes nos EUA. Contudo, A1 ressalta a facilitação da imigração pode ocorrer também através da legalização formal dos imigrantes que já vivem nos EUA em situação ilegal. Ou seja, nesse momento, um novo aluno também traz para o debate argumentos das duas perspectivas envolvidas, ainda que declare apoiar uma delas.

Apesar de apresentar e ratificar seu apoio ao ponto de vista em prol à facilitação da imigração, nas linhas 142-144, A1, apresenta um argumento favorável à perspectiva opositora (não-facilitação da imigração). A1 também se utiliza do argumento, presente no jogo, que se apoia na possibilidade de aumento do perigo e das situações de terrorismo nos EUA caso o processo de imigração não seja “aprimorado” (L143). Vê-se que o apoio à facilitação da imigração declarado por A1 é dependente de uma situação específica citada por ele nas linhas 142-144. Desse modo, a consideração de A1 para ambas perspectivas, apresentando argumentos favoráveis às duas, pode indicar um baixo compromisso dele com relação à perspectiva da facilitação da imigração. Após isso, outros estudantes passam a se posicionar:


https://lh7-us.googleusercontent.com/LVRTx_fdyZxkzPE6fR2QZLDPI6_FwOJUXxJJiHHreqZ8mo9h7AWWZMnyJhi9sbzLHwuJz7luH8wC_AQ6k-YVXeRwivPuvb7SWEca2tBwU6HvlKSz_9qsnRv-Dkv9KILFnJrjS-ZVgjWOOvTr6Hq-e8k

A cogência dos argumentos (ou “solidez dos argumentos”), baseada nos critérios de aceitabilidade, relevância e suficiência propostos por Govier (2010), fundamentaram alguns dos Feedbacks ao longo do jogo. Isso ocorre quando o jogador, no Quadro de Argumentos, escolhe a justificativa da responsabilidade histórica dos EUA para apoiar a flexibilização da imigração. Ao fazer essa escolha, o jogador recebe um Feedback que reflete se essa responsabilidade histórica pode ser generalizada para todos os países ou apenas para as pessoas vindas de países cujos recursos foram utilizados para o crescimento dos EUA.

Figura 3. Cogência dos argumentos como base para um dos Feedbacks no Quadro de Argumentos do jogo Luka.


 

Fonte: Elaboração própria

Ao longo do debate no WhatsApp, A1 se colocou como favorável à facilitação da imigração, porque, segundo o aluno, essa facilitação pode ser um meio para atender causas humanitárias de pessoas que saem dos seus países por “situações ruins” (L 137-140). Porém, logo em seguida, A1 retomou e reiterou um argumento da perspectiva oposta de que o aumento do fluxo imigratório causado por uma facilitação da imigração pode proporcionar problemas de segurança para as pessoas que já vivem nos EUA (L 142-144). Assim, A1 apontou que a facilitação precisaria ocorrer em conjunto com um “reforço de segurança”. No debate no WhatsApp, A3 apoiou a facilitação da imigração, mas concordou, em dado momento, que ela pode provocar o crescimento da disputa por empregos nos EUA que é a principal justificativa da perspectiva opositora. Dessa forma, A3 lançou um contra-argumento, incorporando a informação do aumento da disputa de empregos em caso de facilitação da imigração. A3, mesmo concordando com o possível aumento da procura por trabalho, retrucou que o crescimento econômico promovido pelos imigrantes, como foi apontado em alguns trechos do debate, pode proporcionar a criação de novos postos de emprego, reduzindo a disputa por empregos nos EUA e ainda pode promover outros benefícios para o país (como a redução da criminalidade). O contra-argumento crítico, incorporando elementos do argumento opositor, é uma característica que aponta para um baixo compromisso com sua perspectiva, o que favorece a dialogicidade e a menor polarização do discurso.

Nas linhas 145 - 147, A5 foi o primeiro aluno, no debate, a se contrapor à perspectiva da facilitação da imigração ou a refutar, diretamente, um argumento que apoia esse ponto de vista. A5 discordou da justificativa, que apoia a facilitação da imigração, com a prerrogativa que os imigrantes irão “sofrer menos” em países desenvolvidos, como os EUA. Para A5, como o próprio imigrante precisa “correr atrás das coisas” (L 147) e não há certeza se ele vai conseguir, por esforço próprio, prover melhores condições de vida para si. Assim, para A5, essa justificativa não é suficiente para sustentar a proposta de facilitação da imigração. Portanto, nesse ponto da argumentação, A5 fez uma reflexão sobre a suficiência desse argumento utilizando a perspectiva da cogência dos argumentos (Govier, 2010) - perspectiva teórica que embasou alguns Feedbacks de Luka do Futuro ao longo do game.

Após o contra-argumento de A7, que indicava que os países desenvolvidos podem ter mais oportunidades de emprego e isso justificaria a flexibilização da imigração, A5 respondeu trazendo que a disputa de empregos entre estadunidenses e imigrantes poderia trazer uma série de prejuízos ao país, defendendo, dessa forma, a não-facilitação da imigração. Após a ação argumentativa do Professor, em que ele apontou alguns possíveis “problemas” da flexibilização da imigração, A5 afirmou que “caso os imigrantes não conseguisse um emprego, eles ainda teriam um local para viver [no novo país]”. Aqui é importante pontuar que A7 iniciou sua participação no debate no WhatsApp apresentando dois argumentos que ele concordava e que representavam lados opostos da controvérsia em questão (L 120-125). Para A7, por um lado, a possibilidade de imigrantes que não tinham condições básicas de vida em seus países é plausível para justificar a facilitação da entrada desses imigrantes em países como os EUA. Por outro lado, A7 ressaltou que com a flexibilização da imigração pode provocar problemas de segurança nos EUA.  Assim, ainda antes de A7 declarar seu vínculo com alguma das perspectivas, já é possível notar que ele articulou e concordou com argumentos de ambos pontos de vista. Um pouco depois, A7 declarou que apoiava a perspectiva da facilitação da imigração, apresentando outro argumento para essa perspectiva, a de que a entrada de imigrantes em um local pode torná-lo menos racista (justificativa que fora a conclusão de um estudo que é citado no jogo Luka). Ainda assim, A7 indicou argumentos com que ele concordava e que podem ser justificativas para apoiar a não-flexibilização da imigração, o que evidencia o baixo compromisso de A7 com sua perspectiva.

Após A6 afirmar que concordava com a facilitação, mas que esse processo deveria ser feito “aos poucos” para evitar possíveis problemas, A7 discordou de A6, ainda que A6 estivesse defendendo o mesmo ponto de vista. Para A7, se essa imigração ocorresse de forma lenta e mais burocrática ela não seria, de fato, facilitada, se assemelhando aos moldes atuais da imigração. Portanto, nota-se que A7 conseguiu examinar de maneira crítica e refutar um argumento, ainda que esse argumento apoie a sua perspectiva (de facilitação da imigração). 

Já A6, iniciou sua participação do debate apoiando a perspectiva da facilitação da imigração se embasando em duas justificativas que aparecem no game Luka (a de que essa flexibilização deveria ocorrer por conta da responsabilidade histórica dos EUA com as nações que foram “exploradas” ao longo do tempo para que os Estados Unidos se tornassem a potência que é hoje e, também, o aluno destacou que a imigração traz “benefícios” ao país). Ao longo do jogo, alguns benefícios da imigração são apresentados (culturais, econômicos, etc.). Apesar de não especificar, A6 apontou que esses benefícios podem justificar uma possível facilitação da imigração. Contudo, logo em seguida, A6 argumentou que essa entrada de imigrantes deve ser feita “aos poucos” para não sobrecarregar o sistema de acolhimento dos EUA. Esse é, justamente, um dos argumentos que se contrapõem à facilitação: a imigração não deve ser facilitada, pois, o aumento de imigrantes pode sobrecarregar o sistema de acolhimento dos EUA. Esse argumento também está presente no game. Portanto, A6 também apresenta um baixo compromisso com sua perspectiva ao incorporar ao seu argumento elementos da perspectiva oposta.

A macroanálise

A macroanálise buscou estruturar, de forma sintética, a identificação das ações discursivas dos participantes em relação aos indicadores analíticos elencados nos objetivos específicos e detalhados no Quadro 02. Esses indicadores, apontados na proposta analítica, foram: (1) incorporação de elementos do Jogo Luka; (2) Concordância e/ ou incorporação de parte do argumento da oposição em um argumento ou contra-argumento; (3) ações discursivas do docente em prol da argumentação e (4) elementos discursivos de reflexão sobre a cogência dos argumentos. O indicador 1, de incorporação dos elementos do jogo Luka, está vinculado ao objetivo específico 1. O indicador 2 buscou identificar a concordância e/ ou incorporação de parte do argumento da oposição em um argumento ou contra-argumento, e está relacionado ao objetivo específico 2. Da mesma forma que o indicador 3, ações discursivas do docente em prol da argumentação, relaciona-se com o objetivo específico 3. 

Considerados os três indicadores acima, foram identificadas vinte e duas dessas ações discursivas ao longo do debate não estruturado no WhatsApp, sendo quatro do docente e dezoito dos estudantes participantes. 

Quadro 02. Emergência dos indicadores analíticos por participante

Participante

Indicador 1: Incorporação de elementos do Jogo Luka

Indicador 2: concordância e/ou incorporação de argumento da oposição (indicador de discurso não polarizado)

Indicador 3: ações discursivas do docente em prol da argumentação

A1

XX

XXX

A3

X

X

A5

XX

X

A6

XX

XXX

A7

XX

XX

A10

X

X

A11

X

X

Prof

XXX

XXX

Fonte: Elaboração própria

Sobre a atuação do docente, a partir do indicador 3 da macroanálise, é possível notar que 3 das 4 ações discursivas do docente ao longo do debate foram identificadas características que demarcam a intenção pela promoção da argumentação. Isto é, nessas ações, ele executou ações do plano pragmático para a promoção da argumentação ao lançar questionamentos que engajaram os estudantes a justificarem seus pontos de vista (e, assim, desenvolverem argumentos). 

Conclusão

Em 12 das 18 ações discursivas dos estudantes foram utilizadas informações e elementos do jogo Luka para o desenvolvimento de argumentos, contra-argumentos e respostas. Além disso, apesar da maior parte dos estudantes terem se posicionado a favor da facilitação da imigração, vários deles incorporam aos seus argumentos ou contra-argumentos, elementos que fazem oposição à flexibilização da imigração. Ou seja, demonstraram um baixo compromisso com seu ponto de vista. Assim, conforme a macroanálise, em 12 das 18 ações discursivas dos estudantes, houve a emergência de indicadores de baixa polarização do discurso. Portanto, ainda que a maior parte dos estudantes tenham se declarado a favor da facilitação da imigração, nota-se que, ao longo do debate no WhatsApp, os estudantes participantes replicaram ou adaptaram informações presentes no jogo Luka para construir argumentos para ambas perspectivas envolvidas no tema (facilitação e não-facilitação da imigração). 

A incorporação dos elementos opositores através de contra-argumentos críticos pôde ser notada em várias situações do debate. Assim como fora identificado na entrevista realizada com o professor participante, é possível reconhecer que os estudantes participantes do presente estudo não tinham contato com atividades pedagógicas intencionalmente argumentativas. Isso ratifica o fato de que, no contexto brasileiro, ainda são escassas propostas pedagógicas que visem o desenvolvimento de habilidades argumentativas (Correia, 2014).

Diante do exposto, o desenvolvimento do jogo Luka conseguiu cumprir com pressupostos que foram considerados em seu início de ter uma narrativa que pudesse suscitar controvérsias e, assim, disparar processos argumentativos e com mecânicas que representassem estratégias antiviéses para promover a uma menor polarização do discurso. Quase 400 professores de todas as regiões do Brasil demonstraram interesse em utilizar o jogo Luka em atividades pedagógicas com suas turmas. Como Luka foi desenvolvido enquanto Software Livre, essa tecnologia está disponível para qualquer pessoa de forma gratuita. Desse total de professores, 260 afirmaram ter usado Luka em, pelo menos, uma atividade pedagógica com suas turmas no ano letivo de 2020. Desse grupo de professores foi selecionado o professor participante da pesquisa. Assim, estima-se que o jogo pode ter alcançado mais de 4000 alunos brasileiros. Em um contexto que o ensino remoto fora imposto por uma pandemia na época de realização da pesquisa, Luka, enquanto artefato tecnológico produzido no âmbito dessa pesquisa, contribuiu com as experiências de ensino-aprendizagem de centenas de professores e milhares de alunos brasileiros ao longo do ano de 2020.  

Alguns aspectos que se destacaram ao longo dessa pesquisa, mas que não eram, de maneira direta, objetivos do estudo, podem ser melhor explorados em estudos futuros, como: (1) o uso do WhatsApp para atividades argumentativas de alunos do ensino básico, (2) as ações docentes nesse tipo de ambiente que podem favorecer à argumentação e (3) a avaliação da solidez dos argumentos dos alunos por seus pares neste contexto educacional. 

Considerações Finais

O presente trabalho foi desenvolvido de forma conjunta pelos três autores. Não houve conflitos de interesse antes, durante ou após o momento de sua confecção. O artigo não está inscrito num projeto maior, nem é proveniente de um financiamento específico, tendo sido derivado da tese de doutorado de um dos autores, Alisson Michel da Silva Valença, juntamente com sua orientadora, Selma Leitão Santos, no desenvolvimento da qual a autora Nathália Patrícia Teófilo Bezerra de Melo foi assistente de pesquisa, vinculada mediante uma atividade institucional prevista pela grade curricular do curso de psicologia na Universidade Federal de Pernambuco, intitulada Trabalho Supervisionado. Do ponto de vista ético, todas as etapas previstas pelo Comitê de Ética da Universidade de Pernambuco foram seguidas (o que constitui pré-requisito para a aprovação da tese, já defendida no momento em que esse trabalho está sendo publicado) e elencadas das primeiras seções desse artigo.

Referências

Brasil (2019). Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Disponível em : http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

Brasil. (2019). Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Correia, V. (2014). Biased argumentation and critical thinking. In Advances in argumentation in artificial intelligence (pp. 13-28).

De Chiaro, S., & Leitão, S. (2005). O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(3), 350–357.

Goldstein, M., Crowell, A., & Kuhn, D. (2009). What constitutes skilled argumentation and how does it develop? Informal Logic, 29(4), 379-395. https://doi.org/10.22329/IL.V29I4.2905

Govier, T. (2010). A practical study of argument (10. Ed.). Wadsworth: Cengalge Learning.

Kuhn, D., Goldstein, M.; Crowell, A. (2009). What Constitutes Skilled Argumentation and How Does it Develop?. Informal Logic, 29 (4), 379-395

Lee, J. J., & Hammer, J. (2011). Gamification in education: What, how, why bother? Academic Exchange Quarterly, 15(2), 146.

Leitão, S. (2000). The potential of argument in knowledge building. Human Development, 43(6), 332–360.

Leitão, S. (2007). Processos de construção do conhecimento: A argumentação em foco. Pro-Posições, 18(3), 75-92. www.fe.unicamp.br

Leitão, S. (2012). O trabalho com argumentação em ambientes de ensino-aprendizagem: Um desafio persistente. Uni-pluri/versidad, 12(3), 23-37. ID: 147230712

Lord, C. G., Ross, L., & Lepper, M. R. (1979). Biased assimilation and attitude polarization: The effects of prior theories on subsequently considered evidence. Journal of Personality and Social Psychology, 37(11), 2098–2109.

Ramírez, N. L. (2018). Efeito do debate crítico na redução da polarização do discurso argumentativo em sala de aula (Tese de doutorado, Universidade Federal de Pernambuco).

Sweller, J. (1988). Cognitive load during problem solving: Effects on learning. Cognitive Science, 12(2), 257–285.

Song, Y., & Sparks, J. R. (2019). Building a game-enhanced formative assessment to gather evidence about middle school students’ argumentation skills. Educational Technology Research and Development, 67(5), 1175–1196.

Taber, C. S., & Lodge, M. (2006). Motivated skepticism in the evaluation of political beliefs. American Journal of Political Science, 50(3), 755-769.

Walton, D. (1996). Argumentation schemes for presumptive reasoning (1st ed.). Routledge.