Filosofar sonhando, sonhar filosofando: um encontro de infâncias?
Edna Olimpia da Cunha
Magíster en Filosofía de la Educación
Escuela Municipal Joaquim Da Silva Peçanha – Brasil
dinha2rj@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3919-0169
Waldênia Leão de Carvalho
Doctora en Educación
Universidad de Pernambuco - Brasil
Waldenialeao@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4477-5353
Artículo de investigación
Recepción: 15 de enero de 2019
Aprobación: 03 de marzo de 2019
https://doi.org/10.19053/22160159.v10.n23.2019.9690
Resumo
Esta escrita é inspirada nos movimentos entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha, localizada na periferia do estado do Rio de Janeiro, ambas instituições públicas, através do projeto de pesquisa e extensão Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento. Inicialmente pensado para atender apenas as turmas de crianças, o projeto se ampliou até as turmas da Educação de Jovens e Adultos. Abordamos a possível relação da chegada e ampliação do projeto de filosofia com a potência afirmativa da infância, enquanto ruptura e novidade. Em outras palavras, buscamos investigar o que pode ser a infância, não apenas das crianças, mas em qualquer idade. Que aproximação é possível entre as infâncias, entre filosofar, pensar e sonhar? Em muitas ocasiões, os participantes do projeto somos surpreendidos com a curiosidade provocada quando compartilhamos e narramos nossos relatos. Tentaremos recuperar algumas dessas experiências marcantes para pensar a potência da filosofia de dirimir fronteiras, tornar-se infantil, convidar a sonhar, transformar vidas.
Palavras-chave: infância, pensamento, sonho, filosofia, escola
Filosofar soñando, soñar filosofando: ¿un encuentro de infancias?
Resumen
Este texto está inspirado en el trabajo conjunto entre dos instituciones públicas: la Universidad del Estado de Río de Janeiro y la Escuela Municipal Joaquim da Silva Peçanha, ubicada en la periferia del estado de Río de Janeiro, a través del proyecto de investigación y extensión ¿En Caxias, la filosofía encaja? La escuela pública le apuesta al pensamiento. Inicialmente pensado para llevarse a cabo solo en clases de niños, el proyecto se amplió hasta las clases de Educación de Jóvenes y Adultos. Abordamos la posible relación de la llegada y la ampliación del proyecto de filosofía con el poder afirmativo de la infancia, como ruptura y novedad. En otras palabras, buscamos investigar lo que la infancia puede ser, no solo la de los niños, sino a cualquier edad. ¿Cómo se puede abordar la relación entre las infancias, filosofar, pensar y soñar? En muchas ocasiones, los participantes del proyecto nos sorprendemos con la curiosidad provocada cuando compartimos y narramos nuestras historias. Trataremos de recuperar algunas experiencias destacadas para pensar la capacidad de la filosofía de disolver fronteras, volverse infantil, invitar a soñar y transformar vidas.
Palabras clave: infancia, pensamiento, soñar, filosofía, escuela
To philosophize by dreaming, to dream by philosophizing: an encounter of children
Abstract
This text is inspired by the joint work of two public institutions: State University of Rio de Janeiro and Municipal School Joaquim da Silva Peçanha, located on the outskirts of the State of Rio de Janeiro, through the continuing education and research project entitled Can philosophy be incorporated in Caxias? The public school bets on thinking. The project was initially intended to be developed only in courses for children but then it was expanded to courses for young people and adults. We address the possible relation between the establishment and the expansion of the philosophical project and children’s affirmation power as a breakthrough and novelty. In other words, we seek to study what childhood can be, not only for children but for people of all ages. How can the relationship between children, philosophizing, thinking, and dreaming be addressed? Often, we the project participants are surprised by the curiosity stimulated by sharing and telling our stories. We will aim to recover remarkable experiences in order to analyze the power of philosophy in overcoming boundaries, becoming childish, inviting to dream, and transforming lives.
Keywords: childhood, thinking, dreaming, philosophy, school
Philosopher en rêvant, rêver en philosophant: une rencontre de l’enfance
Résumé
Ce texte s’inspire du travail commun entre deux institutions publiques : l’Université de l’État de Rio de Janeiro et l’École Municipale Joaquim da Silva Peçanha située dans la banlieue de l’État de Rio de Janeiro, par le biais du projet de recherche et de formation continue La philosophie peut-elle être intégrée à Caxias ? L’école publique parie sur la pensée. Le projet a été initialement conçu pour être réalisé seulement dans les classes pour les enfants ; néanmoins, il s’est étendu jusqu’aux classes pour les jeunes et les adultes. Nous abordons le lien éventuel entre l’établissement et l’expansion du projet de philosophie et le pouvoir d’affirmation des enfants en tant que percée et nouveauté. En d’autres termes, nous visons à rechercher ce qui l’enfance peut être, non seulement pour les enfants mais pour les personnes de tout âge. Comment la relation entre l’enfance, philosopher, penser, et rêver peut-elle être abordée ? Souvent, nous, les participants au projet, nous sommes surpris par la curiosité qui s’éveille en partageant et en racontant nos histoires. Nous chercherons à récupérer quelques expériences remarquables dans le but d’analyser le pouvoir de la philosophie pour effacer les frontières, devenir enfantine, inviter à rêver, et transformer des vies.
Mots-clés : enfance, pensée, rêver, philosophie, école
Filosofar sonhando, sonhar filosofando: um encontro de infâncias?
“Sonhar não é apenas um ato político” (Freire, 2011, p. 126)
“Vai buscar essa saudade, sonho meu, com a sua liberdade” (Lara, 2014)
Esta escrita é inspirada nos movimentos entre uma universidade e uma escola pública de periferia, através do projeto de pesquisa e extensão Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento. Inicialmente pensado para atender apenas a turmas de crianças do primeiro segmento, o projeto se ampliou de tal modo que chegou às turmas do segundo segmento do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos [EJA]. O que tentaremos abordar neste estudo é a possível relação da chegada e ampliação do projeto de filosofia em nossa escola com a potência afirmativa da infância; em outras palavras, investigar o que pode ser a infância não apenas das crianças, mas em qualquer idade, desta vez com um destaque para estudantes da EJA e suas infâncias que necessitam ser pensadas. Em muitas ocasiões, os participantes do projeto somos surpreendidos com a curiosidade provocada quando compartilhamos nossas experiências (Carvalho, 2016, p. 57). São exatamente alguns desses momentos marcantes que tentaremos recuperar aqui para pensar a condição da filosofia em sua potência de dirimir fronteiras. O que significa para um estudante de escola pública hoje no contexto brasileiro, como no caso da EJA, voltar para escola depois de anos de afastamento, tendo que conciliar uma rotina de trabalho, muitas vezes exaustiva, com a tentativa de recuperar um ritmo de estudos? Em que medida as nossas rodas de conversa, através do projeto de filosofia, têm contribuído para pensar as condições de ser, hoje, um estudante ou trabalhador-estudante numa escola, num segmento constantemente atacado, ameaçado pelo poder público de extinção? Seria a infância ou uma filosofia infantil uma condição para resistir, para sonhar com outros mundos, outros modos de estar na escola, outros modos de vida? São muitas as investidas dos governos no sentido de reduzir turmas negando à criança, ao jovem, ao trabalhador, seu direito de frequentar uma escola. Ser um professor ou um estudante de escola pública, no contexto dificílimo pós-golpe de estado, tem sido um exercício de resistência, quem sabe uma forte insistência em apostar num sonho comum. A permanência do projeto de filosofia em nossa escola em parceria com uma universidade pública também tem sido um desafio. Nesse sentido, talvez possamos nos aventurar numa aproximação, entrelaçando infâncias, narrativas de vidas que resistem, que ousam sonhar coletivamente, tentando encontrar o que há em comum nestes movimentos, como também os pontos de diferenciação.
“Vir até aqui me fez lembrar dos meus sonhos”
O comentário acima é de Nadja, uma estudante da EJA, que sempre participou com muito entusiasmo das atividades do projeto de filosofia. Após uma de nossas experiências realizadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]1, coordenada pelo professor Kohan, no momento em que nos preparávamos para entrar no ônibus, de volta a Caxias, Nadja em meio a toda aquela euforia do grupo que participou da experiência, ficou em silêncio, olhando para o prédio da universidade. Foi quando lhe perguntei o que tinha achado da experiência de pensamento; se tinha gostado. Ela disse comovida: “vir até aqui me fez lembrar dos meus sonhos”. O deslocamento até a universidade provocou lembranças, reavivou sonhos. Por que Nadja falou de sonhos? Qual a relação entre uma filosofia infantil2 que afirmamos e nossos sonhos? Para onde vão os sonhos esquecidos? O que pode fazer lembrá-los, recuperá-los? A escola é um lugarde sonhos? Nadja, assim como seu filho, Hugo, também estudante da EJA, faleceu ano passado. Lá das estrelas, agora de um outro mundo onírico, nos convida a pensar, a filosofar como quem sonha. Vamos sonhando com ela, driblando a saudade que sentimos da sua física presença firme, doce amiga.
Das idas e vindas que fazem sonhar
A temática dos sonhos já foi bastante explorada, sobretudo nos estudos psicanalíticos, que nos deixaram grande legado tratando da interpretação de fenômenos psíquicos, suas imagens e representações. Nossa preocupação não é entrar por esta vereda, mas retomar uma afirmação de Freud que pode nos ajudar a pensar uma possível relação entre sonho, infância e filosofia em nossas experiências de pensamento na escola. Para Freud “todo desejo onírico tem origem infantil, todos os sonhos trabalham com material infantil, como emoções e mecanismos psíquicos infantis” (como citado em Bloch, 2005, p. 81). Embora estes estudos tenham se ocupado dos sonhos noturnos, vamos pensar na dimensão dos sonhos tal como se referiu Nadja, o sonho que se sonha acordado, que faz brilhar os olhos. O que o material infantil, apontado por Freud, também teria a ver com o sonho que se sonha desperto? Sonhos são habitados por infâncias? A filosofia na escola desperta sonhos, convida a sonhar, desperta infâncias? É possível sonhar fora da infância? Em que condições, num contexto pós-golpe de estado, com projetos como a escola sem-partido3, de cerceamentos às nossas liberdades, é possível sonhar acordado? Ou são os sonhos a própria condição para se despertar? Para onde apontam os sonhos? Qual o tempo dos sonhos? Bloch (2005) nos ajuda a pensar sonhando:
O sonhar, de fato, não quer de forma alguma apontar permanentemente para frente. O impulso que está por trás de modo algum se satisfaz só com o que se configura na imaginação. O próprio sonhar não busca apenas o sonho pelo sonho, de modo a se alegrar apenas com imagens. Antes, no sonho acordado, a pessoa desfruta da imaginação de como seria se algo viesse da mesma forma como foi sonhado, ou seja, se viesse a se tornar realidade. (p. 185)
O “apontar para frente” a que se refere Bloch poderia a princípio nos levar a pensar que a dimensão dos sonhos se encontraria tão somente num tempo futuro, lá na frente, distante; no entanto, a experiência vivida por Nadja pode estar sinalizando para um movimento que sugere muito mais aproximação que distanciamento, ou quem sabe o ir e vir de uma coisa e outra. Ao sentir que a experiência de pensamento na UERJ lhe fez lembrar de seus sonhos, Nadja parece trazer para perto de si, no tempo presente, algo do passado que simultaneamente também é futuro, como se estivesse num jogo de linhas temporais que misteriosamente se confundem e se entrelaçam em encruzilhada, um tempo que flutua na indiscernibilidade. Seria o tempo da infância um tempo que nos lança no impossível experienciado como se fosse possível? Se sim, filosofar como quem sonha seria permitir habitar pela infância de tal modo que não mais pudéssemos separar uma coisa da outra, de tal modo que filosofia, infância e sonho girassem no tempo, como na bela imagem sugerida por Heráclito4. Ou quem sabe seja como experimentar um futuro do pretérito presente nos termos em que Ferraro traz a partir de um uma conversa com um detento. O professor napolitano curiosamente diz ter aprendido com aquele homem o que era “futuro interior”5. Mesmo sob a condição de privação da liberdade, teria aquele homem encontrado infância? Wesley, um estudante da EJA, numa experiência de pensamento na qual pensamos as imagens do clipe da famosa canção Another Brick In the Wall, de Pink Floyd6, disse que “não se sentia como aqueles estudantes enfileirados sendo moídos por uma máquina porque tinha sonhos”. As imagens de opressão mostradas no clipe foram colocadas em questão pelos sonhos de Wesley. Sonhar para este jovem parece ter algo que ver com o que nos diferencia, que resiste ao enquadramento, à uniformização num contexto opressivo e disciplinador, como a imagem de escola apresentada no clipe. Sonhar seria uma força afirmativa que se interpõe como singularidade, atenção ao presente e, por mais desafiador que seja, abre janelas nas quais podemos vislumbrar não quimeras, mas mundos outros, vidas outras, sonhos, infância. Que tempo inaugura uma filosofia infantil, sonhadora?
Infâncias, outros desenhos e suas linhas de fuga
A escola, enquanto instituição, sempre foi tema de diversos estudos, tramitando pelos discursos críticos de acusação e defesa desde sua criação há séculos. As escolas permanecem com seus professores e estudantes, com suas contradições e enigmas. Quanto mais nos debruçamos sobre ela, mais nos sentimos desafiados a pensar o que faz de uma escola uma escola, na potência das relações que a tornam um lugar singular, único. A escola que se vive pode se apresentar muito diferente da imagem que aprendemos nos livros. E isso tem muito que ver com a chegada do projeto de filosofia em nossa escola. A vinda de um grupo de pesquisa para uma escola de periferia, sua tentativa de aproximação não seria um modo de sonhar? A hospitalidade recíproca entre duas instituições públicas têm oferecido muitas narrativas de sonhos, de um sonhar juntos no sentido de inventar uma escola outra, uma outra universidade, uma outra temporalidade que ainda não sabemos e buscamos saber.
Em nossos cursos de formação lemos muito sobre a escola, muitas vezes com um distanciamento espaço-temporal que não toca nossas vidas vividas no presente. O projeto de filosofia tem nos provocado justamente a pensar na escola a partir de um espaçotempo habitado no presente. O projeto tem suscitado narrativas faladas e escritas de vozes não canônicas, menores. Tem trazido à visibilidade o que não se via, tornado audível o que não se escutava. É como um levante, um movimento de insurreição que nos lança para além das fronteiras do já dito, pensando e escrito sobre escola, educação, filosofia e tantos conceitos e categorias concernentes a este universo, de modo a nos perguntar incessantemente: O que estamos sendo? Onde estamos? O que estamos fazendo de nossas vidas, enquanto professores, estudantes, seres humanos? Nesse sentido, tem colocado radicalmente em questão a lógica hegemônica dos discursos pedagógicos que priorizam os resultados ao lançar os movimentos do interior da escola numa perspectiva lá na frente, futurística, distante da atenção ao que se passa no momento em que a vida acontece. Uma escola viva se faz nas vidas que a habitam, nas vidas que acontecem, com muitas vozes, nesse tempo em que Nadja nos convidou a pensar, quando saiu de uma experiência de pensamento, esse tempo ainda indecifrável que transborda, excede os limites, as frágeis terminologias as quais nos apegamos e, muitas vezes, permanecemos imóveis nelas, com elas. Algo em Nadja se moveu, deslocou, desprendeu como se desloca o pensamento do pequeno Miguel ao dizer que seu “pensamento entra pela boca, vai pelo nariz, sobe até a cabeça, desce pela barriga, pelos pés, vai até a lua e volta”. O pensamento do menino vai e volta, assim como o de Nadja, entre o que foi ou era, o que poderia ter sido, o que pode ainda se tornar, o já não mais e ainda não. Como definir a dimensão que a experiência inaugurou nos dois estudantes, um adulto e uma criança? Um desenha com palavras seu pensamento, a outra lembra dos sonhos. Infância, infâncias?
A aproximação da universidade com uma escola pública de periferia, do modo como a temos experienciado, talvez seja um convite a sonhar despertos, a sonhar juntos, a pensar outros desenhos para escola, para a educação, para a filosofia, para a vida. Um convite a uma temporalidade que cria e recria outros mundos, até mesmo quando parece impossível sonhar, quando parece que todas as portas e janelas foram fechadas, até mesmo no cárcere, nas perseguições e injúrias, quando o ar pesa e a sensação de asfixia — caraterística dos regimes de opressão — tenta nos imobilizar, roubar nossas esperanças. Quem sabe só na dimensão de um sonhar infantil, ou na dimensão infantil dos sonhos seja possível resistir, buscar, inventar espaços abertos, encontrar linhas de fuga. Pensar como quem sonha seria transformar o olhar, o modo como miramos o mundo, a nós mesmos, como se enamorados e enamoradas estivéssemos da vida.
Esticar a palavra, sonhar como quem inventa
Os dicionários trazem muitas definições possíveis para a palavra sonho. Algumas delas nos interessam e delas vamos nos aproximar para fazer o exercício que fizemos com as crianças numa experiência de pensamento, vamos esticar7 a palavra sonho, vamos sonhar esticando palavra. Um dos sentidos da palavra sonho é invenção. Sonhar também é um modo de inventar. Mas o que é inventar? Não se trata aqui de um inventar no sentido de inovação, defendido pelas pedagogias da aprendizagem submetidas ao que alguns estudiosos chamam de capitalismo cognitivo, que faz do homem o homoeconomicus um empresário inovador de si mesmo, em luta permanente contra sua própria desvalorização, contra sua própria obsolescência (Larrosa, 2018, p. 235). O que defendemos é outro modo de inventar, naquela dimensão que Nadja nos convida a pensar, inventar como sonhar um sonho que não é o sonho egocêntrico, individualista, dentro do modelo capitalista. Nosso desafio é tentar compreender um pouco mais uma outra temporalidade que não foi capturada pelos discursos do mais do mesmo, que ainda não foi colonizada, que mostra toda sua potência no que pode ser sendo naquilo que é: uma língua, uma linguagem ainda por se tornar audível, ainda por se tornar visível, da infância, dos sonhos; uma linguagem que pulsa no desejo de aproximação verdadeira, de con-viver como nos inspiram os versos da canção Olhos nos olhos, de Chico Buarque (1976). “Olhos nos olhos, quero ver o que você diz/ Olhos nos olhos quero ver o que você faz”; uma linguagem que, ousando sair dos lugares cômodos nos quais o diálogo apenas se passa entre seus pares, reivindica a presença do outro como beleza, potência do múltiplo, do diverso, um modo de experimentar o sonho de uma hospitalidade incondicional (Derrida & Defoumantelle, 2003). Talvez somente na infância seja possível experimentar o impossível de uma hospitalidade sem condições.
Uma filosofia sonhadora, infantil, poderia ser aquela que se inspira nos poetas, no sonho de inventar línguas na própria língua, sonhar inventando filosofias na filosofia, infâncias na infância, universidades na universidade, escolas na escola. Em nossa escola, a filosofia muitas vezes se transforma em fisolofia na língua das crianças. Quando adentramos o portão, com frequência ouvimos a seguinte pergunta: “Tia, vai ter fisolofia hoje?”. A infância das crianças, as muitas infâncias que co-habitam numa escola desconstroem palavras, esticam, inventam outros sentidos. A fisolofia é um mover de dentro, do interior da própria palavra, uma ruptura com a disposição fixa de suas sílabas, criando algo diferente, inusitado a partir do que já é. A invenção das infâncias inaugura uma infância do inventar, do sonhar. Esticar a palavra é aproximar a palavra da vida e a vida da palavra; não mais separar uma coisa da outra. Essa é uma dimensão muito potente do projeto de filosofia em nossa escola, que aponta possivelmente para a invenção de uma língua menor dentro da própria língua, intensiva, infantil.
Sonhar é também um modo de ver, vislumbrar outras paisagens numa paisagem supostamente já tão conhecida. Por isso sonhar, de certo modo, é estrangeirizar-se, é viver a experiência do estrangeiro dentro do próprio lugar onde habitamos, porque nos diferenciamos de nós mesmos, não vemos mais como víamos, não sentimos mais como sentíamos, e as palavras que falávamos já vibram de outros modos, trazem uma nova melodia, não cabem mais na homologação canônica dos dicionários, dos manuais pedagógicos; porque inquieto, transbordante é o viver, é própria vida, as nossas infâncias, os nossos sonhos, nossos amores. A infância cria palavras e estica as palavras desgastadas, quebra-lhes a dureza, pinta com outras cores, as converte em poesia, na estética da vida, a infância é rebeldemente política, inaugura uma poética do precário, da potência do frágil. Que outra língua inventa a infância? Com quais palavras descrevê-la?
Perguntar como quem sonha
A infância é algo que nos pergunta; inventa outra língua perguntando. As frases ditas por Nadja, Wesley, Miguel e tantos outros e outras participantes do projeto são inquietações infantis materializadas na palavra e pela palavra, que dão conta do momento em que algo acontece e nos interpela. Como nasce uma pergunta? O que em cada um de nós desborda e se converte em pergunta? Não temos resposta, mas podemos dar nosso testemunho. Podemos compartilhar as experiências desde o interior dessa aproximação entre uma universidade e uma escola públicas. Podemos contar histórias menores, crônicas de um pequeno mundo onde ainda estamos aprendendo a fazer perguntas e não necessariamente ter de respondê-las como desde pequeninos somos ensinados nas escolas.
Perguntar nas experiências de pensamento pode ter muito que ver com sonhar. Perguntar talvez seja um bonito modo de sonhar. Uma pergunta pode nos levar para longe, uma viagem amorosa ao encontro do outro, de muitos outros, do outro de nós mesmos; uma viagem que ao mesmo tempo nos distancia do que fomos, nos aproximando do que temos sido para ser de outra maneira. Nas experiências de pensamento surgem muitas perguntas, algumas deles com a força de nos arrancar do lugar. E para onde pode nos levar? O que há em comum entre tantas e diversas perguntas das crianças, dos jovens, dos adultos? Talvez a intensidade das perguntas — ou mais precisamente a disposição ao perguntar — seja um dos signos mais importantes e potentes de uma filosofia infantil, sonhadora na escola, na universidade, de uma educação emancipadora. Perguntar é inventar outra língua dentro da língua hegemônica. É um desvio oniricamente infantil, um devir esperança. É um ruído, uma espera, um sacolejar em busca de uma escuta compartilhada.
“Sinto o canto da noite na boca do vento fazer a dança das flores do meu pensamento”, dizem os versos da música na voz da poeta Dona Ivone Lara (2014), que nos inspiram, que nos fazem pensar que uma pergunta inventa uma outra língua quando nos põe em atenção ao que se passa no mundo, à relação que temos mantido com ele. É uma abertura, um modo de viver que se abre “ao canto do vento”, que se aproxima de sua melodia, que sente, se move com o perfume da “dança das flores do pensamento”. Perguntar é um modo de dar vida, de trazer à vida ao que estava desvitalizado, de poetizar o viver, é um modo infantil de recordar, de sonhar, de se enamorar.
Um sonho, uma graça, um amor
Em português, quando algo ou alguém nos desperta encantamento, dizemos que é “um sonho”. O lugar dos sonhos é também o que nos inspira, aquilo em nós que nos apaixona, nos mantém em estado de enamoramento pela vida. Uma filosofia infantil é também uma filosofia apaixonada, por isso desperta sonhos em qualquer idade. Pensar nos sonhos é também pensar os nossos afetos, as nossas paixões. E toda paixão se move na esperança, no desejo inquieto, perturbador. Todo apaixonado é também um sonhador. É infantil, ridículo, como bem disse o poeta Fernando Pessoa (1993, p. 84), pois o sonhador, apaixonado, está em desconserto com o mundo, com ele mesmo. Seu desconcerto é ao mesmo potência e fraqueza, atividade e passividade, é um habitante, um errante viajando pelo misterioso mundo dos sonhos, é menino, é menina em todas as idades. O que pode um professor, uma professora apaixonada? O que pode um estudante sonhador, uma estudante em estado de paixão? Uma filosofia, uma educação, uma escola que despertam sonhos, uma filosofia que desperta, acende paixões. A jovem Gabriela parece uma estudante apaixonada. Não falta a uma aula. Seu caderno é impecavelmente escrito com letras desenhadas. Como uma criança aprendendo as primeiras letras, ela pinta seu único material de registro das aulas, cuida dele amorosamente. Depois de um dia de rotina dura de trabalho, quando chega a ficar por mais de seis horas de pé, sem direito sequer a algum intervalo de descanso, Gabriela vai para escola frequentar aulas na EJA. Com todo cansaço estampado do rosto, seus olhos brilham; parecem criar um mundo diferente daquele de exploração, de exaustão. Alheia aos discursos negativos ou elogiosos à escola, Gabriela “prega uma peça” num destino supostamente traçado para aqueles e aquelas a quem tudo — ou quase tudo — tem sido negado. A paixão dessa estudante por estudar, participando das experiências no projeto de filosofia, entre outras atividades, afirma uma espécie de tempo livre, que talvez se aproxime da uma scholè (Masschelein & Simons, 2013, p. 37). Criar, inventar tempo livre não seria também um modo de sonhar, um modo de experienciar infância? O que brilha nos olhos dessa estudante é paixão pela escola, é a alegria de estar junto numa sala de aula, numa experiência de pensamento, numa escola, num canto desse mundo, vasto mundo: Gabriela estudante, infantil, sonhadora.
Para continuar pensando, filosofando, sonhando
Desde criança convivemos com a escola como um lugar de muitos fazeres. Nela criamos laços com pessoas, com lugares, com saberes e até com um jeito especifico de conviver, de viver e escrever a nós mesmos e ao mundo. Nela e com ela sonhamos e vivemos pequenas e grandes situações: as festas escolares, nossa aprovação no boletim, as aulas de campo com visitas a museus, parques, feiras e exposições. Sonhamos também sendo gente grande seguindo sozinho para escola. Cada um desses pequenos fazeres vai compondo cada um de nós. Juntos ou separados cada sonho nos acompanha. Nadja, ao olhar para o prédio da universidade, evocou a dimensão dos sonhos. Naquele instante, foi capaz de expressar as imagens que ainda a acompanham. O que aconteceu na trajetória da vida de Nadja que a fez estar ainda distante do sonhado? O que da infância permanece na adultez? Pensar nessas questões talvez nos ajude a compreender as linhas entre o que temos sido e o que podemos nos tornar, do profundo abismo que ainda separa homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, com suas classes sociais, de um desejo comum, de um sonho comum. Aqui parece que chegamos a uma encruzilhada: avançar no encontro de si mesmo ou ser levado pelas teias de uma sociedade hierarquizada; a escola, a universidade. A escola tem sido lugar de emancipação, libertação, rupturas, sonhos? A escola tem sido lugar de infâncias? Há muitos sujeitos na escola. Essa diversidade e diferença impõem movimento; alguns de encontro, outros de desencontros. Mas o que importa nessa relação é pensar como cada um realiza, na escola, seus encontros consigo mesmo no caminho daquilo que chamamos educação. Paulo Freire já destacava em seus inscritos que havia modelos pedagógicos que oprimem e que libertam, que humanizam e desumanizam Freire (1970; 2011). Reconhecer que os sujeitos em formação criam alternativas é, de certo modo, validar cada um como sujeito pedagógico em sua potência transformadora.
A escola segue diferente porque é feita por sujeitos diferentes. Assim, ela pergunta mais que responde. Não porque não haja possíveis respostas, mas porque como uma filosofia sonhadora e infantil, ela precisa estar sempre perguntando, em qualquer tempo, em qualquer idade.
Referências
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1 Na escola Joaquim da Silva Peçanha, a coordenação do projeto Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento está sob os cuidados da professora doutora Vanise de Cássia de Araújo Gomes Dutra, que participa do projeto desde seu momento inicial, ano de 2007. É autora do livro Dialogar, conversar e experienciar o filosofar na escola pública: encontros e desencontros (2017).
2 Afirmaremos uma outra imagem de infância. Não associaremos infância a crianças. Não atenderemos a idades. Não pressuporemos uma idade linear. Não nos preocupamos com o que a infância pode ser, mas com o que ela é. Asseveraremos a infância como símbolo de afirmação, figura do novo, espaço de liberdade. A infância será uma metáfora de criação do pensamento, uma imagem de ruptura, de descontinuidade, de quebra do normal e do estabelecido. A infância que educa a filosofia será, então, a instauração da possibilidade de um novo pensar filosófico nascido na própria filosofia. (Kohan, 2005, p. 116; 2015, p. 4; 2017, p. 598)
3 No contexto político brasileiro atual, crescem as ocorrências de repressão que buscam criminalizar o trabalho pedagógico. Trata-se do Projeto de Lei nº 867/2015, que cria o Programa Escola Sem Partido que “sob a roupagem de se defender que a escola não ‘tome partido’ de alguma ideologia [...] delegue o poder àqueles que historicamente oprimem os que não se enquadram nos padrões hegemônicos de uma classe dominante autoritária e escravocrata” (Ramos, 2016, p. 85).
4 “O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da criança” (Heráclito, 2012, Fragmento DK22B52).
5 Lembro, no presídio, aquele homem que me dizia sobre os estudos que estava fazendo e sobre aquilo que faria, dos conhecimentos que teria adquirido, das perspectivas que se abriam para ele. Perguntei a quem estava por perto se era o pouco o tempo que o separava de ir para casa. Respondeu-me que ainda ficaria no presídio por muitos anos. Entendi naquele momento que aquele homem não falava de futuro como eu pensava que se devia entender o tempo que ainda não é presente. Pensava no “futuro do pretérito” da gramática que não entendia, um futuro passado em um tempo que ainda não se deu. Naquele momento entendi o ‘futuro interior’. (Ferraro, 2018, p. 54)
6 A experiência de pensamento mencionada é parte de vários encontros nos quais pensamos as condições da escola hoje, a partir da leitura do livro Em defesa da escola: uma questão pública (Maschelein & Simons, 2014).
7 Em agosto de 2017, a convite da Universidade Federal do Espírito Santo, o NEFI/UERJ participou do Seminário Internacional Educação Filosofias Infâncias: Filosofar com infâncias: resistir na escola. Numa das experiências de pensamento numa escola pública, uma criança provocou os participantes dizendo que as professoras coordenadoras Edna Olímpia e Carolina Fonseca falavam “esticando palavras”. A partir da intervenção infantil, fizemos vários exercícios pensando o que seria esticar uma palavra.