ISSN 2216-0159 e-ISSN 2462-8603

2020, 11(26), e-9757

https://doi.org/10.19053/22160159.v11.n26.2020.9757

A Sociedade Brasileira de Educação Matemática e o processo de construção da Base Nacional Comum Curricular

Marcelo de Oliveira Dias1

Universidade Federal Fluminense

Brasil

marcelo_dias@id.uff.br

Resumo

A Base Nacional Comum Curricular brasileira [BNCC], criada entre 2015 e 2018, é constituída por documentos curriculares prescritos, cujo processo de construção apresentou fortes componentes políticos e vem sendo alvo de conflitos e tensões no contexto educacional do país. A abordagem do ciclo de políticas, formulada por Ball, vem sendo frequentemente empregada por pesquisadores de políticas curriculares, entre outros campos. Esta abordagem é um viés metodológico relevante para a compreensão dos processos de reforma curricular a partir dos contextos de produção e influência da BNCC, bem como dos paradigmas que nortearam essa construção e os constrangimentos ideológicos que resultam do envolvimento de organismos multilaterais. Para atingir esse objetivo, o presente artigo apresenta uma análise de posicionamentos provenientes de uma carta pública e de uma entrevista com um representante da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, que abordou questões momentos específicos durante o processo construtivo do documento prescrito para a aprendizagem matemática no Brasil. As análises evidenciaram a necessidade de reflexões sobre os modelos verticalizados, vozes silenciadas e conteúdos matemáticos como instrumentos de gestão e performatividade impressos no movimento de reforma.

Palabras Clave: políticas curriculares, Base Nacional Comum Curricular, matemática, Sociedade Brasileira de Educação Matemática

La Sociedad Brasileña de Educación Matemática y la Base Nacional Común Curricular

Resumen

La Base Nacional Común Curricular brasileña [BNCC], creada entre 2015 y 2018, está constituida por documentos curriculares determinados, cuyo proceso de construcción presentó fuertes componentes políticos y fue centro de conflictos y tensiones en el contexto educativo del país. El enfoque de ciclo de políticas, formulado por Ball, ha sido usado con frecuencia por investigadores de políticas curriculares, entre otros campos. Este enfoque es una tendencia metodológica relevante para la comprensión de procesos de reforma curricular a partir de los contextos de producción e influencia de la BNCC, así como de los paradigmas que dirigieron esa construcción y de las tensiones ideológicas producto de la participación de organismos multilaterales. Para lograr tal objetivo, este artículo presenta un análisis de las posiciones provenientes de documentos públicos y de entrevistas con un representante de la Sociedad Brasileña de Educación Matemática en momentos específicos durante el proceso de construcción del documento establecido para el aprendizaje de matemáticas en Brasil. Los análisis evidenciaron una necesidad de reflexionar sobre los modelos verticales, las voces silenciadas y los contenidos matemáticos como instrumentos de gestión y performatividad impresos en la reforma.

Palabras clave: políticas curriculares, Base Nacional Común Curricular, matemática, Sociedad Brasileña de Educación Matemática

The Brazilian Society of Mathematical Education and the National Common Curriculum Base

Abstract

The Brazilian National Common Curricular Base [NCCB], created between 2015 and 2018, consists of stated curricular documents. Its building process involved strong political aspects and was the center of conflicts and tensions in the educational context of the country. The policy cycle approach, proposed by Ball, has been frequently used by researchers of curriculum policy, among other fields. This approach is a relevant methodological trend for the understanding of curricular reform processes based on the NCCB’s production and influence contexts, on the paradigms that directed the building process, as well as on the ideological tensions resulting from the participation of multilateral organizations. In order to achieve this objective, this article presents an analysis of the positions coming from public documents and interviews with a representative of the Brazilian Society of Mathematical Education, conducted at specific moments during the process of building the document established for learning mathematics in Brazil. The analyses showed a need to reflect on vertical models, silenced voices and mathematical contents as management and performativity instruments printed in the reform.

Keywords: curricular policies, National Common Curriculum Base, mathematics, Brazilian Society of Mathematical Education

Introdução

Este artigo objetiva a problematização da recente reforma curricular brasileira, especialmente acerca das seguintes questões: Quais foram os contextos de produção e influências dos documentos prescritos recentemente para o ensino de matemática na educação básica brasileira? Quais disputas das políticas educacionais estão em jogo nos projetos nacionais? Quais referências e ideologias são colocadas em jogo nos processos de produção dos programas de Matemática para a Educação Básica brasileira? Quais os posicionamentos públicos da sociedade de educadores matemáticos sobre a reforma das orientações curriculares vigentes no país para a matemática?

Tais questões foram problematizadas partindo-se do entendimento de que esses documentos enfocam perspectivas que tentam suprir as demandas de um mundo globalizado, onde professores e entidades são deixados de lado nos processos de construção. Organismos políticos multilaterais impulsionam esses processos, visando especialmente os rankings em avaliações.

O entendimento acerca do currículo prescrito é semelhante ao de Macedo (2000), sendo definido como o “documento que legitima a própria existência escolar, mesmo sabendo-se que o currículo real transcende e muito o documento oficial” (p. 171). Justifica-se a escolha dos currículos pela complexidade da diversidade de fatores envolvidos em sua elaboração e desenvolvimento, nos quais os programas pretendem dar conta em seus percursos educacionais.

Neste artigo, a definição supracitada mostra-se apropriada para a análise dos contextos e desafios apresentados pelo cenário brasileiro ante a reforma nas prescrições de matemática. Assim, são inicialmente priorizadas as finalidades relacionadas ao tipo de aluno a ser formado.

Uma das competências gerais da Base Nacional Comum Curricular brasileira [BNCC] refere-se à utilização, durante todo o ensino fundamental, de conhecimentos matemáticos:

Utilizar diferentes linguagens — verbal (oral ou visual-motora, como Libras e escrita), corporal, visual, sonora e digital —, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. (Brasil, 2017, p. 9).

O uso de diferentes linguagens e conhecimentos é enfatizado nas competências gerais na reforma do ensino fundamental com ênfase na expressão em vivências em contextos variados. A Sociedade Brasileira de Educação Matemática [SBEM] — sociedade civil, sem fins lucrativos, cuja principal finalidade é promover e ampliar as discussões acerca da educação matemática brasileira — alertou que “parece estranho que um documento que valoriza a interdisciplinaridade não se refira de forma mais intensa a uma educação matemática crítica, considerando principalmente a formação para a cidadania a ser tratada pela educação básica” (SBEM, 2016, p. 7). Para a matemática nos anos finais, a BNCC enfatiza que “a expectativa é a de que os alunos resolvam problemas com números naturais, inteiros e racionais, envolvendo as operações fundamentais, com seus diferentes significados, e utilizando estratégias diversas, com compreensão dos processos neles envolvidos” (Brasil, 2017, p. 267).

A linha central da BNCC está na resolução de problemas. Nesse sentido, a SBEM sinaliza que “tão importante quanto elaborar e resolver problemas é analisar e validar suas respostas, sendo assim destaca-se a importância de envolver o aluno em resoluções de problemas que apresentem uma, muitas (finitas), infinitas ou nenhuma resposta” (SBEM, 2016, p. 21).

No presente artigo, através da abordagem de parte do ciclo de políticas de Ball (1994) e de uma carta públicas da SBEM, foi realizada uma análise dos contextos de influência, produção e posicionamentos a respeito da emergente BNCC de matemática do Brasil.

Abordagem metodológica

Com respeito à delimitação do método da pesquisa, visando uma análise dos discursos que circularam durante os processos de reforma dos documentos, foram constituídas revisões da literatura, uma carta pública emitidas pela SBEM e uma entrevista com seu representante. Conforme Sharma (2013), esta análise se configura como

uma forma de coletar informações qualitativas de uma fonte primária ou original de materiais escritos, impressos e gravados para responder às perguntas de pesquisa em estudos de caso interpretativos. Os documentos fornecem evidências de atividades autênticas ou reais realizadas em organizações sociais e de pensamento humano. (p. 3)

O ciclo de políticas de Ball (1994) fornece instrumentos para a análise da trajetória de políticas — formulação, produção textual, implementação e resultados — na tentativa de compreender a política curricular impregnada. Mainardes (2006) caracteriza este ciclo como:

um ciclo contínuo constituído por três contextos principais: o contexto de influência, o contexto de produção do texto e o contexto de prática. Esses contextos estão inter-relacionados, não têm uma direção temporal ou sequencial e não são etapas lineares. Cada um desses contextos apresenta arenas, lugares e grupos de interesse e cada um deles envolve disputas e embates. (p. 5)

A investigação foi concebida por meio de análise dos contextos estratégicos e de influências de Ball (1994), assim como da carta pública divulgada pela SBEM e da entrevista com um representante indicado pela entidade. Para a análise da entrevista registrada em aúdio foram adotadas as seguintes subcategorias que emergiram das intencionalidades expressas na reforma: 1) grau de intervenção no processo de desenvolvimento curricular, 2) linhas de força e 3) pontos críticos.

Contextos das estratégias políticas na reforma curricular brasileira

O discurso pedagógico, interpretado como conjunto de prescrições, regras e mecanismos de poder, também deve ser considerado como objeto de análise, como sustenta Ball (2013) ao afirmar que “novas vozes e interesses são representados no processo político, e novos nós de poder e influência são construídos e fortalecidos” (p. 177). A composição de um ciclo de políticas, nessa visão, vai tomando projeção e abarcando novas vozes, como as de entidades privadas e agenciamentos internacionais, responsáveis pela articulação e financiamento da construção dos documentos curriculares. Assim, Mainardes (2018) alerta que

o contexto da estratégia política envolve a identificação de um conjunto de atividades sociais e políticas que seriam necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada. Envolve, portanto, um exercício propositivo a partir dos dados e constatações da pesquisa. (p. 14)

A análise e reflexão acerca das políticas educacionais conduzem a terrenos contraditórios, que envolvem tecnologias e recursos heurísticos. Torna-se imprescindível, portanto, compreender os processos e contextos em que tais políticas foram construídas na tentativa de compreender como foram arquitetadas e quais são as suas reais intenções. A sua natureza não é anódina, visto que reflete os contextos políticos em que foram produzidas (Ball, 1994).

Contextos de influências da reforma.

O contexto de influência (Ball, 1994) perpassa a forma como, a partir das políticas públicas, foi conduzido e homologado o processo de construção da BNCC. Na visão de Mainardes (2006), constituíram-se

espaços onde os discursos políticos são construídos. É nesse contexto que grupos de interesse disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado […]. É também nesse contexto que os conceitos adquirem legitimidade e formam um discurso de base para a política. (p. 51)

Passos e Nacarato (2018), ainda sobre a BNCC, afirmam que “não há como deixar de destacar a influência do Banco Mundial e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE] nas políticas públicas voltadas para a Educação” (p. 125). Além da comissão convocada pelo Ministério da Educação [MEC], composta por representantes de universidades, ficou nítido que foram estabelecidas parcerias com grupos de entidades privadas.

Interesses de empresas, fundações e instituições filantrópicas são representados na maior parte de intervenção dessas entidades no Movimento pela Base Nacional Comum1 [MBNC]. Entidades como Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Instituto Unibanco, dentre outras, são normalmente financiadas pela alocação de impostos de macrocorporações.

Em mapeamentos realizados por Avelar e Ball (2019), estes chegaram à conclusão que a equipe formada para a elaboração do texto da BNCC

é constituída por uma rede de pessoas e organizações um tanto desgastadas, uma comunidade de discursos focada na necessidade de reforma educacional, composta por empreendedores políticos, tecnocratas viajantes e ‘líderes de pensamento’, como soluções para os problemas da política educacional. (p. 9)

O intuito de implementação da reforma baseou-se no modelo de performatividade para o sucesso. Assim, na visão de Ball (2010), as “performances — de sujeitos individuais ou organizações — servem como medidas de produtividade ou resultados, como formas de apresentação da qualidade ou momentos de promoção ou inspeção” (p. 38).

Corrêa e Morgado (2018) afirmam ser

necessário salientar que o modelo proposto de currículo nacional incide nos modelos já assumidos pelo MEC e pelo MBNC, tendo como referência o currículo da Austrália e as análises elaboradas pela The Curriculum Foundation (Reino Unido), Fundação ACARA (Austrália) e Universidade de Yale (EUA). (p. 7)

As políticas transnacionais recentes atuam em redes integradas, o que minimiza a função do Estado com um arsenal que se remete à eficiência. Tal processo é atravessado em discursos que suscitam o olhar de agentes das reformas curriculares, prometendo contemporaneidade pelo viés de uma suposta superioridade privatista. Corroborando Corrêa e Morgado (2018), acredita-se que tal superioridade “está no fato de experiências e referências internacionais de grupos privados de educação, que produzem a falsa ideia de confiabilidade, de eficácia e eficiência na construção de outros modelos de currículo em diferentes países” (p. 8).

A tendência é que, no Brasil e em outras nações, as reformas curriculares continuem à mercê das influências de âmbito internacional, envolvendo organizações como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes — PISA —, com foco na literacia matemática, e a OCDE.

Atualmente, encontra-se em curso o projeto Futuro da Educação e Habilidades 2030, da OCDE (2018), com discursos que enfocam as “tecnologias que ainda não foram inventadas, e resolver problemas sociais que ainda não tenham sido antecipados” (p. 1), assim como conceder aos países um suposto suporte na abordagem de desafios comuns na implementação de currículos e na identificação de fatores críticos de sucesso.

Na visão de Passos e Nacarato (2018), o documento da BNCC apresenta “equívocos e reducionismos” (p. 131). É suscitada pelo documento uma educação para adaptação em uma lógica mercadológica, ultraneoliberal, não levando em conta a visão e o protagonismo dos docentes no processo de construção e implementação da reforma, respectivamente.

Venco e Carneiro (2018) afirmam que a BNCC será ferramenta para a “adoção de um projeto neoliberal para a educação, o qual persegue demandas internacionais voltadas à lógica da mensuração de resultados e padronização mundial da educação” (p. 7). Na perspectiva da pedagogia neotecnicista, Silva (2018) alerta que há, sobre diretores, professores e alunos, o controle via avaliação de padrões internacionais de desempenho, além da responsabilização e técnicas de pagamento por meritocracia, combinadas com privatização; elementos que, se implementados, supostamente garantiriam qualidade na oferta da educação. De acordo com Ball (2014),

na interface entre a política educacional e o neoliberalismo, o dinheiro está em toda a parte. Como indiquei, a própria política agora é comprada e vendida, é mercadoria e oportunidade de lucro, há um mercado global crescente de ideias de políticas. O trabalho com políticas está também cada vez mais sendo terceirizado para organizações com fins lucrativos, que trazem suas habilidades, seus discursos e suas sensibilidades para o campo da política, por uma taxa honorária ou por um contrato com o Estado. (p. 222)

Nessa ótica, Passos e Nacarato (2018) alertam que,

ainda que não se pretenda que a matriz de referência para as avaliações externas paute o que deve ser ensinado nas escolas, a tensão provocada pela imposição de um currículo comum, fortalecida pela ‘oferta de planos de aula’, por ‘formação de professores’ certificada do setor empresarial, indica um cenário preocupante. (p. 132)

Contexto de produção dos recentes programas.

Dias (2016) alerta que “o pesquisador não pode prescindir de conhecer satisfatoriamente a conjuntura política que propiciou a produção de um determinado documento” (p.39). Mainardes (2006) acrescenta que “os textos políticos são o resultado de disputas e acordos, pois os grupos que atuam dentro de diferentes lugares da produção dos textos competem para controlar as representações da política” (p. 5), pelo que será trazida uma breve descrição, os aspectos legais, notas de resistências, bem como a estrutura dos documentos brasileiros de matemática.

Prevista na Constituição para o Ensino Fundamental e ampliada no Plano Nacional de Educação [PNE] para o ensino médio, a BNCC teve o intuito de reelaborar e significar a Educação Básica brasileira. Com sua homologação,

as redes de ensino e escolas particulares terão diante de si a tarefa de construir currículos, com base nas aprendizagens essenciais estabelecidas, passando, assim, do plano normativo propositivo para o plano da ação e da gestão curricular que envolve todo o conjunto de decisões e ações definidoras do currículo e de sua dinâmica. (Brasil, 2017, p. 20)

A partir desse marco constitucional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDB], no Inciso IV de seu Art. 9º, sinaliza que:

cabe à União estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum. (Brasil, 2017, p. 10)

A BNCC, a partir do inciso supracitado, destaca como claros e decisivos dois conceitos para todo o desenvolvimento da questão curricular no Brasil, com base em duas noções consideradas fundamentais: o que é ou não básico-comum e as aprendizagens essenciais como foco.

O primeiro, já antecipado pela Constituição, estabelece a relação entre o que é básico-comum e o que é diverso em matéria curricular: as competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos. O segundo se refere ao foco. Ao dizer que os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a ser ensinados. (Brasil, 2017, p. 11)

Uma vez dada, na reforma curricular, prioridade às competências com a proposta da BNCC, de viés mais neotecnicista (Silva, 2018), o documento expressa a prioridade dada aos conteúdos. Estes funcionam como um instrumento de gestão do ensino (Macedo, 2014), com vista, essencialmente, a projetar o desempenho ou performance do aluno (Ball, 2010).

A criação de equipes autônomas e um complexo processo de envio de sugestões para análise e promoção de debates estaduais foram os mecanismos usados para a elaboração da BNCC. Sua primeira versão, após ser elaborada, foi submetida a um processo de consulta pública, sendo individualizada a maior parte das contribuições; em outras palavras, o documento não passou por um processo coletivo de discussão. Em seguida, o MEC realizou a análise da sistematização das contribuições e definiu o que seria incorporado ao documento, originando a segunda versão. Nesta fase, não houve explicação do marco referencial que serviu de parâmetro para as escolhas.

Semelhantemente, a segunda versão da BNCC foi publicada, agora sob a coordenação da União dos Dirigentes Municipais de Educação — Undime — e do Conselho Nacional de Secretários da Educação — Consed —, que promoveram seminários por todo o Brasil e adotaram a mesma premissa de participação. O documento foi apresentado através dos seus componentes curriculares e os participantes, agora por grupos específicos, puderam se posicionar a partir do que lhes fora apresentado.

Aguiar (2018) afirma que o processo continuou tendo uma forma tênue de participação e que a metodologia verticalizada, linear e centralizadora de produção do documento voltou a acontecer. Com a formalização de um grupo gestor, foram definidas pelo MEC quais contribuições seriam admitidas. A partir disso, nasceu a terceira versão da BNCC, sendo apresentada ao Conselho Nacional de Educação [CNE] para análise e homologada em 2017, sendo a versão final da BNCC para os anos iniciais e finais do ensino fundamental, com implementação até 2020. O documento tem a estrutura apresentada na figura 1.

Figura 1: Estrutura da BNCC brasileira para o ensino fundamental. Fonte: elaboração própria, com base na BNCC (Brasil, 2017).

São propostas pela BNCC cinco unidades temáticas apresentadas como correlacionadas, visando orientar a formulação de habilidades a serem desenvolvidas ao longo do ensino fundamental. Nesse documento, competência é definida como a “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2017, p. 8). Assim, objetos de conhecimento e habilidades representam os pontos principais da proposta.

Apresentando um discurso em direção à substituição do modelo único de currículo por um modelo supostamente “diversificado” e “flexível”, instituiu-se a Reforma do Ensino Médio por meio da Lei nº 13.415/2017, enviada por meio de medida provisória ao Congresso Nacional. A medida alterou a LDB, estabelecendo, no Art. 36, que o currículo será composto pela BNCC e por “itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino” (Brasil, 2018, p. 467).

Essa mudança vem sendo objeto de grandes controvérsias e perspectivas políticopedagógicas. Ao invés da busca pela efetivação do PNE — 2014-2024 — por meio de articulação federativa, da institucionalização do Sistema Nacional de Educação e do redimensionamento e articulação do papel do Estado, visando a garantir o direito à educação, passou-se a redirecionar tais proposições por intermédio de políticas de regulação sob o viés privatista. No que tange à BNCC do ensino médio, sobretudo na terceira versão produzida, com forte ênfase em língua portuguesa e matemática, foi reforçada a ideia de uma aprendizagem baseada em competências, com concepção curricular restritiva e fortemente articulada à avaliação do tipo padronizada e estandardizada (Dourado & Oliveira, 2018).

A BNCC da área de matemática e suas tecnologias para o ensino médio aponta como foco a construção de uma visão integrada da matemática, aplicada à realidade, para

promover ações que estimulem e provoquem seus processos de reflexão e de abstração, que deem sustentação a modos de pensar criativos, analíticos, indutivos, dedutivos e sistêmicos e que favoreçam a tomada de decisões orientadas pela ética e o bem comum. (Brasil, 2018, p. 518).

A estrutura da prescrição é apresentada na figura 2.

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Figura 2: Estrutura da terceira versão da BNCC para o ensino médio: área matemática e suas tecnologias. Fonte: elaboração própria.

As concessões já caracterizadas nos modelos dos quais foram concebidas são reforçadas pelos documentos com as ideais de competências e direitos de aprendizagem presentes nos textos dos currículos do Chile, Austrália e Estados Unidos. A lógica de um currículo por objetivos de aprendizagem predomina, tendo como base “princípios que, ademais, ainda constituem o imaginário francês, talvez Iluminista não fosse a insistência norte-americana no pertencimento concreto” (Macedo, 2015, p. 897).

Desta forma, os objetos de conhecimento e as habilidades representam os pontos principais nas prescrições do documento para o desenvolvimento de competências matemáticas específicas supostamente consideradas como fundamentais.

Carta pública da SBEM.

Neste contexto, uma série de formas de padronização se consolida na política educacional, mas sem problematizar o que, realmente, os estudantes estão se apropriando e construindo em si um conhecimento capaz de formar cidadãos emancipados e atuantes na sociedade. Assim, a SBEM, com a colaboração de pesquisadores, emitiu no ano de 2016 um parecer sobre a primeira versão da BNCC, dando ênfase à sua posição sobre os propósitos da reforma:

O que se percebe hoje nas entrelinhas do atual texto da Base Nacional Curricular Comum é um direcionamento da proposta curricular para atender uma demanda que não é necessariamente social, ou das grandes massas de cidadãos trabalhadores assalariados, ou dos sujeitos pertencentes a classes menos privilegiadas socioeconomicamente, mas fundamentalmente para atender aos anseios de um pequeno grupo com interesses que não condizem com a evolução histórica das lutas sociais empreendidas no Brasil para humanizar, democratizar e melhorar o ensino da matemática nos sistemas públicos de educação. (SBEM, 2016, p. 32)

Mediante seu compromisso social e democrático, a SBEM alerta que a área, enquanto campo de pesquisa e de formação profissional, não ficou privada a essa discussão. Ela enfatiza que a reforma objetiva o atendimento de grupos de interesse com uma visível articulação com o mundo empresarial, representando um retrocesso no que diz respeito à democratização do acesso ao conhecimento matemático e à autonomia escolar dos sujeitos. Assim, acaba por visar uma qualidade centrada na produtividade, para qual o produto é mais importante que o processo, preocupando-se com medidas, índices e resultados. É a lógica do mercado aplicada a educação.

A SBEM finalizou o documento manifestando uma crítica à valorização dos processos criativos por si só em detrimento de uma postura crítica em relação à matemática, ultrapassando disciplinas ou a relação entre elas, numa perspectiva sociocultural a partir dos diferentes contextos discentes. Ela, ainda, terminou por se disponibilizar a colaborar com as discussões que se seguiriam na construção das demais versões tendo em vista a consolidação do documento da BNCC de matemática:

E, se é necessário que uma nova matemática se deixe materializar na proposta curricular comum, então que esta matemática seja caracterizada não apenas pela defesa dos processos criativos, mas também pela defesa de uma postura crítica sobre os usos que se faz si mesma. Uma base curricular nacional que possa ultrapassar os limites da interdisciplinaridade, das disciplinas em si, dos conceitos abstratos desconectados da realidade, atemporais e sem significado sociocultural para os sujeitos que buscam conhecer.

A SBEM segue disposta a participar com seus pares das discussões pertinentes a educação matemática no nosso país.

O processo de construção da BNCC enfatiza a atuação de uma agenda internacional de esvaziamento da concepção de área e habilidades, que se tornam itens de avaliação externa, reforçando, sob a lógica da performatividade de Ball (2010), que os currículos são cada vez mais prescritivos e submetidos aos princípios econômicos. O currículo e a avaliação se tornam mecanismos de controle político, pois a avaliação da qualidade passa a ser, para Pacheco (2000), “o discurso dominante que tanto serve para legitimar a intervenção do Estado no processo de regulação do sistema, como para responsabilizar as escolas, os professores, os alunos e os pais pelos resultados obtidos” (p. 13).

Após a divulgação da primeira versão da BNCC, o posicionamento da SBEM enfatizava que a proposta vinha de encontro aos anseios de pequenos grupos, que não condizem com a evolução histórica e lutas para humanizar, democratizar e melhorar o ensino de matemática, e que a formulação de algumas habilidades hierarquiza o conhecimento matemático.

A voz da entidade não gerou impactos significativos sobre a versão final homologada da BNCC, no que diz respeito às suas reais intenções, e poucas recomendações foram refletidas, prevalecendo a legitimação dos elaboradores por meio de uma ideologia verticalmente imposta (Carvalho & Lourenço, 2018).

Representante da SBEM.

No primeiro momento, indaga-se ao entrevistado, representante da SBEM [RepSBEM], a respeito de qual foi a participação dos dirigentes e associados na produção da BNCC, sobre os questionamentos dos professores e as dificuldades encontradas no processo de elaboração da proposta:

Alguns pesquisadores sócios da SBEM foram convidados para serem leitores críticos e outros para serem elaboradores. Os professores não participaram da elaboração e o que se questiona é que os mesmos são convidados no processo de consulta pública para dar sugestões via internet com parâmetros rígidos. Existe uma tradição na elaboração de documentos curriculares desde a década de 80 e inicialmente houve um rico debate sobre a BNCC, com posicionamentos teóricos sobre a área e recomendações metodológicas, mas que foi descartado, bem como o grupo de pessoas envolvidas. Durante a elaboração, o debate foi sendo impregnado pelo enfraquecimento do MEC e as pessoas convidadas configuraram-se em um grupo isolado, alinhados à filosofia da atual política educacional. (RepSBEM)

Segundo o RepSBEM, a entidade não participou diretamente da construção da BNCC. Somente alguns poucos afiliados participaram da leitura crítica, e outros, da elaboração. Além disso, somente nos processos de consulta pública, os professores de matemática das redes de ensino tiveram a oportunidade de se posicionarem a respeito.

Ao questionarem a BNCC, Carvalho e Lourenço (2018) apontam que os experts silenciam as vozes dos professores. Isso ocorre através de um jogo de estímulo à participação dos professores, a fim de que, com suas falas, legitimem o discurso dos experts sob sua aparente participação, mantendo-se em consulta, mas sem efetivo poder de decisão sobre modelos verticalmente impostos.

No segundo momento, pergunta-se ao RepSBEM a respeito de quais foram os avanços e/ou retrocessos da área de educação matemática contemplados na BNCC, fazendo alusão aos Parâmetros Curriculares Nacionais [PCN], que se configuravam, até então, como referência para a construção dos currículos.

Havia uma qualidade nos PCN. O problema não está em ter uma base. Ter a base é como ter os standards, que dê parâmetros gerais para educadores e escolas produzirem seus currículos, mas o problema é quando quer-se transformar em programa único. Tentaram fazer que os PCN se tornassem base, mas não houve forças e o CNE não permitiu por ter uma abrangência grande. Os PCN têm uma conexão maior com o conhecimento e com o ensino da área, sobre a pesquisa e uma concepção muito positiva com a formação de professores, alunos e com avaliação, ou seja, todos esses elementos que já de algum modo estavam consensuados nos debates por toda a comunidade da área e externa a ela. Eles falam das tecnologias, etnomatemática, história da matemática e campos conceituais com caráter informativo e havia um diálogo com as pesquisas. Uma base precisa sim ser mais enxuta, numa visão mais objetiva, o que é temerário e traz apagamentos. Você acaba delegando um grupo pequeno pra fazer isso, uma posição vaga e muito ligeira em relação à área. Traz determinados conteúdos, mas não há uma justificativa convincente nas unidades temáticas e não há uma discussão que justifique. Seria uma educação para adaptação. Isso é uma diretriz, uma educação para o mercado e pensando em produzir avaliações. Existe uma ideologia e um modelo de educação como mercadoria por trás disso. Se alguma coisa é falada no documento, mas o que vai prevalecer é a matriz de habilidade que o professor terá que seguir. Com a implementação, teremos na prática um conjunto de aulas e planejamentos produzidos e oferecidos em um aplicativo, uma característica neotecnicista, na perspectiva de politicas mais recentes, uma forma de produzir e vender material. O que o professor pensa e reflete não vem ao caso. Separa o ato de pensar e fazer. Alguém planeja e o outro executa. (RepSBEM)

Segundo o RepSBEM, a BNCC ocupa uma posição extremamente esvaziada em relação à área de matemática e aos PCN. Na visão de Passos e Nacarato (2018), apresentam “equívocos e reducionismos” (p. 131). Suscita uma educação para adaptação em uma lógica mercadológica, ultraneoliberal (Venco & Carneiro, 2018), desconsiderando a visão e o protagonismo dos docentes, respectivamente, nos processos de construção e na implementação da reforma.

No terceiro momento da entrevista, foi solicitado que o RepSBEM explicitasse os pontos principais que considera sobre a proposta curricular para a matemática com a homologação da BNCC

Cumpre uma agenda de esvaziamento do debate sobre a concepção de área; retrocesso nos processos de avaliação direcionados e as políticas de currículo não focadas na formação do professor. As habilidades prescritas configurando-se em macro-habilidades que se tornam itens a serem avaliados — avaliações externas — (RepSBEM).

Este relato mostra a atuação de uma agenda internacional de esvaziamento da concepção de área e habilidades, que se tornam itens de avaliação externa, reforçando, sob a lógica da performatividade de Ball (2010), que os currículos são cada vez mais prescritivos e submetidos aos princípios da economia. O currículo e a avaliação se tornam mecanismos de controle político, pois a avaliação da qualidade passa a ser, como diz Pacheco (2000), “o discurso dominante que tanto serve para legitimar a intervenção do Estado no processo de regulação do sistema, como para responsabilizar as escolas, os professores, os alunos e os pais pelos resultados obtidos” (p. 13).

No quarto momento da entrevista, o assunto foi o posicionamento da SBEM após a primeira versão da BNCC, que enfatizava que a proposta vinha de encontro a anseios de pequenos grupos que não condizem com a evolução histórica para humanizar, democratizar e melhorar o ensino de matemática; e que a formulação de alguns objetivos de aprendizagem hierarquizam o conhecimento matemático. Indaga-se a RepSBEM, a partir disso, a respeito da sua participação na elaboração e qual sua visão sobre esse momento específico e sobre todo o processo de construção até a homologação da BNCC (2017), gerando o seguinte o relato:

Tive acesso ao documento, mas não participei da produção. O documento expressa uma crítica minuciosa dessa primeira versão e algumas críticas foram incorporadas na última versão, mas no conjunto não muda a perspectiva e a ideologia de modelo educacional que se pretende com a reforma. (RepSBEM)

O entrevistado relata que o posicionamento da SBEM não teve impactos significativos na versão homologada da BNCC no que tange à ideologia, sendo que poucas recomendações foram refletidas no documento homologado, prevalecendo a legitimação dos elaboradores por meio de uma ideologia verticalmente imposta (Carvalho & Lourenço, 2018).

Ao término da entrevista, o RepSBEM foi questionado sobre os desafios da SBEM e dos pesquisadores ante a formação dos futuros professores, levando em conta as multiplicidades e diversidades regionais, sociais e culturais dos estudantes brasileiros:

Existem dois caminhos e que talvez a SBEM tenha tido uma atitude que possa ser tomada como um exemplo de alguém que tenta em todo modo influir nas políticas públicas. A formação não pode ser centrada somente no conteúdo específico e independente dos contextos e da temporalidade. Acho que a SBEM vai influir muito pouco nos próximos anos, mas existe certo divórcio com toda produção que se tem e isso não se acontece só aqui no Brasil. Temáticas de pesquisas como os currículos, a avaliação, o uso de recursos materiais e as tecnologias vem sendo muito enfatizadas, porém estamos atravessados como pesquisadores, incluídos numa dinâmica, uma hipertrofia no que tange a produção e aquilo que é realmente voltado ao ensino. De maneira tácita há uma desqualificação desses níveis. A SBEM necessita olhar três dimensões como indissociáveis: pesquisa, produção e ensino, que gera o movimento dela não em relação aos órgãos das administrações públicas, mas em uma ação mais forte e intensa. Não podemos ficar somente no âmbito das pesquisas, mas gerar práticas respaldadas que decorrem para o conjunto de sistemas, sujeitos e atores que integram a sociedade para que chegue à administração pública. Configura-se em um divórcio que transcende a área. As pesquisas vêm identificando saberes docentes e fazendo prescrições sobre o que os mesmos devem fazer. Os professores muitas vezes não refletem toda essa riqueza e não ultrapassam a barreira dos conhecimentos oferecidos pelas pesquisas. (RepSBEM)

Segundo o relato do RepSBEM, a formação não pode ser centrada somente no conteúdo específico e a SBEM precisa focar em três dimensões indissociáveis, independentemente do contexto e da temporalidade: a pesquisa, a produção e o ensino. O professor precisa se apropriar das contribuições provenientes das pesquisas. Nesse aspecto, D’Ambrósio e Lopes (2015) alertam que as pesquisas

têm apresentado produções diversificadas, que expressam múltiplos discursos, os quais contribuem para um repensar do processo de ensino e aprendizagem que pode ser redimensionado pelos resultados de pesquisas sobre resolução de problemas, modelagem matemática, etnomatemática, história e filosofia da educação matemática, tecnologias em educação matemática… No entanto, raramente as contribuições dessas investigações são incorporadas às ações educacionais, pois as políticas públicas e/ou as determinações das instituições de ensino cerceiam as atitudes dos profissionais que nelas atuam. Muitas das legislações e das orientações determinadas por esses órgãos privados ou governamentais reproduzem encaminhamentos decorrentes de um sistema educacional com princípios ultrapassados e que não consideraram a realidade atual, não respeitam o direito das crianças e dos jovens a uma aprendizagem que dialogue com o diferenciado contexto sociocultural e político no qual nasceram e vivem. (p. 11)

Restringir as atitudes dos profissionais da educação matemática implica, também, impedir que as investigações realizadas na área cheguem aos professores. Consequentemente, tais personagens também são mantidos distantes dos processos de construção das reformas curriculares, tendo suas vozes silenciadas em processos pseudodemocráticos ditos como “modernos e participativos”. As complexidades dessa relação impactam as práticas docentes e, por conseguinte, na construção e implementação dos novos currículos.

A análise sintética dos discursos da entrevista com o representante da SBEM por meio das subcategorias adotadas é apresentada abaixo, tendo em vista agregar elementos para a compreensão dos processos e intencionalidades políticas impregnadas e expressas na reforma curricular com a BNCC:

  1. Grau de intervenção no processo de desenvolvimento curricular: houve participação de pesquisadores sócios da SBEM, que contribuíram na elaboração e na leitura crítica das versões preliminares da BNCC. Os professores, contudo, foram excluídos do processo de elaboração, questionando-se o fato de que os mesmos foram convidados para a consulta pública com o fim de dar sugestões, via portal, com parâmetros pouco claros.
  2. Linhas de força: uma posição vaga e muito ligeira com respeito à matemática é apresentada pela BNCC. Não são apresentadas nas unidades temáticas as devidas justificativas, tampouco indicações metodológicas para as abordagens, no tocante a determinados conteúdos e habilidades.
  3. Pontos críticos: sinaliza-se, na BNCC, uma educação com fins de adaptação, ou seja, uma diretriz, uma educação voltada para o mercado, pensando em produzir avaliações; uma ideologia e um modelo de educação concebida como mercadoria, com predominância de matrizes de habilidades que o docente deverá cumprir.

Portanto, corrobora-se Passos e Nacarato (2018) — ao destacarem a visão de Freitas (2014) sobre a BNCC — ao alertarem que “está de volta uma nova versão do tecnicismo ou um neotecnicismo: basta aprender a fazer, sem necessidade de um conhecimento profissional para tal” (p. 130).

A tendência constatada na reforma gira em torno de questões como: esvaziamento da área de matemática e, consequentemente, do que já foi conquistado por meio de pesquisas; silenciamento da voz da SBEM; participação de professores via consulta pública sem critérios claros — pseudodemocracia —; agenciamentos internacionais e participação de organismos multilaterais; e perspectiva neotecnicista e ultraneoliberal, com ênfase na performatividade, e, por conseguinte, nos rankings de avaliações externas.

Considerações finais

Mostrou-se claro, através da análise do contexto de influência e contexto de produção, integrante do ciclo de políticas (Ball, 1994), e por meio do discurso público da SBEM e da entrevista com um de seus representantes, que a produção da BNCC brasileira é uma prescrição homologada como um texto político resultante de tensões, disputas e acordos, porque os grupos atuantes dentro de diversos lugares da produção dos textos competem para controlar as representações políticas (Mainardes, 2006, 2018).

Novas vozes e nós de interesse tornaram-se notórios no processo de reforma do currículo brasileiro, representada nos processos e contextos políticos do país (Ball, 2013). Vozes essas foram representadas por grupos e organizações com nítidas influências e com tendência ao cumprimento de processos integrantes de um agenciamento internacional de reformas (Ball, 1994, 2013; Passos & Nacarato, 2018).

A SBEM, bem como seu representante, reforçaram os retrocessos na proposta da BNCC, que se debruça em conteúdos que podem servir a um modelo de gestão (Macedo, 2014) e que enfocam, principalmente, a performatividade (Ball, 2010, 2014).

A BNCC, apontada como solução para os problemas do ensino de matemática no país (Avelar & Ball, 2019), foi cercada por processos turbulentos, onde a voz da SBEM foi silenciada na arquitetura da proposta curricular supostamente democrática, mas que representa notadamente um modelo verticalmente imposto (Carvalho & Lourenço, 2018).

Partindo-se do que foi apresentado na presente investigação, em vias de finalização destaca-se a importância de se considerar o posicionamento público emitido pela SBEM e a voz dos professores nos processos de elaboração da reforma. Estes são os responsáveis, historicamente, por pesquisas relevantes para/pela melhoria do ensino e pela democratização do acesso ao conhecimento matemático no país. Decerto, o debate não é aqui encerrado, e muitas serão, ainda, as tensões travadas nos contextos da formação e prática docente e de configurações impressas pela BNCC na construção dos currículos nos solos das plurais escolas brasileiras.

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Para citar este artículo: Dias, M. (2020). A Sociedade Brasileira de Educação Matemática e a Base Nacional Comum Curricular. Praxis & Saber, 11 (26), e-9757. https://doi.org/10.19053/22160159.v11.n26.2020.9757


1. http://movimentopelabase.org.br/